145.61

Futebol e novela: como “Lado a Lado” representou o início do futebol e a polêmica cena do pó de arroz

Sou noveleira e não nego, assisto todas as novelas que puder

Em 2012, no 1° ano do Ensino Médio, eu chegava em casa e tomava meu café assistindo Malhação e logo depois a novela de “época” Lado a Lado. Não era uma grande fã de novelas de época, apesar de já amar história, mas havia alguma coisa encantadora naquela, que me chamava muito atenção. Hoje, eu sei, era a primeira vez que via na teledramaturgia da Globo um enredo que, além de tratar sobre o pós-Abolição no Rio de Janeiro, era cheio de representatividade. Eram muitas as personagens negras além das/os protagonistas, que eram quatro, entre elas/es, Zé Maria e Isabel, interpretados por Lázaro Ramos e Camila Pitanga.

Basicamente, a história conta, em 154 capítulos, como duas amigas se conheceram em 1904, prestes a se casar na mesma igreja. Uma delas era Laura (Marjorie Estiano), a noiva branca e rica, que iria se casar contrariada e Isabel (Camila Pitanga), a noiva negra, pobre e filha de ex-escravizados, que iria casar com o homem que amava. Mas, como todo começo de novela, acontece algo que muda o rumo da história. O noivo de Isabel não comparece ao casamento (ele estava defendendo as casas contra o bota-abaixo e é preso) e, a partir daí, com o sofrimento de uma noiva abandonada e de outra que não quer casar, nasce uma grande amizade.

Lado a Lado Novela
Protagonistas da novela. Fonte: Divulgação site oficial da Globo.

Olhei novamente todos esses capítulos durante os últimos 5 meses e me surpreendi com a quantidade de informações históricas que essa novela possui. Ela também apresenta as revoltas da Vacina e da Chibata, além de comentar sobre política, imprensa, capoeira, carnaval e processo de favelização. Enfim, explora diversas questões que perpassam esse começo de século e os anos que a novela cobre, de 1904 até 1910.

Mas onde entra o futebol em Lado a Lado?

Tá bom, tá bom. Mas e o futebol? Primeiro, ele é comentado e praticado várias vezes na novela. Albertinho (Rafael Cardoso), filho de um médico e senador famoso na cidade, compra da Europa bolas e chuteiras para jogar com seus amigos no clube “Federal Sport Club”, que é frequentado apenas pela elite do Rio de Janeiro. Nas diversas cenas da prática do jogo aparece eles treinando ao som de “Samba de primeira” de Marcelo D2.

Nesses treinos e jogos nada de espetacular nos é mostrado, são jogadas comuns e gols normais. Quando jogam com times de fora, a arquibancada é tomada por vários espectadores, inclusive, mulheres torcedoras. Porém o público é todo branco, as únicas pessoas aceitas como frequentadoras pelo clube.

Em uma das cenas na beira do campo, o advogado progressista Edgar (Thiago Fragoso) afirma que se deveria parar com: “esse anglicismo ridículo, ficar chamando team, match, field, isso é bobagem. Porque não chamar de campo, entendeu? time, partida… no bom e velho português? (…) acho que a partir de agora tem que ser futebol”. Edgar está aí querendo chamar a atenção para a prática de nacionalizar os termos do esporte, tornando-os mais conhecidos, algo que já foi apontado por Leonardo de Affonso Pereira (2000, p. 296) que diz que muitos entusiastas do futebol tinham interesses na mudança desses termos que eram apenas utilizados em inglês e afastavam parte da população. No entanto, o irmão de Edgar, conservador e que se mostra um grande racista no decorrer da novela diz que: “os termos em inglês são muito mais elegantes, se abrasileirar o esporte vira populacho”.

Portanto,  nota-se que havia esse medo do esporte se aproximar das classes mais populares, o que é bem retratado na novela por diversas falas dos jogadores do clube, que são contra a aproximação da prática da bola para a população pobre. Para eles, o futebol era para quem tinha dinheiro. Essa situação aparece reiterada quando mais um dos jovens brancos e ricos acaba xingando duas crianças negras que invadem o clube para vê-los jogar futebol: “Ah era só o que me faltava, agora o pessoal do morro quer ver como é o futebol. Aqui não é lugar de vocês, vai anda”.

Lado a Lado Novela
Jogadores do “Federal Sport Club”. Fonte: Divulgação site oficial da Globo.

No núcleo da novela havia também um jornalista, Luiz Neto (Romis Ferreira), que era tremendamente contra a prática do futebol por acreditar que este era um esporte desnecessário e que acabava desvirtuando os jovens de atividades sérias. Esse jornalista representa tantos outros que também achavam o futebol nada exemplar, incluindo Lima Barreto, grande literato e jornalista negro. Com toda certeza Neto participaria da sua “Liga contra o Foot-Ball”.

“Então, essa era a sua ideia brilhante? Pintar um negro com pó de arroz?”: A cena do pó de arroz e suas discussões

Uma das cenas mais icônicas da novela acontece no capítulo 128. Chico (César Mello), homem negro, começa a trabalhar no clube “Federal Sport Club” em que era praticado o futebol. Seu trabalho é limpar, varrer e organizar, mas ele faz mais do que isso… Chico observa e observando ele consegue perceber que aqueles caras são “duros” jogando e mais tarde reclama para seu amigo: “eles não tem o gingado que a gente aprende na capoeira”. Nessas espiadas nos jogos Chico vê que uma bola foi descartada, pois estava murcha, logo ele pega ela, costura e começa a jogar com a garotada do morro que adora o novo esporte. Zé Maria (Lázaro Ramos) fica muito reticente quanto a ensinar a prática às crianças e não gosta de ver o amigo se aproximando cada vez mais da bola: “o problema é que aqui no Brasil, além do esporte de rico, é esporte do que? De branco, meu irmão”. Homem negro retinto, Zé Maria já havia sentido o racismo e as dificuldades na pele, e querendo proteger o amigo, tenta o afastar da prática e da possível decepção. E essa decepção acontece.

O “Federal Sport Clube” iria jogar uma revanche contra um time de Niterói. Porém, um de seus jogadores se machuca e com esse desfalque o jogo não aconteceria (reserva para que, né ?? hahaha). Albertinho, tem uma ideia e diz que irá resolver a questão. Ele já havia visto Chico brincar com a bola e viu que ele tinha uma grande habilidade… então, pensou: “quem sabe?”.

No dia do jogo, aparece um novo jogador para substituir o lesionado, é o Chico. Ele estava pintado de pó de arroz no rosto, braços e pernas, com o cabelo bem para trás e espichado e a ideia era que, de longe, ninguém iria reconhecer que ele era negro. Fernando (Caio Blat) fala indignado: “Então, essa era a sua ideia brilhante? Pintar um negro com pó de arroz?”. Eles acabam discutindo, mas no final todos aceitam, afinal, era a única alternativa que  tinham.

Lado a Lado Novela
Chico pintado com pó de arroz e jogadores discutindo sobre sua entrada ou não no jogo. Fonte: print da tela feito pela autora.

O jogo começa e Chico chama atenção, não porque perceberam a artimanha, mas por seus dribles, passes e jogadas surpreendentes nunca antes vistas naquele campo. O problema é que , no decorrer da partida, o pó de arroz vai sumindo por causa do suor e começam a surgir burburinhos na arquibancada. Até que Zé Maria invade o campo e tenta tirar o amigo de lá, achando inadmissível ele ter que esconder sua cor para jogar futebol e demonstrar sua habilidade.

Na discussão Chico limpa o rosto, todos veem que ele é negro e, depois de muita discussão, o jogo recomeça, com a equipe deles ganhando, tendo Chico como autor de todos os gols. 

Lado a Lado Novela
Chico limpando o rosto e assumindo que era negro. Fonte: Divulgação site oficial da Globo.

Você, leitora e leitor, pode ter percebido alguma semelhança com esse caso e outro narrado pelo jornalista e cronista Mario Filho em “O negro no futebol brasileiro”, pois foi exatamente essa a inspiração da novela.

“O caso de Carlos Alberto, do Fluminense. Tinha vindo do América. Enquanto esteve no América, jogando no segundo time, quase ninguém reparou que ele era mulato. Também Carlos Alberto, no América, não quis passar por branco. No Fluminense foi para o primeiro time, ficou logo em exposição. Tinha de entrar em campo, correr para o lugar mais cheio de moças na arquibancada, parar um instante, levantar o braço, abrir a boca num hip hip, hurrah. Era o momento que Carlos Alberto mais temia, preparava-se para ele, por isso mesmo, cuidadosamente, enchendo a cara de pó-de-arroz, ficando quase cinzento.” (RODRIGUES, p.60 , 2003).

Carlos Alberto com essa atitude teria feito com que o clube, Fluminense, fosse conhecido, pejorativamente, como “pó de arroz” e visto como piada durante um bom tempo.

Apesar de muito disseminada e tratada por alguns como uma verdade histórica, muitos tricolores negam essa versão para a história do pó de arroz, dizendo que seu clube não era racista e que o pó de arroz era usado por motivos estéticos e não raciais.[1]

Como diz Fernanda Haag (2014) podemos e devemos usar a obra de Mario Filho de forma crítica, cruzando as fontes e não tomando-a como verdade absoluta. Mas, enfim, sendo essa uma verdade histórica ou não, fato é que a história de Carlos e o pó de arroz foi inspiração para que a novela retratasse esse momento na teledramaturgia, provocando discussões e debates sobre racismo no futebol.

Esse episódio do pó de arroz quis nos mostrar que no futebol, assim como para se encaixar em determinados meios da sociedade, o negro teve que se disfarçar e esconder suas características de cor visando ser bem visto e aceito, já que, sendo quem era, não era bem vindo, mesmo tendo habilidade de sobra para tal.

Inclusive, nosso personagem fictício, Chico, também espicha o cabelo, tal qual Friedenreich,[2] grande ídolo do Brasil, considerado pela história do futebol como “mulato”. Lembrando sempre de observar os escritos de Mario Filho de forma crítica, sobre Friedenreich ele diz: 

“(…) de olhos verdes, um leve tom de azeitona no rosto moreno, podia passar (por branco) se não fosse o cabelo. O cabelo farto, mas duro, rebelde. Friedenreich levava, pelo menos, meia hora amansando o cabelo. (…) O pente, a mão não bastavam. Era preciso amarrar a cabeça com uma toalha, fazer da toalha um turbante e enterrá-lo na cabeça. E ficar esperando que o cabelo assentasse. (…) Era sempre o último a entrar em campo.” (RODRIGUES, 2003, p. 61).

É complicado afirmar que a população negra do período imitava e tentava se encaixar em um padrão branco ou negava sua negritude para ser aceita. Podem existir casos específicos que se encaixam nesse padrão, mas muitos resistiram e, inclusive, formavam seus próprios espaços de sociabilidade negra, já que não eram aceitos em lugares “brancos”. A criação de clubes negros de futebol em alguns lugares do país exemplifica esse caso.[3]

Pode a novela tratar sobre futebol e ainda nos ensinar sobre?

O podcast “Passes e Impasses” gravou um episódio em maio deste ano sobre futebol e novela com o professor Márcio Guerra.[4] Ali, debateram assuntos como: a relação entre as temáticas, a reação do público espectador, novelas que já exploraram tal relação (citando o caso de Lado a Lado) e também citando jogadores que já fizeram participações em novelas, os quais, como diz o professor Márcio, se mostraram “quase sempre péssimos atores”. Neymar atuando com Tatá Werneck que o diga.

Já havia pensado em escrever esse breve texto, mas esse episódio do podcast em questão me fez ver que existiram várias novelas, há anos atrás e recentemente, que se utilizaram do futebol como temática norteadora de seus enredos.[5] Assim, podemos ver na tela da TV a mistura de duas paixões nacionais: o futebol e a novela, atuando e jogando juntas para conquistar a maior audiência possível.

Obviamente, devemos estar atentos para como a teledramaturgia trata a temática, muitas vezes de forma romantizada ou, se for de um ponto de vista histórico, abordando-o com pouca complexidade.

Mesmo assim, juntos, novela e futebol, conseguem fazer um ótimo trabalho de distração, entretenimento e também ensino, principalmente na área de História Pública. Pois imagine, ao ver na novela uma cena como a do episódio do pó de arroz muitas dúvidas podem surgir: “aconteceu mesmo?”, “foi exatamente assim?”; e essas dúvidas podem ser tiradas na internet, nos livros ou em sala de aula com o professor… tendo aí uma boa oportunidade para discutirmos e refletirmos.

Podemos e devemos nos utilizar dos enredos presentes nas telenovelas históricas sem preconceitos, problematizando sempre que possível, é claro, mas lembrando que elas são assistidas por diversas pessoas e que os debates que levantam atingem um grande público.

Eu, como boa torcedora e noveleira, estarei sempre de olho no campo e nas telinhas.

Notas

[1] Encontrei alguns debates sobre isso nas redes sociais, um torcedor no twitter e outro no youtube preocupados em tirar a pecha de racista do seu time de coração, Fluminenses: Fontes: https://twitter.com/ThiagoSussekind/status/1097556154006323200 e https://www.youtube.com/watch?v=T9PMIKMoPsg&ab_channel=Hist%C3%B3riaTricolor.

[2] Arthur Friedenreich foi um importante jogador brasileiro no período ainda amador do futebol. Filho de um descendente de alemães com uma mulher negra, professora e brasileira. Também conhecido como “El Tigre” fez o gol do título no Campeonato Sul-Americano em 1919 contra o Uruguai.

[3] Na minha pesquisa da dissertação investigo o caso de dois clubes de futebol compostos por maioria negra no interior do Rio Grande do Sul, Santa Maria. Inclusive, um deles chamado de Rio Branco se autodenomina o “clube de epiderme menos branca de Santa Maria”.

[4] #34Futebol e Novela. Podcast.

[5] Um exemplo é Avenida Brasil que, lançada em 2012, foi uma das únicas novelas unânimes entre o público e crítica. No enredo, havia um time ficcional “Divino Futebol Clube” que acabou revelando como seu maior craque Tufão (Murilo Benício), que mais tarde, na ficção, vira ídolo no Flamengo. A novela explora o futebol de bairro, as torcidas, treinos, etc.

Referências

HAAG, Fernanda Ribeiro. Mario Filho e O negro no futebol brasileiro: uma análise histórica sobre a produção do livro. Esporte e Sociedade, Ano 9, n. 23, 2014.

PEREIRA, Leonardo. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, (1902-1938). Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 2000.

RODRIGUES, Mario Filho. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Taiane Anhanha Lima

Historiadora e torcedora do colorado. Atualmente mestranda no Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da UFSM. Membro do Stadium (Grupo de Estudos de História do Esporte e das Práticas Lúdicas) e do GEPA (Grupos de Estudos sobre o pós-Abolição). Os interesses de pesquisa são: pós-Abolição, futebol e mulheres torcedoras.

Como citar

LIMA, Taiane Anhanha. Futebol e novela: como “Lado a Lado” representou o início do futebol e a polêmica cena do pó de arroz. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 61, 2021.
Leia também:
  • 175.31

    “Bueno, eu sou morenito né? Não sou tão negro, não” – O histórico de atos racistas no futebol espanhol

    Danilo da Silva Ramos
  • 175.18

    Uma cruz para Fausto: de operário-jogador à ‘Maravilha Negra’ uma reflexão sobre a trajetória de um jogador negro na década de 1920 e 1930

    Marcelo Viana Araujo Filho
  • 174.1

    Uma história política do futebol brasileiro: a luta contra a solidão do homem negro

    Maurício Rodrigues Pinto