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Futebol: entre o sagrado e o profano

Andréa Bruxellas 11 de maio de 2023

Embora devido à força popular o futebol tenha adquirido um caráter sagrado, especialmente no Brasil onde não faltam trabalhos acadêmicos que ressaltem o locus futebolístico como um espaço fértil para se pensar articulações do esporte inclusive com a religião, pode-se dizer, também, até pela própria natureza dialógica do discurso (BAKHTIN, 2002), que o sagrado por si só pressupõe o profano. Transportando essa reflexão para o contexto atual, em especial para a discussão a que se propõe este artigo, que tem por objetivo pensar nas implicações dos usos das ferramentas tecnológicas e das regras para tornar o futebol ainda mais atrativo para o consumidor, pergunta-se: o “sagrado” ou sobrenatural sobreviverá ao secular? Se ao invés da goleada do título carioca, o Fluminense tivesse sido derrotado pelo Flamengo como na final do Campeonato Carioca de 1991, quem seria o vilão? O árbitro ou o Sobrenatural de Almeida, personagem de Nelson Rodrigues que era responsabilizado por tudo de ruim que acontecia ao tricolor das Laranjeiras?

Essa discussão vem ao encontro das últimas decisões tomadas em Londres durante a reunião da IFAB (International Football Association Board), órgão da Fifa que regula o futebol mundial. [1] Ideias ventiladas antes do encontro apostavam para mudanças significativas nas regras do esporte mais popular do mundo que, segundo dados divulgados no ano passado pela Fifa [2], movimenta cerca de US$ 286 bilhões por ano. Com as cifras girando em torno do valor do PIB da Finlândia ainda existe espaço para pensar no esporte apenas como paixão ou, como diria Rita Lee, como poesia?

Há quem acredite que esse romantismo tenha diminuído bastante e seja quase uma coisa do passado, como o ex-árbitro FIFA Claudio Vinícius Cerdeira, que fazia parte da comissão de arbitragem da CBF até abril do ano passado.

 

“Hoje em dia você vê muito jogador que ama o clube até o momento que não aparece uma proposta um pouquinho melhor de outro clube. Aí ele passa a amar o outro. E se aparecer no ano seguinte uma proposta melhor de um terceiro clube, ele beija o escudo e a nova paixão dele passa a ser o novo clube. Então, realmente o romantismo hoje não tem mais espaço no futebol porque as cifras envolvidas são muito grandes. Os salários dos jogadores hoje são uma coisa fora do normal. O romantismo ficou em quinto plano. Nós tivemos aí craques de futebol no passado, até num passado recente, que não ganhavam a décima parte que um menino vindo das categorias de base e subindo para equipe dos profissionais ganha hoje em dia. Hoje se fala num salário de R$ 800 mil, R$ 1,5 milhão. É uma coisa de louco. Não tem mais romantismo. Tem é dinheiro no bolso. Tem o clube que paga mais e o jogador passa a amar, passa a beijar o escudo. Fora isso, o romantismo é perto de zero”, constata (CERDEIRA, 2023).

Mas para o torcedor, a paixão pelo time de coração continua em alta. Haja vista as costumeiras reações às derrotas, que vão do choro à revolta. No meio desse misto de sentimentos, muitas vezes está o árbitro, frequentemente vítima de agressões e ofensas morais dentro e fora de campo. E, num país em que a impunidade ainda impera, frequentemente os jogadores se livram de uma punição mais rigorosa. Tudo em prol do espetáculo. E é justamente para manter a espetacularização do esporte e minimizar os erros dos árbitros que foi implantado na Copa da Rússia o sistema eletrônico de apoio à arbitragem, conhecido como VAR (Video Assistant Referee). A tecnologia, usada em situações que envolvam lances duvidosos ou possíveis cartões vermelhos, hoje, até pelos vultosos investimentos dos clubes, é considerada imprescindível em jogos importantes de qualquer campeonato de futebol. Ainda mais porque competições importantes como a Copa do Brasil, a Libertadores, a Sul-Americana têm premiação por fases, o que torna cada jogo decisivo na medida em que quantias importantes para os clubes estão em jogo e, justamente por isso, erros são inadmissíveis. Daí a importância do VAR, como explica Cerdeira.

Cláudio Cerdeira
Foto: acervo pessoal Cláudio Cerdeira.

O VAR chegou para corrigir erros grosseiros que a gente via na televisão. O árbitro só tinha um ângulo de visão e muitas vezes era humanamente impossível observar todos os detalhes de um determinado lance. O VAR tem no mínimo oito câmeras para o árbitro consultar. Tem a câmera um, a câmera que aproxima, a câmera lenta, a câmera invertida. Então, você disseca o lance e a decisão é muito mais correta. Os erros grosseiros não acontecem mais. Pode acontecer um ou outro erro porque na verdade o VAR é um outro árbitro. Então, ele pode interpretar de uma forma e, o árbitro de campo, de outra. E, mesmo com todas as câmeras, algumas situações ainda provocam dúvidas e decisões controversas. Uns acham que sim, outros que não. Isso faz parte do futebol (CERDEIRA, 2023).

Cerdeira sabe bem o peso que é apitar uma partida decisiva como a que aconteceu no último dia 9 de abril. No Campeonato Carioca de 91, sofreu com as reclamações do Fluminense após ter expulsado dois jogadores. Independentemente de as expulsões terem sido justas e as regras cumpridas, ou não, as polêmicas foram inevitáveis.

O ex-jogador Junior, que disputou aquela final vestindo a camisa do Flamengo, não lembra de nenhum erro de atuação de Cerdeira.

Cerdeira sempre foi um árbitro muito correto. Quando era escalado dava muita tranquilidade pra gente pela qualidade dele. Mas erros sempre existiram e sempre vão existir por parte da arbitragem porque eles são humanos, né? Ainda mais quando você tem regras de interpretação. No entanto, na minha opinião, agressões a árbitros deveriam receber penas bem severas. Não tem nem o que discutir (JÚNIOR, 2023).

Essas agressões voltaram a se repetir no estadual deste ano. No primeiro FlaxFlu da decisão, o árbitro Wagner Nascimento Magalhães depois de dar o cartão vermelho para o jogador Samuel Xavier acabou tendo que expulsar também o técnico do Fluminense, Fernando Diniz, por causa de um xingamento. Embora nas duas situações o árbitro estivesse respaldado pelo regulamento, as revoltas só foram amenizadas após a goleada do segundo jogo, que contou com uma arbitragem ainda mais cuidadosa.

Portanto, se as polêmicas e o nervosismo fazem parte das decisões, tudo indica que a comunicação do VAR com público não vá resolver de todo o problema. No entanto, a oportunidade de os árbitros poderem apresentar explicações para os espectadores presentes ou não no estádio, o que já acontece no futebol americano, promete dar mais transparência às decisões tomadas após o auxílio do VAR. A primeira experiência aconteceu no Mundial de Clubes, no Marrocos, quando as imagens do VAR foram transmitidas no telão no estádio, e serão novamente testadas no mês que vem, na Indonésia, no Mundial Sub-20 e, também, no Campeonato Brasileiro. A ideia da IFAB é fazer uma avaliação durante 12 meses para poder optar com segurança pela implantação definitiva do sistema.

O comentarista Junior acha a iniciativa de mostrar nos telões o que está sendo checado pelo VAR bem interessante.

VAR
Arte: lumyaisweet/Depositphoto.

Você tem a participação do próprio público que no momento também vai ver e decidir o que está sendo analisado pelo árbitro. Essa tecnologia veio para contribuir, sim, apesar de ainda termos muitos problemas com quem opera o mecanismo do VAR. Mas eu acho que é justo usar o VAR porque é muito difícil você perder um jogo por uma jogada ilegal. Tudo que for trazido para tornar o futebol mais justo é importantíssimo (JÚNIOR, 2023).

VAR
CBF VAR. Foto Lucas Figueiredo/CBF.

Outrossim, algumas mudanças vistas com bons olhos por parte da torcida como a substituição do relógio corrido pelo relógio parado, como acontece nas partidas de basquete, não têm prazo definido nem para implantação nem para teste. Embora a questão do tempo perdido durante as partidas seja bastante sensível também para as associações britânicas, que detêm quatro dos seis votos necessários para mudança de regras no futebol, não foi dessa vez que a mudança passou. A tendência é que os árbitros sigam dando acréscimos longos como os verificados durante a Copa do Catar e apenas algumas restrições para poupar tempo sejam adotadas.

Junior acha muito difícil que essa possibilidade do cronômetro parado venha um dia a ser adotada no futebol.

Eu acho que os acréscimos que fizeram durante a Copa do Mundo em alguns pontos foram até exagerados. Hoje como você tem cinco substituições de cada lado, perde no mínimo três minutos. Aí fica por conta do árbitro os acréscimos. Mas no futebol de campo fica mais complicado adotar o cronômetro parado, não vejo vantagem. A mudança aconteceu no futebol de salão pelas dimensões do campo. Além disso, as mudanças de regras no futebol ao longo da história foram poucas (JÚNIOR, 2023).

Os jogadores poderão continuar comemorando os gols de forma espontânea, claro que com o cuidado de não tirar a camisa ou subir em alambrados. No entanto, todo esse tempo de comemoração passará a ser devidamente medido e acrescido ao tempo de jogo.

Assim como para a filosofia a grande arte do homem seja roubar momentos do tempo para eternidade, o futebol reivindica a própria eternidade durante os 90 minutos. E, para isso, vai tentando diminuir as malandragens com novas regras, como a proibição dos goleiros atrasarem as cobranças de pênaltis, como fez o argentino Dibu Martínez na Copa do Mundo do Catar usando o jogo psicológico para desestabilizar os cobradores.

Mas outras mexidas nas regras ainda ficarão pendentes como a mudança da regra 15, que fala do arremesso lateral. Hoje a regra obriga que o lateral seja cobrado com as mãos embora a possibilidade da cobrança com os pés pudesse dar uma maior dinâmica ao jogo.

Independentemente da aparência de arbitrariedade que envolve essas definições de regras, o rito e a festa do futebol continuam vivos.  Caberá aos jogadores, clubes, árbitros, torcidas e federações derrotarem o caos presente nas disputas pra dotarem de sentido as partidas e manterem, assim, a poesia e a sacralidade do esporte.

Referências

BAKHTIN,Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagemSão Paulo: Hucitec Annablume, 2002.

CERDEIRA, Claudio Vinícius. Entrevista concedida à Andréa Bruxellas. Rio de Janeiro, 10 de abr. 2023.

ELIADE,Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiõesSão Paulo: Martins Fontes, 2001.

JÚNIOR, Leovegildo L.G. Entrevista concedida à Andréa Bruxellas. Rio de Janeiro, 11 de abr. 2023.


[1] Disponível em: < https://extra.globo.com/esporte/ifab-decide-manter-jogos-com-90-minutos-acrescimos-longos-irao-continuar-2567056  > Acesso em: 10 de abr. 2023.

[2] Disponível em: <: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2022/09/27/futebol-movimenta-o-equivalente-ao-pib-da-finlandia-diz-presidente-da-fifa.ghtml > Acesso em: 10 de abr. 2023.

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

BRUXELLAS, Andréa. Futebol: entre o sagrado e o profano. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 12, 2023.
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