148.10

Futebol de lei

José Paulo Florenzano 7 de outubro de 2021
Josephine Baker
Josephine Baker em 1950. Foto: Rudolf Suroch/Wikipédia.

A passagem da cantora Josephine Baker por Paris, nos anos vinte do século passado, atestava o fascínio da “civilizada Europa” pelos “ritmos da música negra”, o “interesse” despertado no Velho Mundo por todas as formas de “exotismos”.[1] A estrela afro-americana, uma “mulher ambivalente, complexa e multifacetada”, conforme a definição do historiador Petrônio Domingues, chamava a atenção do jornal Progresso.[2] Ela parecia sintetizar as contradições de uma época em que “centros tidos por profundamente cultos” se curvavam diante de uma “criatura exótica, trepidante, diabólica”, cujo “primitivismo” se desvelava na performance “perturbadora” de um “corpo de ébano”.[3]  Aos olhos do jornal da comunidade afro-brasileira de São Paulo, Josephine Baker se afigurava uma “criatura eleita”, a quem os “destinos” incumbiram de revelar ao mundo as “formas novas de dança”, consubstanciadas no gênero do assim denominado “Black Bottom”.[4]  

Progresso constatava, porém, que no Brasil, ao contrário do verificado na Europa, “não se tem dado o devido valor estético ao negro”. Em meio a um quadro de análise eivado de estereótipos mais tarde repudiados pelos expoentes do movimento negro e pelos intelectuais da diáspora africana, o articulista do jornal Progresso explicava no que consistia o mencionado valor e por que razão convinha incorporá-lo às manifestações da cultura popular:

Guardando uma alma misteriosa e cheia de crendices, uma alma primitiva e em direto contato com a natureza, o negro foi infiltrando em nosso espírito uma visão mais colorida, mais candente e mais voluptuosa das coisas.[5]

O negro se constituía em um “verdadeiro tesouro estético”, ainda em grande parte ignorado pela sociedade brasileira. Mas no terreno do futebol ele começava a ser descoberto e valorizado. Na várzea paulistana, frisava o jornal Progresso, “quando surge em campo qualquer jogador preto, a torcida brada logo: Aí, bichão!”. Assinado por Africano, o artigo permite-nos entrever o momento em que as técnicas corporais associadas aos descendentes de escravos começavam a despertar a atenção do público torcedor. “O ser preto”, explicava o colunista, era índice certo das “altas qualidades” demonstradas pelo jogador “no manejo da bola de couro”.[6] Africano avançava no argumento, mencionando os “esplêndidos” atletas negros que haviam passado pelo “soccer” da várzea. Era-lhe possível escalar toda uma seleção composta por Antenor, o arqueiro, Tatu, o zagueiro, e David, “considerado rival de Rubens Salles”, do Paulistano. Segundo o autor do texto, “existiam três famosos” atletas de nome Africano. A entrada em cena destas personagens aliava alta qualidade técnica com uma rígida conduta moral. Passemos mais uma vez a palavra ao autor da matéria: “O característico das agremiações negras” residia na “disciplina”. Os atletas ligados ao segmento afro-brasileiro eram incapazes de “quebrar pernas” ou de “dar trabalho à polícia.”

O valor da estética negra desenvolvia-se dentro do espírito de disciplina, conquanto a prática nem sempre correspondesse ao ideal apregoado pelo texto. Com efeito, na seção do futebol de várzea de A Gazeta, Rolando – ao que tudo indica, pseudônimo de Thomaz Mazzoni – abordava a “adoração da força” nos subúrbios do Rio de Janeiro e de São Paulo. Segundo Rolando, na Cidade Maravilhosa o “argumento” mais “decisivo” dos jogadores da Favela, de Bangu ou de Deodoro era o da “capoeiragem”. Os “sururus” cariocas se resolviam à base de “cocada”, “rabo de arraia” e “pé no estômago”, dentre outros golpes associados à luta elaborada pelos escravos e libertos.[7] Na várzea paulistana, cuja realidade complexa encontra-se decifrada na obra da historiadora Diana Mendes, a situação não era muito diversa.[8] Noutro artigo Rolando mencionava os Folgazões F. C., associação de “gente de cor” com sede na rua Duque de Caxias. Sebastião, “exímio” jogador que liderava a linha atacante do time, “mandava na zona” em uma época em que os jogos se decidiam “na bola e no muque”.[9]

Foto: Yogendra Singh/Pexels.

A prática do jogo de bola nos campos de várzea, desse modo, emergia como uma deplorável transgressão do “futebol de lei”, consoante a expressão utilizada por Leopoldo Sant`Anna em A Gazeta  para designar o comportamento pautado pelas “normas do cavalheirismo” e consoante as regras codificadas do jogo.[10] O futebol de lei constituía-se, portanto, no reverso do futebol de malta. Mas não devemos nos precipitar, acreditando que os expoentes do jornalismo esportivo se encontravam empenhados em uma campanha para a universalização da norma elitista. Não lhes incomodava tanto a coexistência das duas formas culturais, mas, sim, a ameaça representada pelas mudanças em curso, as quais incidiam diferencialmente sobre as duas metades em que se bipartia o universo social do jogo.

A ruptura estava por toda parte e ameaçava colocar em risco o tênue equilíbrio existente entre o futebol de várzea e o futebol de elite, os dois polos sociodinâmicos em que se achava estruturada a cultura futebolística em São Paulo. Dois artigos publicados em A Gazeta indica-nos no que consistia tal ameaça. Enquanto na primeira esfera o processo de “degeneração” era identificado como fruto da elitização pela qual passavam os clubes de bairro, dados à promoção de saraus literários e festivais dançantes, na segunda esfera a ameaça consistia no processo diametralmente inverso, isto é, o da proletarização da prática fidalga, refletida pela presença cada vez mais insidiosa do vil metal.

A noção de pureza encontrava-se instalada no cerne do sistema de ideias da cultura social esportiva, mas ela aplicava-se diferentemente em cada uma das polaridades constitutivas do sistema.[11] Ambas deveriam manter-se puras, autênticas, estáticas, mas a significação de que se revestia esta exortação diferia radicalmente nos dois casos. No futebol de várzea ela se associava à simplicidade da associação recreativa, à precariedade das instalações do clube, à coloração mais escura da pele dos envolvidas na prática amadora. No futebol de elite, ao contrário, ela se identificava à sofisticação das sedes, à distinção dos frequentadores, ao ideal que os norteava em uma prática avessa a toda e qualquer forma de remuneração pecuniária. 

A noção de amadorismo, por sua vez, que conferia sentido às ações defensivas dentro desta polaridade, abrigava o código racial velado cujas regras podiam ser aplicadas com mais flexibilidade, ou mais rigidez, de acordo com a tradição cultivada por cada agremiação, conforme veremos o próximo artigo.


[1] Cf. “Na civilizada Europa os ritmos da música negra provocam entusiasmo e reclamam aplausos”, Progresso, 24 de março de 1929.

[2] Domingues, Petrônio. “A ´Vênus negra`: Josephine Baker e a modernidade afro-atlântica”, Estudos Históricos, Vol.23, N.45, Rio de Janeiro, 2010.

[3] Cf. “A musa negra e os seus triunfos na Europa”, 13 de janeiro de 1929 e “Josephine Baker, a condessa bailarina, depois de reclamar no Velho Mundo a atenção para os pretos, veio à América mostrar a pujança de seu espírito criador”, 28 de abril de 1929. Ambas as matérias em Progresso.

[4] Cf. “Uma grande artista, cujo valor não pode ser medido por inteligências medíocres”, Progresso, 23 de junho de 1929.

[5] Cf. “O negro, apesar de ser uma fonte inesgotável de motivos para toda manifestação de arte, não é, ainda, no Brasil, suficientemente explorado”, Progresso, 28 de julho de 1929. Ver, a respeito, Gilroy, Paul. “Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça”. São Paulo, Annablume, 2007.

[6] Cf. “Tudo preto”, Progresso, fevereiro de 1931. Ver sobre o tema Santos, Rael Fiszon Eugênio dos. “A África na Imprensa Negra Paulista (1923-1937)”. Dissertação de Mestrado. História, Universidade Federal Fluminense, 2012.

[7] Cf. “A várzea nos domínios da força e da agilidade – Homens e insetos…” A Gazeta, 23 de fevereiro de 1930.

[8] Silva, Diana Mendes da “Futebol de várzea em São Paulo. A Associação Atlética Anhanguera (1928-1940)”. São Paulo, Alameda, 2016.

[9] Cf. “A várzea degenera…” A Gazeta, 16 de fevereiro de 1930. Para uma análise do quadro multifacetado da várzea paulistana, ver

[10] Cf. “Os campeões de São Paulo infligem aos vice-campeões da Argentina um sério revés: 7 a 2”, A Gazeta, 3 de fevereiro de 1930.

[11] Sobre a noção de pureza, ver a obra da antropóloga Douglas, Mary. “Pureza e Perigo”. São Paulo, Perspectiva, 2012.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Futebol de lei. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 10, 2021.
Leia também:
  • 178.17

    Onde estão os negros no futebol brasileiro?

    Ana Beatriz Santos da Silva
  • 178.15

    Racismo no Futebol: o golaço do combate ao racismo pode partir do futebol

    Camila Valente de Souza
  • 178.14

    Racismo: Vinícius Jr. e a nova fronteira do preconceito no esporte

    José Paulo Florenzano