172.22

Futebol, você bem me quer ou mal me quer?

Anabella Léccas 22 de outubro de 2023

Recentemente, em um seminário, tive a oportunidade de escutar pela primeira vez um trecho do livro “Febre de Bola”, de Nick Hornby. Confesso que a existência da obra não me era desconhecida, eu apenas não tinha tomado a iniciativa de procurá-la ainda, contudo, de repente, ela felizmente se colocou em meu caminho. O livro, que age como um relato autobiográfico, reúne as experiências do autor com o futebol e, também, mostra as suas vivências com o Arsenal, time inglês por quem é fanático desde a infância. 

No trecho que me inspirou a redigir este trabalho, ou, melhor definindo, este relato, o autor nos conta sobre uma lembrança de sua infância. O trecho se passa em 1967, quando, em um jogo do Arsenal, Hornby percebeu pela primeira vez a imersão emocional e os sentimentos irracionais provocados pelo futebol:

Eu já tinha ido a espetáculos públicos antes, claro; tinha ido ao cinema e a peças de Natal, e visto minha mãe cantar no coral do White Horse Inn, no Salão Municipal. Mas aquilo era diferente. As plateias das quais eu havia feito parte até então pagavam o ingresso pra se divertir e, embora aqui e ali se pudesse flagrar uma criança impaciente ou o bocejo de um adulto, nunca antes eu vira rostos como aqueles, contorcidos de ódio, desespero e frustração. O sofrimento como entretenimento era uma ideia completamente nova pra mim, e parecia ser alguma coisa pela qual eu estava esperando.” 

(HORNBY, 2000, p. 19 – 20).

Diferente de Nick Hornby, sou mulher, brasileira e flamenguista, mas, mesmo em um continente distinto, com uma cultura completamente diferente do autor, eu consegui entender plenamente o que ele dizia. E, mais do que apenas me promover uma identificação, a citação acima fez com que os seguintes questionamentos passassem pela minha cabeça: por que eu sofro tanto pelo futebol? E quando foi que esse sentimento começou?

Durante a infância e adolescência, cresci em uma casa com dois torcedores fanáticos por futebol: o primeiro, o meu avô José Mário, tricolor ávido pelo Fluminense, cadastrando-se até no plano de sócio torcedor do time e, o segundo, o meu irmão mais velho, Alessandro, um dos flamenguistas mais emotivos e incontidos que eu já conheci na vida. Diferente do que o cenário sugere, o clima em dia de jogo era de paz e poucas brincadeiras fomentadas pela rivalidade aconteciam. Inclusive, quando meu irmão ainda não podia andar sozinho, o meu avô se encarregava prontamente de levá-lo de trem aos jogos do Flamengo no Maracanã.  

Em meio a essa dualidade, a famosa influência exercida pelos irmãos mais velhos venceu e, logo na infância, passei a me identificar como flamenguista. Na época, eu não percebi, mas acho que foi uma das primeiras grandes escolhas que eu fiz na vida. Digo isso, porque eu não escolhi o país em que nasci, não opinei sobre o meu nome e nem agendei a data do meu aniversário, mas eu pude escolher o meu time e, entre todas as opções, entre todas as histórias, eu escolhi o Clube de Regatas do Flamengo.

Acredito que ao abraçar um time, não estamos tomando uma decisão passageira, mas sim, uma decisão definitiva e agora, na fase adulta, vejo que o meu eu da infância fez uma escolha que me definiria para o resto da vida. Acho válido informar aos leitores deste relato que, para o azar do meu avô, apenas um de seus seis netos fez a escolha de ser tricolor e, enquanto isso, todos os outros cinco escolheram ser flamenguistas.

Bom, mas cadê o sofrimento como entretenimento que Hornby menciona? Devo dizer que antes de escolher o meu time, eu não entendia porque o meu irmão chorava nas derrotas do Flamengo, eu achava engraçado e só conseguia pensar que bastava ganhar no próximo jogo, o mundo não tinha acabado. Quero dizer, aparentemente não tinha, mas, um tempo depois, as lágrimas passaram a fazer sentido pra mim e, as rachaduras responsáveis por destruir o planeta terra, que o levariam a se tornar pó, passaram a ser visíveis aos meus olhos.

Desse modo, a nova questão que surgiu em minha mente foi: por que o meu irmão via esse mundo acabar todas as vezes e, mesmo assim, não parava de ser flamenguista, não parava de torcer, não desistia do time e nem deixava de ir aos jogos, por que continuava lá? Porque o futebol é incerto e, onde existem as derrotas, também existem as vitórias, os grandes momentos de glória, as viradas sofridas aos 45 do segundo tempo, os tão sonhados títulos, existe a torcida e toda a sua emoção, existe de tudo.

E, por mais que a tristeza, a raiva, o ódio e o sofrimento fossem indissociáveis do futebol, também era possível ter esperança e fé de que a glória e a alegria poderiam surgir em qualquer momento. Acredito até que a imprevisibilidade é um dos grandes atrativos do esporte, pois, por mais que ela seja extremamente sofrida, é o que faz a gente ansiar pela vitória e isso não tem preço. Quero dizer, caso a dor de cabeça, o nervosismo e o choro já não sejam considerados um bom pagamento.

Em fevereiro deste ano fui ao Maracanã assistir ao jogo do Flamengo contra o Independiente Del Valle, pela taça da Recopa Sul-Americana. Cinco horas antes do jogo, eu estava no estágio e ainda não tinha o ingresso, mas recebi uma mensagem tentadora da minha prima, Larissa, perguntando se eu iria com ela caso a gente encontrasse um vendedor de última hora. Eu só não sabia que, cinco minutos depois, eu encontraria esse vendedor e, para nossa euforia, ele não teria só dois, mas três ingressos, permitindo que meu primo Felipe também fosse incluído nesta travessia ao grande Maracanã.

Torcida Flamengo
Foto: Alexandre Vidal/Flamengo/Fotos Públicas

O jogo foi angustiante e durante o primeiro tempo, nenhum time marcou gols, contudo, o Independiente Del Valle já tinha um gol no jogo de ida e o 0x0 lhes dava a vitória. Desse modo, o jogo parecia correr cada vez mais rápido, o fim parecia cada vez mais próximo e a angústia só crescia, porém, já nos acréscimos do segundo tempo, levando os torcedores ao delírio e o Flamengo a prorrogação, Arrascaeta marcou um gol com a assistência de Everton Cebolinha.

Neste jogo em específico, não haviam torcedores visitantes, apenas Flamenguistas e a emoção de ver aquele gol tão esperado em um “Maraca” lotado, com todo mundo cantando e torcendo pelo mesmo time, foi emocionante. A prorrogação seguiu sem gols e a final da Recopa seguiu para a decisão de pênaltis. Diferente da explosão e do tremor provocados pelo gol de Arrascaeta, o resultado da disputa de pênaltis promoveu um silêncio “ensurdecedor” no Maracanã e, por 5×4, o Flamengo perdeu a disputa e o Independiente Del Valle levou a Recopa.

A tristeza e a melancolia após o final do jogo foram inevitáveis, parecia que o gol do Arrascaeta, que tinha nos dado tanta esperança, havia acontecido há semanas atrás. A alegria estonteante, responsável por dominar a torcida, foi substituída bruscamente por um vazio coletivo e a primeira pergunta que surgiu em minha cabeça, foi: por que eu vim?

Eu sabia que o resultado poderia ser ruim e que eu poderia presenciar o Flamengo perdendo uma disputa de pênaltis ao vivo, mas, ao mesmo tempo, tinha o conhecimento de que poderia ver o time conquistando mais um título, fazendo história e, bom, por isso eu fui e, por esse motivo, eu não me arrependo.

Acho, então, que é exatamente por essa razão que eu sofro pelo futebol, pois, no fim dos resultados, sendo eles bons ou ruins, o time que eu tanto amo ainda estará ali, à minha espreita. Não é possível ignorá-lo, não terei paz se fizer isso, estarei negando uma parte de mim, estarei fechando os olhos para algo que me representa e que, muitas vezes, é a fonte da minha alegria.

 A relação com o time não é puramente devoção, é, também, uma relação onde você quer saber o que o outro faz, como anda, se está bem e eu quero continuar sabendo do Flamengo para sempre, mesmo que as novidades sejam desanimadoras e me façam repensar escolhas que eu não posso controlar. Escolhas que, na verdade, eu não tenho.

No final de 2016, o meu amado avô tricolor faleceu e, no dia de seu enterro, eu e meu irmão vestimos camisas do Fluminense com muito orgulho. E sabe por que com orgulho? Porque, no fim das contas, aquela camisa era sobre ele, o Fluminense representava o meu avô, era uma parte inesquecível de sua personalidade que eu vou lembrar pra sempre, assim como as outras pessoas também vão. E acho que esse amor é maior do que qualquer decepção futebolística.

Fluminense
Foto: Marcelo Gonçalves/Fluminense FC/Fotos Públicas

Hornby e minha família me fizeram concluir que, vestir as camisas de nosso time e torcer sem impedimentos é a melhor solução, pois, a escolha pelo sofrimento já está feita, não se tem mais como voltar atrás. Por isso, chorem livremente nas derrotas, mas também não deixem de liberar urros de muita alegria nas vitórias, pois, a jornada com o nosso time é longa, mas, os resultados ainda estão incertos.

Desse modo, vamos viver com orgulho nessa incerteza eterna do futebol, pois não há muito que possamos fazer, já fomos os escolhidos. E que sorte a nossa!

HORNBY, Nick. Febre de bolaSão Paulo: Companhia das Letras, 2013.

 
 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

 
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

LéCCAS, Anabella. Futebol, você bem me quer ou mal me quer?. Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 22, 2023.
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