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Fútbol Argentino (III): grandes anedotas

Fabio Perina 11 de agosto de 2020
Superclasico Boca x River. Imagem: Wikipédia

Superclasico

Sem dúvida o Superclasico entre Boca-River é um dos elementos mais conhecidos quanto ao futebol argentino para o público brasileiro. Ainda mais com as recentes definições a “matar o morir” mais freqüentes em Libertadores desde 2015 durante a era Gallardo com ampla paternidad millonaria – 3 eliminações que ainda tiveram uma prévia na semifinal da Copa Sul-Americana de 2014. O River contou com equipes melhores e que alcançaram os resultados. Embora algo de contestação do perdedor ficou por incidentes fora de campo que foi reclamar en escritorio. Primeiro como tragédia, depois como farsa?

Primeiro, o caso gas pimienta 2015, no qual jogadores do River foram atingidos próximo ao túnel por torcedores do Boca e com queimaduras não puderam ir para o segundo tempo. A suspensão da partida manteve o resultado parcial de 1 a 0 agregado que deu ao River a classificação sem ter que terminar de jogar o segundo tempo. Depois, o caso piedrazo 2018, quando dessa vez se invertem os papéis e são jogadores do Boca que não puderam entrar no Monumental de Nuñez para jogar diante das pedradas de torcedores do River ao ônibus da delegação. Na remarcação da partida para o Santiago Bernabéu novamente o River se impôs com um histórico 3 a 1 de virada na prorrogação. Curiosamente a hinchada millonaria transformou cada episódio em um canto de provocação bem chistoso para cada caso: “Tiraste gas, abandonaste, lo suspendiste porque no tenes aguante” e “Tomala vos, damela a mi, el que no salta murió en Madri”.

Ruggeri atuando pelo Boca Juniors em 1981. Foto: Wikipédia

Ainda sobre superclasicos, uma das melhores anedotas e polêmicas da história se deu ao longo dos anos 80 e envolveu o zagueiro Oscar Alfredo ‘Cabezón’ Ruggeri. O xerifão se profissionalizou no Boca, do qual era hincha, com um clube no auge (recém campeão continental e mundial). Venceu o Metropolitano de 81 junto a Maradona que também surgia como um fenômeno. Porém um vertiginoso desastre (esportivo, financeiro e moral) levou o clube ao fundo do poço em 84 com uma série de vexames acumulados: interdição da Bombonera por risco de desabamento, ausência de uniforme reserva que precisou ser pintada na hora e uma excursão de férias caça-níquel para levantar fundos marcada por perder de 9 a 1 do Barcelona. Ruggeri escapou desse vexame por estar na seleção argentina naquele momento e logo em 85 foi negociado com o River Plate para assumir do histórico Passarela a camisa 6 no clube e a 19 na seleção. A história consagrou Ruggeri como campeão do mundo por clube e seleção em 86. Além de um Superclasico marcante naquele ano em que o River ja entrou na Bombonera campeão por antecipação e ousou iniciar uma volta olímpica porém foi interrompido por uma chuva de objetos em campo! Vitória “millonaria” por 2 a 0 com gols do ídolo Beto Alonso e a curiosidade de ser jogada com uma bola laranja diante de um gramado repleto de “papelitos”

Ruggeri com a taça da Libertadores de 1986. Foto: Wikipédia

Patadas Históricas

Quando Ruggeri reencontrou o Boca pela primeira vez após ir para o River, foi no episódio em que o jogador Passucci ficou imortalizado ao fazer o que todo torcedor xeneize queria: uma patada no traidor como se estivesse malhando Judas. Um daqueles lapsos de segundos tão sublimes que nada mais desse contexto dos últimos anos importava! Passucci, depois de expulso, até se justificou negando a aceitar Ruggeri como vítima, como se isso apagasse tudo que fez de imperdoável antes. Já Ruggeri, anos depois, quando teve direito a réplica sobre a traição ao clube, minimiza isso recordando que não cobrou 8 meses de salários atrasados. Como evidentemente grandes anedotas não terminam, tempos depois Passucci virou nome de um blog radicalmente xeneize, que inclusive declara não incitar a violência!

Ruggeri seguiu uma carreira muito destacada: além de sair campeão pelos dois arqui-rivais ainda foi campeão como citado, tirou o San Lorenzo da fila em 95, além de deter um recorde em sua época de participações pela seleção e sendo capitão em um Bi da Copa América 91 e 93, inclusive invicto todo esse período. No entanto, foi o maior desafeto dos principais referentes que foram seus ‘companheiros’ ao longo da carreira e disputavam a liderança de cada plantel, como Maradona, Bochini e o paraguaio Chilavert.

No início dos anos 90 ambos, Ruggeri e Chilavert, estiveram juntos no Vélez que ensaiava boas campanhas, mas não chegava ao título. Até que em 93 o clube saiu da fila, pois, segundo Chilavert, foi justamente quando Ruggeri foi para o San Lorenzo. Quando se reencontraram foi o momento de Ruggeri imortalizar outra patada, sendo ele dessa vez quem teve um acerto pessoal. Como sempre se diz: “el futbol te da revancha”. Chilavert recentemente ainda o ofendeu de “payaso mediatico”, por conta do novo ofício tão freqüente de Ruggeri após a aposentadoria como panelista (membro de ‘mesa-redonda’ esportiva), o qual também aprendeu a sobreviver nesse outro ambiente quase tão hostil quanto a cancha. Para terminar a apresentação desse grande personagem que foi El Cabezón, seus últimos minutos em campo como profissional também só poderiam ser a las piñas: uma briga generalizada na final da Conmebol 97 entre Lanús e Atlético-MG.

Arde La Boca

Ainda sobre o Boca, há pelo menos duas fantásticas anedotas de seu camarín (vestiário) nos anos 90 que mostram como esse é um ambiente de disputas de poder que não fica muito atrás da cancha em si. Em 92, o clube saiu de seus piores anos futebolísticos desde 81 ao ser campeão, porém o reparto da premiação gerou novos problemas com o plantel rachado em halcones e palomas. O pivô da discussão é atribuído à imposição de parte dos jogadores ao meia Beto Márcico, um das referências do plantel, que cobrasse uma posição mais enérgica do capitão e goleiro Navarro Montoya ao negociar a situação com a diretoria. (Vale uma menção que no ano anterior houve um “”superclasico” também anedótico pela Libertadores com o Boca fazendo uma “marmelada” contra o Oriente Petrolero-BOL para assim eliminar o River na combinação de resultados na fase de grupos)
Outro caso ainda mais insólito foi no plantel de 98, com ainda mais referentes, só de colombianos eram 3: Córdoba, Bermúdez e Serna. Além de Palermo, Cagna, Riquelme, Samuel, Caniggia e Schelotto. De treinador, também uma ‘cobra’: Hector Veira. Certo dia, Latorre ao sair de um treinamento entrou no carro, ligou o rádio e descobriu simplesmente que o conteúdo da reunião de minutos atrás fora vazado. Acabaram-se os códigos de vestiário. Na frente de tantos repórteres disparou a frase imortalizada para o folclore: “Boca parece un cabaret!” A fase já era péssima, com tropeços e protestos da torcida inclusive com a irônica bandeira negra “gracias por el campeonato” quando já não havia mais chances de ser campeão. O desfecho da anedota é que na troca de temporada quem assume o desafio de liderar tantas “feras” e fazer um novo ciclo campeão na virada da década 90/2000 é Carlos Bianchi. Como bônus, outra história envolvendo os bastidores xeneizes, essa ainda mais ‘fora do eixo’. O goleiro Pablo Migliore, com passagem por Racing e San Lorenzo, chegou a pertencer à barra do Boca e até ter tatuagem dela. Por conta de suspeitas de auxiliar a fuga de outro barra, acabou preso em 2013 e depois de sair estreou, há cerca de um ano e meio, uma carreira de boxeador profissional.

Torcida do Racing. Foto: Wikipédia

“Superclasico” de Avellaneda

Outro clássico que separa os meninos dos homens e certamente também farto de anedotas é o de Avellaneda, zona industrial vizinha de La Boca. Se essa rivalidade tem menos visibilidade há algum tempo fora da Argentina, ofuscada pelo Superclasico, poucos sabem que nos anos 60 tiveram seu auge. E foi nos anos 70 que o Racing perdeu sua hegemonia para o Independiente. Os maiores títulos desde então do Rojo coincidiam com grandes vitórias sobre a Academia e grandes desastres. Eis que surge a “cabala” fundacional de todas as demais: supostamente 7 gatos foram enterrados na cancha do Racing! Seria essa a razão de décadas amaldiçoadas.

Até que no início de 99 o clube teve a sua falência decretada em decisão judicial. Ao menos duas imagens ficaram eternizadas: o presidente Lalin atingido por um redoblante (instrumento musical) ao anunciar a notícia e principalmente as intensas aglomerações da hinchada para o estádio Cilindro para impedir com seus próprios corpos que ele fosse confiscado. Com o clube impedido de entrar em campo na primeira rodada, mesmo assim ela estava lá novamente o lotando. A agonia se seguiu por quase 3 anos mais entre 99, 2000 e 2001 brigando contra rebaixamentos e diante de uma nova empresa que o comprou para permitir reativar as atividades. Até que no final de 2001, com uma equipe desacreditada, conseguiu finalmente voltar a ser campeão após os 35 anos na fila. Quis um capricho que se já não bastasse essa espera toda, o torneio daquele ano somente terminou em 27 de dezembro diante dos protestos conhecidos como panelazos que forçaram renuncias presidenciais e deixaram o país um caos. Em uma disputa dura com o River Plate em seu centenário, o Racing conseguiu buscar um empate nos minutos finais em um confronto direto e com um empate na cancha do Velez gritou campeão. Mais uma vez a hinchada foi histórica ao lotar dois estádios: o da partida e o próprio. Todo esse enredo acabou homenageado em uma das músicas mais conhecidas da hinchada racinguista com o trecho a seguir.

“De pendejo te sigo / Junto a racing siempre a todos lados / Nos bancamos una quiebra / El descenso y fuimos alquilados / No me olvido ese dia / Que una vieja chiflada decía / Que racing no existía que tenía que ser liquidado / Si llenamos nuestra cancha y no jugamos / Defendimos del remate nuestra sede (…)”.

Torcida do Independiente. Foto: Wikipédia

Desde então o clássico registrou outros momentos curiosos mais fora do que dentro de campo. Certa vez o Racing abriu 2 a 0 com facilidade na cancha do Independiente em poucos minutos de partida até que cortaram a luz para esfriar uma goleada que se desenhava. Outra vez, o Independiente não pôde jogar na própria cancha por conta de obras e prontamente a broma racinguista se manifestou com vários membros usando capacetes amarelos como ironia. Os mais novos certamente se lembram de uma broma muito mais performática com o rebaixamento do Independiente em 2013. Quando não apenas consagraram internacionalizar a figura do “fantasma de la B”, ou seja, vários torcedores cobertos por lençol, como até mesmo encenou um funeral histórico no próprio estádio com fumaça escura, velas e claro um caixão ao rival!

Por fim, algumas anedotas tiradas da dupla platense (Estudiantes-Gimnasia) só para dar um aperitivo da próxima crônica. Era o ano de 2004 e o já comentado veterano treinador Bilardo reencontrava o seu Estudiantes, porém com péssima campanha. Parecia que tinha secado a fonte de resultados tão pragmáticos através de métodos tão rigorosos em treinamentos e concentrações intermináveis. Depois de tanto ser acusado de não dar espetáculo, simplesmente encenou seu protesto sarcástico: preparou uma mesa e uma toalha à beira do banco de reservas e abriu uma garrafa de champanhe para brindar. O outro personagem do outro lado da cidade é o goleiro Gastón Gato Sessa. Com passagens pelos grandes Racing e River, começou a conhecer seu auge no Velez com o titulo de 2005 e ótima campanha na Libertadores. Porém, nas oitavas, em partida contra o Boca, começou a colocar tudo a perder com uma voadora na cara do atacante Palacios: pênalti, expulsão e 3 a 0 no placar. Desde então, tanto no retorno ao Gimnasia de seus amores quanto em suas aparições como veterano no Ascenso, suas loucuras ficaram mais freqüentes e variadas contra adversários, árbitros, gandulas, gestos obscenos a torcedores e até companheiros de equipe.

E vocês, que outras anedotas insólitas se recordam do futebol argentino?

Referências bibliográficas

https://globoesporte.globo.com/blogs/meia-encarnada/post/2019/10/01/la-patada-del-alma.ghtml

https://globoesporte.globo.com/blogs/meia-encarnada/post/2018/10/23/um-brinde-monumental.ghtml

https://globoesporte.globo.com/blogs/latinoamerica-futbol-club/post/2020/04/22/jogadores-de-quinta-002.ghtml

https://www.ole.com.ar/boca-juniors/boca-beto-marcico-halcones-palomas_0_PfwYBnkJi.html

https://www.ole.com.ar/boca-juniors/cabaret-boca_0_7nO5hUA-q.html

https://www.youtube.com/watch?v=o73Z9S_wFYQ

https://www.youtube.com/watch?v=K0cda6QD-Z0

https://www.youtube.com/watch?v=Hk-zistFH94

https://www.youtube.com/watch?v=Wht5eRjXkgs

https://www.youtube.com/watch?v=hkX2moJT8KM


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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Fútbol Argentino (III): grandes anedotas. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 25, 2020.
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