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Futebol e reparação. Um texto sobre trajetórias negras apagadas

Introdução

Desde 2003, quando foi instituído o Dia da Consciência Negra (20/11), durante o mês de novembro a discussão sobre o racismo no futebol se torna mais presente na mídia e nos programas de mesa redonda na televisão. Ao mesmo tempo, os clubes brasileiros resgatam suas narrativas e histórias, enaltecendo jogadores negros cujas trajetórias estejam ligadas à resistência antirracista em períodos onde a exclusão era a norma.

Entretanto, a discussão sobre o racismo ainda é um tabu na sociedade brasileira e, no futebol nacional, infelizmente, não é diferente. Por outro lado, já é possível perceber iniciativas que surgem para debater o tema, apesar da resistência de torcedores, jogadores, dirigentes e até da mídia. Com isso, mesmo que atitudes flagrantes de racismo gerem uma grande comoção pública e repúdio popular, a discussão sobre o acesso de negros em cargos de direção nos clubes, ou a falta de representatividade nos meios de comunicação especializados ainda são temas que encontram barreiras, mesmo que, quase metade dos jogadores negros do futebol brasileiro que disputam as três principais divisões nacionais tenham alegado já ter vivido ou presenciado um caso de racismo em sua carreira.

Neste ambiente, destacamos o discurso do técnico do E.C. Bahia, Roger Machado, que em uma entrevista coletiva emblemática abriu o debate sobre o racismo estrutural no Brasil e seus efeitos sobre o futebol, e, principalmente, que negar e silenciar é uma forma de confirmar o racismo.

Logo, esquecer e apagar experiências sociais também é uma forma de corroborar o racismo estrutural. Por isso, esse texto pretende resgatar um pouco da história do povo negro no futebol brasileiro, para além dos chavões de “primeiro time a aceitar jogadores negros” ou mesmo de conhecidas “respostas históricas”, trazendo a experiência de pessoas negras como agentes de suas próprias vivências e como se relacionaram com o futebol, criando sua própria marca em território paulista no início do século XX.

Um breve contexto

A cidade de São Paulo construiu sua história e identidade ao mesmo tempo que crescia e se transformava. Essa construção se apega à memória coletiva da cidade e é formada por discursos conflitantes e complementares, de modo que são criados mitos, heróis e personagens que fizeram parte dessa formação e legitimação. No exemplo da capital paulista, encontramos a forte identidade ligada às colônias de imigrantes, que entre os fins do século XIX e início do século XX, chegaram à cidade trazendo um enorme crescimento populacional. Italianos, japoneses, alemães, entre tantos outros grupos, chegaram ao Brasil num período de mudanças estruturais, políticas e sociais, e trouxeram novas culturas para o país. Essas colônias criaram laços com diferentes regiões da cidade, formando bairros ligados às suas raízes, produzindo discursos e ajudando a construir essa memória paulistana. Bairros como a Mooca, Liberdade e Barra Funda, por exemplo, são respectivamente associados àquelas colônias e seus descendentes. Elas continuam evocando e festejando suas identidades em celebrações populares como a Festa de Nossa Senhora de Achiropita, que tradicionalmente ocorre na região do Bixiga e tem uma forte ligação com a cultura italiana.

Mas, como mencionado, essa memória não é construída de forma objetiva. No meio de tantas identidades, discursos e agentes que formam uma cidade, qual a possibilidade de alguém ficar fora da construção de um passado histórico de uma região?

Quando pensamos nas mudanças ocorridas em São Paulo, principalmente nas primeiras décadas do século XX, a chegada de grandes grupos de imigrantes, o crescimento populacional, a busca pela modernização, percebemos a ausência da experiência histórica da população negra na construção mnemônica da cidade. Como explicar, essa sub representatividade? Por que a história parece pular da condição de escravizada, direto para os tempos atuais em que são maioria nas regiões periféricas das grandes cidades? Quais foram suas agências e contribuições para a construção da cidade de São Paulo e por que fala-se, tão pouco sobre isso?

É importante entender que o período pós-abolição marca grandes mudanças no Brasil, momento em que as elites brasileiras buscavam direcionar o país para uma nova ideia de sociedade, mais moderna e próxima à sociedade europeia, vista como o exemplo a ser seguido. Para atingir esse objetivo era preciso romper com todo e qualquer aspecto que, aparentemente, separava o Brasil desse ideal.

Esse momento, entre os fins do século XIX e início do XX, foi marcado por uma grande migração das populações negras para os grandes centros urbanos, e com São Paulo não foi diferente. A cidade, nas primeiras décadas do século XX, contava com uma grande presença negra que ocupava os postos de trabalhos informais e criava seus próprios laços de afetividade e sociabilidade. Nesse sentido, alguns bairros da cidade foram “geografados” pelas territorialidades e vivências negras, que se materializavam por meio de cordões carnavalescos, rodas de sambas (e também samba de bumbo, característico do interior paulista), tiriricas e associações que permeavam regiões do Bixiga, Liberdade, Barra- Funda, entre outras. Mas, qual era o espaço dessas experiências e atividades numa cidade que buscava, a todo custo, se modernizar com base no contexto europeu, buscando projetar uma sociedade pautada em uma nova lógica de valorização do trabalho formal?

É justamente no meio desse conflito que a população negra paulista se via confrontada por novas políticas higienistas e eugênicas, que eram adotadas pela elite cafeeira. Logo, atividades como das lavadeiras, que tradicionalmente trabalhavam na região da Várzea do Carmo, passaram a ser entendidas como práticas indesejáveis para a cidade, do mesmo modo que, aqueles que não estavam vinculados a trabalhos formais, em fábricas, ou grandes propriedades, recebiam a pecha de vagabundos.

Esse olhar sobre a população negra ajudou a criar uma ideia de incapacidade em se adaptar a essa nova sociedade moderna, bem como o mito de sua falta de protagonismo na história. Tal processo ideológico é um dos fatores que gerou o apagamento de suas experiências sociais na construção da cidade de São Paulo.

Mas a importância do associativismo negro para a formação de espaços de sociabilidade e organização daquela população, num território excludente, de modo a sublimar ou, ao menos, amenizar os obstáculos impostos pela sociedade e sua nova ordem urbana, foi encontrada no futebol.

O chamado “esporte bretão”, chegou ao Brasil na última década do século XIX pelas mãos, ou melhor, pelos pés de estudantes brancos e da elite, principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Com isso, os primeiros clubes formados tinham uma seleção de membros, pautada no pertencimento desses, aos grupos mais abastados da cidades, restringindo, desse modo, o acesso da população negra e pobre à prática do novo esporte.

Embora os clubes criassem formas de permitir exceções e abrigar em suas fileiras do futebol alguns jogadores de origem pobre, a questão racial tinha um peso maior e a exclusão era mais difícil de ser driblada. A resposta da comunidade a essa exclusão foi criar suas próprias associações de futebol, de maneira que as primeiras décadas do século XX trouxeram clubes como o Club Cravo Vermelho, Associação Athletica São Geraldo, 28 de Setembro Football Club, Grêmio Barra Funda, Clube Athletico Brasil, entre outros.

É importante ressaltar que, além de driblar o preconceito dos times elitistas, essas agremiações usavam datas de efemérides como o 13 de Maio para realizar festivais e jogos comemorativos, se relacionando fortemente com as entidades da Imprensa Negra e também com a Frente Negra Brasileira (FNB), construindo redes de convivência e pertencimento, com uma atuação antirracista. Entre esses clubes, o São Geraldo e o C.A. Brasil foram os que tiveram maior destaque. Enquanto o primeiro conseguiu conquistas no futebol oficial, como o título da Divisão Municipal da APSA, no ano do centenário da Independência do Brasil, que foi muito noticiado pela imprensa negra, o C.A. Brasil teve uma importante atuação no cenário esportivo paulista, com a realização de provas de “pedestrianismo” e competições comemorativas de futebol. As atuações desses clubes, para além do esporte, traziam a valorização do cidadão negro e em conjunto com outras entidades buscavam a chamada “elevação moral e intelectual” da comunidade negra de São Paulo.

A.A. São Geraldo e C.A Brasil – Os clubes negros no futebol paulista

A.A. São Geraldo

Associação Atlética São Geraldo – Barra Funda – SP

A Associação Athletica São Geraldo, ou simplesmente São Geraldo, também conhecido como Alvinegro da Barra Funda, teve sua fundação em 1917, no dia primeiro de novembro. A Associação teve sua sede em uma das regiões de São Paulo com grande presença negra no início do século XX, a Barra Funda, e além do futebol, também tinha o atletismo como prática cotidiana. Como já mencionado, nasce na esteira da exclusão que a população negra sofria na cidade, sobretudo para participar dos clubes esportivos da época, que eram basicamente controlados pela elite ou ligados às colônias de imigrantes. Desse modo, o Alvinegro da Barra Funda, além da prática dos esportes, tendo o futebol como carro chefe, também se ligou aà rede de associativismo negro do período, recebendo constante atenção nas páginas da imprensa negra, formada por periódicos como O Clarim D’Alvorada, A Voz da Raça, Progresso, entre outros. Nas páginas desses jornais, encontramos por diversas vezes referências ao São Geraldo, como entidade de orgulho para a população negra. Em uma nota do jornal “Evolução”, em 1933 o clube é descrito como: “Esta é a dedicada e sempre estimada associação esportiva que atualmente tem como diretores principais os srs. Militão Ventura e José Alves do Rosário. O seu passado é uma página cheia de glórias para o engrandecimento do progresso da nossa raça no esporte predileto do momento, o futebol. Desta associação têm saído grandes astros.”

O Clube começou sua trajetória no futebol oficial de São Paulo, em 1920, quando disputou pela primeira vez um campeonato por uma das divisões intermediárias da Associação Paulistas de Sports Athleticos (APSA), conquistando seu primeiro título em 1922, quando disputava o Campeonato da Divisão Municipal da entidade. A conquista, referente ao ano do Centenário da Independência do Brasil foi muito celebrada pela imprensa negra, que deu ao São Geraldo a alcunha de Campeão do Centenário, título que mesmo anos depois ainda repercutia nas páginas de periódicos como Progresso, exaltando o orgulho que o Alvinegro da Barra Funda trazia para a população preta da capital.

Com a cisão do futebol paulista em 1925, passaram a existir duas entidades antagônicas:, a Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA) e a Liga dos Amadores de Foot-Ball (LAF), liderada pelo poderoso C.A. Paulistano. O clube da Barra Funda se uniu à LAF, onde disputou torneios intermediários até o fim da entidade, em 1929. Na LAF, o São Geraldo voltou a ter sucesso esportivo, conquistando o título da Divisão Intermediária de 1929, com seis vitórias em seis jogos. Com o fim da LAF, o clube voltou a disputar os campeonatos da APEA, conquistando mais um título, dessa vez da série C da divisão municipal em 1930. Apesar da conquista e da importância que o alvinegro da Barra Funda tinha para a população negra e para a rede de associativismo negro, a década de 30 foi particularmente difícil, e percebemos que esse foi o período em que suas participações nos campeonatos oficiais de futebol começam a diminuir. De maneira geral, o legado do São Geraldo para o futebol paulista foi enorme, trazendo em seu período de atividade jogadores como Carrapicho, que posteriormente disputou o campeonato principal do futebol paulista, além de ter cedido atletas para a seleção de jogadores negros, formada para disputar jogos festivos amistosos durante a década de 20 e 30.

Campanha Divisão Municipal APSA 1922
Aliança do Norte F.C. 0 a 0 A.A. São Geraldo – W.O Vitória para a A.A. São Geraldo
A.A. Colombo 1 a 3 A.A. São Geraldo
A.A. São Geraldo 3 a 0 A.A. Ordem e Progresso
A.A. São Geraldo 3 a 2 Flor do Belém F.C.

Campanha Divisão Intermediária da LAF 1929
A.A. São Geraldo 2 a 0 C.A. Brasil
A.A. São Geraldo 2 a 0 A. Portuguesa de Futebol
A.A. São Geraldo 3 a 1 Castelões F.C.
A.A. São Geraldo 1 a 0 União Vasco da Gama F.C.
A.A. São Geraldo 3 a 0 E.C. Indianapolis
A.A. São Geraldo 3 a 0 Oriental F.C.

Campanha Série C Divisão Municipal de 1930
A.A. São Geraldo 3 a 0 A.A. Lusitana
A.A. São Geraldo 0 a 0 A.E. Húngara-República – W.O. Vitória para A.A. São Geraldo
A.A. São Geraldo 2 a 1 E.C. Democrático Paulista
A.A. São Geraldo 5 a 2 Jardim América F.C.
Jogo desempate:
A.A. São Geraldo 3 a 0 C.A. Parque da Moóca

C.A. Brasil

Fundado no dia 7 de outubro de 1916, sob o nome de Club dos Cravos Vermelhos, o C.A. Brasil foi um dos principais clubes esportivos formados por atletas negros e negras na cidade de São Paulo durante as décadas de 20 e 30. Em 1927, o quadro de futebol do clube teve o nome mudado, adotando o conhecido nome de Club Athletico Brasil, e com esse nome entrou para o futebol oficial da cidade, disputando a 2ª Divisão do campeonato da LAF, no qual se tornou campeão logo em sua primeira disputa. Diferente do São Geraldo, o C.A. Brasil não conquistou novas glórias no futebol oficial, sendo a segunda divisão da LAF em 1927 seu único título. Porém, o clube não deixou uma marca menor na história do futebol e do esporte paulista. Seu presidente, Norberto Rocha, foi militante, junto às outras associações negras e também na LAF, sendo que em várias partidas atuou como delegado e até mesmo como árbitro.

Seu clube também foi responsável por diversas celebrações especiais no município, entre elas as competições comemorativas, como as provas de pedestrianismo, em homenagem ao atleta negro Matheus Marcondes. Além disso, idealizou festivais de futebol em datas comemorativas e em desfiles oficiais como o 7 de setembro. Assim sendo, o C.A. Brasil tentou se construir como um polo de esportes e sociabilidade que fosse aberto e convidativo para a população negra paulista. Na década de 30, para além dos esportes, o clube também passou a se ocupar das festividades de carnaval, criando um bloco que desfilava pelas ruas da capital.

Com origem na região da Liberdade, o C.A. Brasil lutou para tentar comprar uma sede própria, além de ter militado em favor de jornais da imprensa negra. Um dos jogos organizados pelo clube, ainda no ano de 1930, teve parte da renda destinado ao Clarim d’Alvorada, como forma de ajudar a manutenção do periódico.

Apesar de sua presença nos campeonatos de futebol oficiais no ano de 1927 até meados da década 30, de seu título conquistado na LAF em pleno primeiro torneio oficial que disputou, as provas de atletismo, festas, bailes e comemorações realizadas, possivelmente a atuação mais marcante do clube de Norberto Rocha tenha sido justamente durante a realização dos jogos que ficaram conhecidos como Preto x Branco (“preto contra branco”). Com o fim da LAF, o clube passou a ser o principal encarregado de realizar os jogos, que em geral aconteciam no dia 13 de maio, e colocavam frente a frente uma seleção paulista formada por jogadores brancos e uma seleção formada por jogadores negros do futebol oficial.

Assim como no caso do São Geraldo, o clube de Norberto Rocha começa a ter seus problemas financeiros na segunda metade da década de 1930, e também marca cada vez menos presença nos torneios oficiais de futebol. Até 1938, fazia jogos amistosos e festivos, sendo que neste mesmo ano o C.A. Brasil realiza um amistoso “Preto x Branco” de caráter beneficente para a construção de um hospital chamado “Henrique Dias”, projeto da União Nacional dos Homens de Cor, com o objetivo de abranger o auxílio à população negra de São Paulo.

Campanha 2ª Divisão – Série Principal da LAF – 1927
A.A.R. Califórnia 2 a 2 C.A. Brasil
S.C. Lusitano 1 a 3 C.A. Brasil
C.A. Brasil 3 a 1 A. Portuguesa de Futebol
C.A. Brasil 4 a 0 C.A. Tiradentes
C.A. Brasil 3 a 3 União Vasco da Gama F.C.
S.C. Húngaro Paulistano 1 a 3 C.A. Brasil
A.A. Ordem e Progresso 3 a 4 C.A. Brasil
Jogo Desempate:
C.A. Brasil 4 a 0 A. Portuguesa de Futebol

Os dois clubes aparecem juntos a muitos outros criados no início do século XX, com objetivo de ser um espaço de vivências para a população negra, de modo que seus dirigentes, atletas e torcedores, estavam intimamente conectados com outras associações negras da cidade. A coletividade entre os clubes ia além do futebol oficial e era comum participarem de festas e competições realizadas por outras entidades, como os jornais da imprensa negra (o próprio Clarim d’Alvorada realizou competições que ofereciam uma taça que carregava o nome do jornal). Num primeiro momento parece contraditório que na ruptura do futebol paulista, esses clubes tenham escolhido ficar ao lado da Liga que representava a imagem de um clube aristocrático como o C.A. Paulistano, e isso nos conduz a maiores pesquisas, análises e discussões, mas, esses clubes, ainda que não tenham sobrevivido à profissionalização do esporte, significaram uma alternativa para uma parte da população que se via excluída e encontrou neles e na prática do esporte, uma abertura para sua atuação atlética e até mesmo política. Nesse sentido, e não menos importante, observamos em um trecho do Jornal A Gazeta do ano de 1926 o elogio ao enquadramento comportamental dos jogadores negros da equipe do São Geraldo, mas de maneira minuciosa percebemos, também, o preconceito embutido na escrita do jornalista: “o São Geraldo é um clube de homens de cor, mas que honra o nosso futebol pela educação de seus jogadores”. Ou seja, o excerto demonstra que, por mais que os clubes formados por negros se enquadrassem às normas, ainda assim, estavam submetidos ao racismo.

Os jogos “Preto x Branco”

Sabe-se que os times de futebol formados por negros sempre realizaram jogos de futebol em datas festivas. Em algumas dessas datas era comum acontecer partidas entre times formados por jogadores brancos contra times formados por jogadores negros. Dessa maneira, em datas como o 13 de maio, era comum grandes festivais esportivos realizados por diferentes clubes negros em São Paulo, contando com provas de atletismo e jogos de futebol. Neste contexto, a ideia das partidas “Preto x Branco” tem origem ainda na década de 10 com clubes como Cravos Vermelhos, São Geraldo, Flor do Brás, entre outros. Porém, será na década de 20 que esses jogos alcançarão seu auge junto ao público paulista, isso porque em 1927 a LAF decidiu realizar a primeira edição oficial de um jogo “Preto x Branco”, oferecendo a Taça Princesa Isabel para o time vencedor.

Salathiel Campos, um importante jornalista negro e militante, teve intenso envolvimento com as associações negras da cidade de São Paulo, fazendo parte do Espaço Cívico Palmares e posteriormente da Frente Negra Brasileira (FNB), além de ter contribuído com a imprensa negra em diversos momentos. O jornalista escreveu, no ano de 1934, um livro chamado “O Homem Negro no Esporte Bandeirante”, publicado capítulo a capítulo no Correio Paulistano, que a partir de sua perspectiva, conta a forma como se deu a entrada do negro nos esportes da capital, colocando os confrontos entre os selecionados negros e brancos como o começo do ápice dessa aceitação dos homens negros. Com sua narrativa desses confrontos e da importância desses eventos, percebemos o quanto o confronto “Preto x Branco” tinha um caráter que transcendia o jogo. As partidas ,estavam carregadas de simbolismos que iam ao encontro das ideologias defendidas por Salathiel e pelas associações de ativismo negro, a elevação moral do negro, tantas vezes defendida, estaria ligada ao cavalheirismo, boas condutas e valores associados ao amadorismo defendido pela LAF.

Provavelmente hoje seria estranho e contraditório imaginar o jogo “Preto x Branco” como ocorria:

13 de maio, valendo uma taça que carregava o nome da Princesa Isabel, em uma disputa entre times divididos pela cor dos atletas, num evento carregado de simbolismos e discursos que soam conservadores.

Precisamos, porém, encarar os fatos com os olhos de seu tempo, pois embora a ideia do 13 de maio e da Abolição seja problematizada e novos debates estejam abertos, principalmente na atualidade, a data era extremamente importante e representativa para a comunidade negra durante boa parte do século XX. Além disso, num país encharcado pela ideologia eugenista e políticas racistas, talvez a própria adoção de um discurso aparentemente conservador, mas por pessoas negras (que tinham sua experiência negada por essas ideias), possa ser vista como uma subversão social.

Se juntarmos isso com a criação de um selecionado, depois de anos de resistência para que um jogador pudesse chegar à Seleção Paulista de futebol, em uma disputa contra um selecionado de jogadores brancos, nessa data tão representativa, podemos perceber a força que esse evento teve para os ativistas negros da cidade de São Paulo, na época.

Oficialmente a LAF organizou a disputa por três vezes, em 1927, 1928 e 1929, nessa última edição a entidade contou com o apoio do C.A. Brasil na organização. Foram duas vitórias do selecionado negro e um empate, que segundo se conta só ocorreu por interferência da arbitragem.

Posteriormente, com o fim da LAF, o Club Athletico Brasil assumiu a organização dos confrontos sozinho, realizando as edições de 1930 e 1931, dessa vez com vitória do selecionado negro, que venceu sua terceira edição e teria o direito da conquista definitiva da Taça Princesa Isabel, e uma vitória do selecionado branco, que conseguiu vencer o time rival após quatro confrontos. No ano seguinte, 1932, houve uma nova disputa, desta vez realizada pela FNB. A organização teve problemas e o jogo ocorreu em 25 de maio, marcado por uma nova vitória do selecionado branco. Os confrontos foram disputados por grandes jogadores da época, Del Debbio, Tuffy, Petronilho e até a lenda Friedenreich, que jogou pelos dois times.

As vitórias do selecionado negro eram vistas por ativistas, como Salathiel, como uma amostra das qualidades inerentes à raça. E para além disso, o sucesso esportivo da equipe logo levou o selecionado a disputar jogos em outros contextos, de modo que no começo da década de 1930, o Selecionado Negro participou de festivais promovidos por clubes, jogos amistosos interestaduais, como o histórico confronto entre a Seleção dos Negros da LAF (como o time era chamado, então) contra a Seleção Carioca da AMEA, que terminou com uma avassaladora vitória dos paulistas por 6 a 2. Outro jogo histórico contra a Seleção da Capital ocorreu em 1931, quando os cariocas trouxeram apenas jogadores negros para a disputa, que acabou com a vitória dos paulistas por 7 a 1. Por fim, o selecionado negro chegou a disputar até mesmo partidas internacionais, como um jogo contra o time do Ferencvaros da Hungria.

A fama da Seleção dos Negros cresceu muito nesses anos e novos heróis foram formados. Giby, Bisoca e, sobretudo, Petronilho de Brito, são jogadores que participaram desses confrontos e alcançaram um alto grau de relevância no cenário principal do futebol paulista e brasileiro, com maior destaque para Petronilho, ou Petro, que era o verdadeiro líder e craque dos times em que jogou na época.

Partidas “Preto x Branco”
1927 – Selecionado Negro 3 a 2 Selecionado Branco
1928 – Selecionado Negro 2 a 1 Selecionado Branco
1929 – Selecionado Negro 2 a 2 Selecionado Branco
1930 – Selecionado Negro 5 a 0 Selecionado Branco
1931 – Selecionado Negro 2 a 5 Selecionado Branco
1932 – Selecionado Negro 1 a 6 Selecionado Branco

Petronilho de Brito, o Petro – O Fenômeno

Petronilho nasceu em 1904, era irmão de Waldemar de Brito, que jogou a Copa do Mundo de 1934. Embora este tenha defendido a Seleção Brasileira e tenha se destacado no São Paulo F.C., Botafogo F.R. e C.R. do Flamengo, segue sendo lembrado como quem levou Pelé para o Santos F.C.

Com seu irmão o reducionismo foi ainda maior e a história de Petronilho parece ter sido apagada da memória do futebol. Embora sua carreira tenha começado no Antarctica F.C., foi no Minas Gerais F.C. que Petronilho começou a fazer suas aparições no campeonato principal da APEA. Vale lembrar que, o Minas Gerais não era um dos grandes times do campeonato, e colecionou más colocações, mas, ainda assim, Petro sempre teve seu papel de destaque. Um episódio marcante pelo Minas foi durante o empate em 4 a 4 contra o Villa Isabel F.C. do Rio de Janeiro em um jogo amistoso, no ano de 1922, no qual Petro marcou os 4 gols do time paulista sendo um deles feito de bicicleta.

Em 1925, Petro passou a defender o S.C. Sírio, clube no qual marcaria sua passagem e teria seu melhor momento. A essa altura o jogador já era visto como um grande craque do futebol paulista, e Salathiel foi um grande defensor de sua convocação para a Seleção (Paulista), o que encontrou alguma resistência, mas aconteceu, enfim, justamente em 1925, e ainda por cima para substituir o famoso Friedenreich. Sua estreia foi no jogo desempate da final contra o Rio de Janeiro, que teve a vitória carioca por 3 a 2. No ano seguinte, ainda defendendo o S.C. Sírio, Petro participou novamente do Campeonato Brasileiro de Seleções, dessa vez como titular da equipe paulista e, além do título, conquistou o status de artilheiro da competição com 13 gols marcados. Ele também participou dos famosos jogos “Preto x Branco” e em 1930 estava no jogo que marcou a terceira vitória da seleção negra. No mais, participou da histórica vitória da Seleção dos jogadores negros sobre a Seleção Carioca em 1929.

Sua liderança no S.C. Sírio era clara e isso rendeu ao jogador convocações para a Seleção Brasileira, a qual Petro defendeu por cinco vezes. Em 1932, Petro vai jogar na Argentina pelo C.A. San Lorenzo, sendo campeão logo em seu campeonato de estreia, no ano de 1933. Sua participação foi determinante para a conquista do título e suas grandes performances lhes renderam as alcunhas de “El Bailarin”, “El Malabarista” e até mesmo como “Fenômeno”.

Petronilho em charge publicada no jornal “A Crítica”, de Buenos Aires (1933).

Petro se tornou um grande ídolo do futebol paulista nas primeiras décadas do século XX, para ativistas como Salathiel, foi um dos grandes personagens do período, que ajudou a romper as barreiras impostas pela exclusão racista presente no futebol. Sua história, na atualidade, não é tão lembrada, mas suas grandes atuações pelo Sírio, pela Seleção Paulista e pela Seleção dos Negros em São Paulo, foram de grande significado para uma população que enfrentava uma sociedade pautada pela ideologia eugenista e racista.

O resgate da história

Esse breve texto teve como proposta apresentar uma outra narrativa sobre a presença do negro no futebol, não uma narrativa que não fosse protagonizada pelos grandes clubes ou pela história mais conhecida, mas uma narrativa que mostre o protagonismo de sujeitos negros na construção da sociedade e do futebol paulista. Relembrar o legado de clubes como A.A. São Geraldo, C.A. Brasil ou de personagens como Petronilho de Brito é, também, relembrar os processos de resistências de uma população que teve sua história e experiências silenciadas pela memória oficial. Ao fazer esse resgate, queremos não apenas trazer fatos desconhecidos ou curiosos à público, mas trazer para o debate o conhecimento de que a população negra construiu seus próprios símbolos e legados, como sujeitos atuantes na sociedade.


Referências bibliográficas

CAMPOS, Salathiel de. O homem negro no esporte bandeirante. Correio Paulistano, São Paulo, 03 out.-28 nov. 1934. Todos os Esportes.

JEUKEN, Bruno. Salathiel de Campos: esporte e política (1926-1938). 2017. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

PINTO, Regina Pahim. O movimento negro em São Paulo: luta e identidade. Ponta Grossa: Editora UEPG, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2013.

SILVA, Marcelo Vitale Teodoro da. Territórios negros em trânsito: Penha da França: sociabilidades e redes negras na São Paulo pós-abolição. 2018. Dissertação (Mestrado em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

Fontes

A Gazeta
A Gazeta Esportiva
Clarim d’Alvorada
Correio Paulistano
Evolução

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Centro de Referência do Futebol Brasileiro/Museu do Futebol

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Marcus Ecclissi

Bacharel em história pela Universidade de São Paulo, estagiário (2018-2020) no Centro de Referência do Futebol Brasileiro, do Museu do Futebol, corinthiano e apaixonado pelo esporte bretão.

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Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade de São Paulo (2020 e 2022). Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo. Estuda Cidade, Futebol e Memória com foco na produção do espaço urbano e da cotidianidade com foco na população negra do início do século XX. Foi membro estagiário do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (2018-19) pertencente ao Museu do Futebol. Atualmente é Educador no Museu Casa das Rosas, gerido pela Organização Social Poiesis, Instituto de Apoio à Cultura, à Língua e à Literatura.

Como citar

FUTEBOL, Museu do; ECCLISSI, Marcus Vinicius Vaz; APOLINáRIO, Everton Cassimiro. Futebol e reparação. Um texto sobre trajetórias negras apagadas. Ludopédio, São Paulo, v. 126, n. 23, 2019.
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