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Futebol Líquido

Gabriel Said 20 de maio de 2024

Cada vez mais vemos treinadores improvisando ou encontrando novas posições para jogadores. Em seus últimos anos em Liverpool, Fabinho mostrava que podia jogar de volante. Manchester City de Guardiola tem zagueiros na lateral ou até subindo como se fosse volante. A Inter de Milão campeã italiana na temporada 2023/24 treinada por Simone Inzaghi teve seus meias e zagueiros trocando de posições em alguns momentos dos jogos. No Real Madrid, Camavinga fez partidas como lateral esquerdo apesar de ser um meio-campista. No Brasil não é muito diferente. Ainda faz sentido pensar os jogadores como se pertencessem a uma posição? Por que essas adaptações estão acontecendo mais hoje?

Andrea Pirlo
Pirlo como treinador da Juventus. Fonte: canno73/depositphotos

Em 2020 Andrea Pirlo defendeu sua tese para adquirir a Licença Pro de treinador de futebol (a licença máxima) na federação italiana. Sua tese, chamada Il Calcio che Vorrei” – O futebol que eu gostaria, em tradução livre – é uma defesa de uma ideia de jogo em que Andrea acredita, em que apresenta os fundamentos e princípios táticos de forma que cada capítulo é um momento do jogo: fase ofensiva, fase defensiva e transições, nesta ordem. O que chama a atenção para trazer essa tese aqui é que ainda na introdução Pirlo (p.3) relaciona a noção de relações líquidas com o jogo:

Nel calcio moderno ormai il modulo di gioco sta cambiando la propria funzione. Da una disposizione statica dei giocatori si sta arrivando ad un’occupazione dinamica delle posizioni funzionali ai principi del modello di gioco. Una disposizione che varia nelle due fasi (offensiva e difensiva) e dei momenti emozionali che si alternano in partita. Ricercheremo dunque giocatori tecnici e dinamici, dando importanza all’uno contro uno soprattutto per i giocatori esterni. Attraverso le esercitazioni vogliamo aiutare i giocatori a riconoscere le situazioni ed adattarsi al contesto sempre più liquido delle partite.”

“No futebol moderno, a formação tática de jogo está mudando a sua função. De uma disposição estática dos jogadores caminhamos para uma ocupação dinâmica das posições funcionais aos princípios do modelo de jogo. Uma disposição que varia nas duas fases (ofensiva e defensiva) e momentos emocionais que se alternam durante a partida. Procuraremos, portanto, jogadores técnicos e dinâmicos, dando importância ao jogo um contra um, especialmente para jogadores externos. Através de treinos queremos ajudar os jogadores a reconhecerem as situações e a adaptarem-se ao contexto cada vez mais líquido das partidas.” (tradução livre)

O sociólogo Zygmunt Bauman ao invés de chamar esse período posterior à modernidade de pós-modernidade, a tratava como modernidade líquida. Isso porque Bauman entendia que não havia uma cisão com a modernidade, como pós-modernistas propunham. Bauman era crítico da pós-modernidade por, entre outros motivos, entender esse período como continuação, ou prolongação da modernidade, mas em que a rigidez das relações humanas se torna mais frágeis e dinâmicas, ou como ele propõe comparar: deixam de ser sólidas e passam a ser líquidas (2007, p.7):

“Em primeiro lugar, a passagem da fase ‘sólida’ da modernidade para a ‘líquida’ – ou seja, para uma condição em que as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam.”

A noção de liquidez para Bauman vinha sendo formada desde antes do seu livro Modernidade Líquida; desde Modernidade e Ambivalência o sociólogo já preparava o terreno e a ambivalência é fundamental para compreender a metáfora da liquidez: embora o líquido possa adquirir novas formas constantemente, seu conteúdo não muda. A modernidade líquida é então caracterizada por essa ambivalência estrutural, onde algumas coisas estão em constante transformação e outras, que mantém a característica da era como ‘moderna’ não mudam. As coisas se transformam ao mesmo tempo que se conservam, ou até para se conservarem.

Nas últimas semanas no futebol brasileiro discussões sobre jogadores jogando em suas posições ou melhor, fora delas, estão mais frequentes do que em outros momentos que consigo lembrar.

No dia cinco de maio o Botafogo recebeu o Bahia no Rio de Janeiro, partida que terminou com triunfo baiano por 2 a 1 e que chamou a atenção quando nos minutos finais o zagueiro Alexander Barboza entrou em campo como atacante. Ao mesmo tempo Gregore, volante, foi recuado para a zaga. A explicação foi dada pelo Alexander:

“Nós sempre queremos ganhar. Em casa ou visitando, a ideia é sempre ganhar. Talvez minha entrada de 9, de centroavante, é porque estávamos chegando muito pelos lados e tínhamos vários cruzamentos, nos quais acabamos não encontrando uma cabeça quando estava só o Júnior de centroavante. E era a ideia de colocar um homem mais, justamente para tentar gerar alguma jogada de gol, que nos desse uma possibilidade”.

O Botafogo não tinha para esta partida alternativa de jogadores de ataque com as características que Alexander Barboza explicou que eram desejadas, restando para ele a função por ser o jogador que chegava mais perto das características para essa função de centroavante para ganhar mais disputas de cabeça, aproveitando os cruzamentos do time.

Alguns dias antes, no primeiro de maio, em coletiva após o jogo entre Fortaleza e Vasco da Gama válido pela Copa do Brasil, Juan Pablo Vojvoda ao ser questionado sobre o acúmulo de jogos da dupla de zaga, Titi e Emanuel Brítez, o treinador respondeu:

“São jogadores que estão repetindo os jogos, mas temos algumas opções que estamos treinando. Enquanto à características dos jogadores, eles mais o Jonatan são os jogadores com características de zagueiro que temos no elenco. Vocês já sabem, já conhecem a comissão técnica e muitas vezes fazemos algumas mudanças porque eu considero… bom, essa é uma conversa que podemos ter, não sei se neste momento, mas acho que o futuro do futebol como já está acontecendo no mundo é não encarcerar jogadores em uma só posição. Muitas vezes quando se montava elencos se dizia ‘eu quero dois laterais direitos, dois zagueiros direitos, dois zagueiros esquerdos, dois laterais esquerdos, não sei’, e agora quando monta um elenco se diz ‘aqui está este jogador, quais funções ele pode cumprir? Pode jogar de zagueiro, de volante e pode jogar de lateral. Um mesmo jogador pode jogar em três funções? Sim.’ Então acho que o futebol vai por aí, enquanto visão de treinadores vai por aí. Temos o Brítez, ele é zagueiro, mas já jogou de lateral direito? Sim. Já jogou de lateral esquerdo? Sim. Já jogou de zagueiro com três zagueiros? Sim. Acho que isso o beneficia e a evolução de todo o time.”

Como não é de surpreender, no Brasil o treinador que mais provoca discussões e reflexões nos últimos anos é Fernando Diniz, seja por questões de dentro ou fora de campo. Neste ano de 2024 o volante Thiago Santos foi uma surpresa ao jogar como zagueiro, algo que já vinha sendo preparado desde 2023.  Além dele, Marquinhos, ponta canhoto emprestado pelo Arsenal-ING já fez algumas partidas como lateral direito; em uma partida do Campeonato Carioca contra o Madureira o lateral esquerdo Diogo Barbosa pareceu mais um zagueiro, enquanto o volante Gabriel Pires recuava entre os zagueiros; o volante Martinelli fez alguns jogos como zagueiro; o André ser recuado para a zaga já se tornou usual, com o movimento acontecendo desde 2022. Podemos também lembrar de jogadores que mudaram de vez sua posição com Diniz; casos de Caio Paulista em 2022 e Caio Henrique em 2019. Sem contar os movimentos durante a partida, que por vezes nos faz ver o atacante Cano parecer um meia, o Marcelo deixar a lateral esquerda para jogar na ponta direita, etc. Com Fernando os exemplos são tantos que ainda deixei escapar alguns (e certamente com outros treinadores os exemplos poderiam ser maiores também).

Quando perguntado sobre as mudanças, em uma entrevista exclusiva ao GE, Diniz explicou:

“Primeiramente, eu acredito que o fundamental é saber onde cada jogador pode render mais. Normalmente, avalio onde ele vai ter mais chances de ser titular, de jogar bem, de ter uma ascensão social. Não é só ser titular, também tem que sentir prazer em jogar. A improvisação do Samuel Xavier foi lá atrás, no Paulista de Jundiaí. Ele jogava mais por dentro e eu o coloquei pelo lado. Achei que tinha a ver com ele (pelo estilo de jogo). De novo, o jogador quer ser titular, mas quer jogar bem. O Caio Paulista jogava de ponta. Ele sai daqui (do Fluminense) muito por conta do que a torcida criou com ele por antes (foi contratado por R$ 10 milhões, um valor considerado alto na época). Porque como lateral ele nos ajudou em muita coisa. Foi para o São Paulo e contratado pelo Palmeiras como lateral. Esse é o ponto fundamental. Léo Pelé jogava na lateral no São Paulo. Nunca foi um jogador de ter muita profundidade e dar assistência. Num time grande, lateral que não dá assistência está fadado a receber críticas. Mas ele sempre foi bom defensor, tem bom passe, e fui convencendo a jogar por dentro. Ele foi vendo que ali é a parada dele. Ele saiu de um patamar de jogador e subiu muito. Era questionado no São Paulo e hoje é capitão do Vasco”.

Vamos voltar ao Pirlo (p.5):

“[…] nel calcio moderno il significato di ruolo sta cambiando. Non è più una posizione fissa che identifica le caratteristiche di un giocatore, ma sempre di più sono le diverse funzioni e quindi i compiti che un calciatore svolge in gara ad identificarlo. Dunque le caratteristiche dei giocatori vengono esaltate attraverso i compiti che è chiamato ad eseguire.”

“[…] no futebol moderno o significado de função está mudando. Não é mais uma posição fixa que identifica as características de um jogador, mas cada vez mais as diversas funções e, portanto, as tarefas que um jogador de futebol desempenha na partida que o identificam. Portanto, as características dos jogadores são potencializadas através das tarefas que são exigidos a desempenhar.” (tradução livre)

Na sequência do seu trabalho, Pirlo descreve as posições e suas obrigações tradicionais, como um guia para quais competências os jogadores devem – idealmente – conseguir cumprir para desempenhar tais funções.

Aí identificamos a liquidez no jogo de futebol, ao menos nas táticas do jogo; ao mesmo tempo que vemos aumentar o número daquilo que entendemos como ‘improvisações’, as posições não deixam de estar presentes nas estruturas das equipes. A diferença é que ao invés de olhar para posição de origem do jogador, estão sendo avaliadas suas competências para uma função desejada, e aí uma ‘improvisação’ pode surgir, seja através de um longo processo de adaptação para a nova posição, ou, em casos extremos, pela urgência do jogo. Acredito que a maioria dos casos sejam testados e avaliados em treino antes de serem levados para o jogo.

Se as mudanças serão boas ou más, se deram resultado, essas questões devem ser vistas caso a caso. Fato é que hoje já faz mais sentido hoje pensar em como um jogador atua em certa função ou como pode contribuir em diferentes posições, ao invés “encarcerar” em uma posição, como falou Vojvoda. Não se trata de algo isolado, mas um fenômeno global no futebol e sua evolução histórica.


Bibliografia e referências

BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

PIRLO, Andrea. Il Calcio che Vorrei. Corso per allenatore professionista di 1º categoria UEFA Pro. Stagione 2019-2020.

Barboza explica entrada como 9 em derrota do Botafogo: estávamos chegando pelos lados. <acesso em 11/05/2024>

Destaque em vitória do Fluminense, Thiago Santos revela treinar mais como zagueiro e agradece psicóloga. <acesso em 13/05/2024>

Coletiva com Vojvoda, Fortaleza 0x0 Vasco Copa do Brasil 2024. <acesso em 12/05/2024>

Diniz vê sentimento puro na relação com o Fluminense e cita tristeza muito grande em saída da Seleção. <acesso em 15/05/2024>

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Antropologia pela UFF e treinador com Licença B pela Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). E-mail: gabriel.said@gmail.com

Como citar

SAID, Gabriel. Futebol Líquido. Ludopédio, São Paulo, v. 179, n. 22, 2024.
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