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Gilmar Mascarenhas: professor, geográfico do futebol e botafoguense

Plínio Labriola Negreiros 10 de julho de 2019

Em 1995, tive o prazer de participar do III Encontro Nacional de História do Esporte, Lazer e Educação Física, organizado pela UFPR e ocorrido em Curitiba. Esse evento originou-se da iniciativa do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da UNICAMP em 1993, com a especial dedicação do professor Ademir Gebara. Vivi a experiência de ter contato com pesquisas e pesquisadores de áreas próximas à minha. Na realidade, a minha pesquisa, sobre a história de um clube de futebol, não tinha maiores interlocutores. Não havia quem tratasse do futebol a partir desse recorte. Os debates mais próximos relacionavam-se com a chegada do futebol no Brasil e a sua expansão. Estavam presentes, ainda, discussões sobre a essência do futebol brasileiro, daí a presença de análises sobre a obra de Mário Filho, O negro no futebol brasileiro, uma grande referência para as ciências sociais e humanas acerca dos estudos do futebol.

Um breve parêntese: o Encontro hoje é denominado de Congresso Brasileiro de História do Esporte, do Lazer e da Educação Física – Chelef. Em 2018 foi realizada a sua 15ª. edição, em Curitiba. Trata-se de um evento essencial para o desenvolvimento dessas áreas do conhecimento e necessita, sem dúvida, de um resgate crítico. No portal de esportes argentino Efdesportes há uma boa análise desse Encontro/Congresso.

O IV Encontro, em 1996, realizou-se na UFMG, em Belo Horizonte, e continuou muito rico para as minhas pesquisas. Continuei o contato com uma série de pesquisadores. Estranhamente, poucos de São Paulo. Havia pessoas da Escola de Educação Física da USP, mas ligadas à história da Educação Física e sem referências ao futebol. O mesmo acontecia em relação à UNICAMP. Assim, os meus interlocutores eram do Rio de Janeiro, do Paraná e de Minas Gerais.

Já no V Encontro, realizado pela Escola Técnica de Alagoas, pela Universidade Federal de Alagoas e pela Universidade Estadual de Campinas, em novembro de 1997, ocorreu em Maceió. Muito distante de São Paulo em comparação com Curitiba e Belo Horizonte, significava custos maiores. Assim, busquei ajuda da direção do próprio encontro e do meu programa de pós-graduação, História da PUC-SP. Obtive, assim, os bilhetes aéreos, na época bem mais caros do que hoje.

Absolutamente nada a reclamar do evento de Maceió. Fomos muito bem tratados pela organização. Houve momentos importantes, como a palestra sobre a História do futebol na Inglaterra ministrada pelo professor Eric Dunning. Outro momento especial foi a palestra do historiador Edgar De Decca, uma referência para a historiografia brasileira. Apresentei dois trabalhos: um sobre o estádio do Pacaembu e outro sobre a presença brasileira na Copa de 1938. No tempo livre, usei na revisão do que se tornaria a versão final da minha tese sobre o futebol durante o Estado Novo.

Para a intenção deste texto, uma pequena e necessária volta ao tempo. Ao chegar em Maceió, faltava a hospedagem. Existiam algumas indicações do Encontro sobre isso. Em um dos hotéis indicados, na principal praia de Maceió, encontrei outro inscrito no Encontro buscando acomodação. Neste contexto, conheci um pesquisador do Rio de Janeiro: o geógrafo do futebol e botafoguense Gilmar Mascarenhas de Jesus, que apresentou o trabalho Os esportes e a modernidade urbana: advento do futebol no Brasil. Nasceu ali uma amizade de duas décadas. Amizade, infelizmente, interrompida por um trágico acidente que tirou a vida desse brilhante professor e pesquisador, criador da inédita cadeira de Geografia do Esporte.

Gilmar Mascarenhas, em evento em Belo Horizonte. Foto: Sérgio Settani Giglio.

A nossa amizade garantia a troca de informações e bibliografia/fontes e de olhares menos acadêmicos sobre nossas paixões no futebol. Ambos nascidos em 1962. Gilmar, nascido no Rio de Janeiro, poucos dias depois da conquista do bicampeonato mundial de futebol no Chile, recebia o nome do goleiro do selecionado nacional e mais tarde, a paixão da família migrante nordestina pelo Botafogo. Eu nasci em São Paulo meses antes e se a escolha do meu nome não derivou de nenhuma referência futebolística, o mesmo não ocorreu a paixão por um clube: meu pai apontou o caminho do corinthianismo. Dessa forma, fui surpreendido no dia 04 de julho de 2012 com o seguinte e-mail do Gilmar:

Caríssimo amigo

Há muito tempo não nos falamos!

Não poderia deixar de ser você a primeira pessoa a quem dirijo palavras eufóricas de parabéns pelo título conquistado de forma absolutamente incontestável. Alegria para a maior torcida do Brasil. E você como está?

Grande abraço

Gilmar Mascarenhas

Minutos após a conquista da Libertadores da América pelo Corinthians, recebi esse e-mail. Nesse momento, o Gilmar estava fazendo seu pós-doutorado na França sobre megaeventos esportivos e seus impactos urbanos.

Em maio de 2014, no Simpósio Internacional do Futebol, o reencontrei e comprei o seu livro inspirado na sua tese, defendida na Geografia da USP em 2001: Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol – obra editada em 2014 pela EdUERJ. Na segunda capa, palavras do jornalista Juca Kfouri:

Dos trens ingleses às arenas pasteurizadas, Gilmar Mascarenhas – nome de goleiro, cabeça de artilheiro – passeia magistralmente pela geografia do futebol brasileiro e mundial.

Eu nunca havia lido nada igual para melhor entender como foi possível voar do duro chão dos trilhos aos céus da glória por meio de um futebol capaz de vencer a pernada, mas incapaz de derrotar a globalização.

O extenuante trabalho de professor do Ensino Básico não me permite muitas leituras pelo mero prazer. Este precisa esperar o instante das férias escolares. Dessa forma, o Entradas e bandeiras foi lido em janeiro de 2015. Imediatamente após a leitura, em 17 de janeiro, mandei um e-mail ao autor:

Prezado Gilmar

Só com as férias foi possível enfrentar o tempo e ler o seu livro. Gostei muito da sua geografia histórica do futebol. Muita erudição e uma análise pioneira do futebol no Brasil. Além disso, algo mais do que especial: o uso que você faz das suas origens familiares para mostrar como o Brasil se modificava e como o futebol era importante para quem chegava em um espaço urbano-industrial.

Parabéns!

Um abraço

Plínio

No ano passado, tivemos um encontro em São Paulo. Ele veio para um evento que aproximava a Geografia e Urbanismo. Tomamos um café e lamentamos os caminhos que o Brasil estava seguindo desde o processo que resultou na queda da presidenta Dilma Rousseff. Gilmar apontava para as muitas dificuldades pelas quais a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Os efeitos do Golpe tornavam-se cada vez mais claros.

Em fevereiro deste ano, recebi um e-mail do Gilmar Mascarenhas, no qual ele se dirigia a uma série de pesquisadores sobre futebol e quem tivessem alguma interface com a questão dos estádios/arenas de futebol. Trata-se de um convite:

Do que estamos falando quando o assunto é estádios de futebol? No plano operacional e urbanístico, um edifício especificamente erigido para acolher espetáculos visando grandes audiências, dotado de expressiva centralidade física e simbólica. Mas também espaço vivido e lugar de referência, alimentando o sentido de pertencimento e a constante fabricação de identidades grupais. Estádios são memória acumulada, vivida coletivamente.

Subvertendo sua funcionalidade precípua, as camadas populares se apropriaram historicamente do equipamento, reinventando-o. O rico movimento de apropriação do estádio faz dele um espaço-tempo singular na reprodução social da cidade.

Todavia, o estádio contemporâneo se vê crescentemente submetido aos implacáveis princípios do gerenciamento técnico-empresarial, promovendo exclusão dos mais pobres e reduzindo sua potência criativa. O Brasil possui quase oitocentos estádios, universo dotado de imensa heterogeneidade contida nos mais variados aspectos: arquitetônico (porte físico, formato e capacidade de público), locacional, econômico, funcional e simbólico. E persistem muitos estádios à margem do processo de “arenização”.

O dossiê Estádios de Futebol pretende reunir reflexões de pesquisadores em torno deste equipamento, seus usos, formas e significados. Um espaço em constante disputa: em construção.

Organizador: Gilmar Mascarenhas (Instituto de Geografia – UERJ).

Gilmar Mascarenhas em sua apresentação no I Simpósio Internacional sobre Futebol, Linguagem, Artes, Cultura e Lazer, realizado de 18 a 20 de setembro de 2013 no Memorial Minas Gerais Vale, em Belo Horizonte. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Muito interessado na história de cada um dos estádios corinthianos, fiquei tentado a aceitar a provocação e escrever um artigo sobre o significado desses espaços tão importantes na tradição corinthiana. Desde o primeiro campo, ainda no Bom Retiro, o Campo do Lenheiro – utilizado nos primeiros tempos do clube até 1918, passando pelo fundamental Estádio da Ponte Grande – o primeiro do Corinthians, em um espaço cedido pela municipalidade e que contou com o trabalho dos jogadores e associados para a sua conclusão – entre 1918 e 1928. Neste ano, uma inflexão na história do clube com a inauguração do Estádio no Parque São Jorge, na Zona Leste paulistana, depois denominado de Alfredo Schurig. Nele, ocorreram partidas oficiais até 2002, em uma partida amistosa contra o Brasiliense (DF). Em 2014, a inauguração do novo estádio – ou seria arena? – em Itaquera, que serviu para abertura da Copa de 2014. E, entre 1940 e 2014, outro “estádio corinthiano”: o do Pacaembu. Tinha medo de assumir um compromisso e não conseguir cumpri-lo. Daí esse e-mail no dia seguinte ao chamado:

Gilmar

Ainda estou em dúvida sobre o meu fôlego…. A tentação é grande…

Pensei numa história dos estádios do Corinthians…

grande abraço

Plínio

Veio uma resposta imediata:

Você é o Dr. Sócrates deste time, experiência, classe e elegância que não podem faltar.

Veja bem, estava pensando eu em algo mais modesto: recuperar todo aquele contexto de criação do Pacaembu (que tens pronto e muito bem escrito) e aportar algo do debate recente sobre privatização, que envolve também os últimos cinco anos, isto é, a vida (de abandono) do Pacaembu pós-criação do Itaquerão… Claro que se tiveres fôlego para a história dos estádios do Corinthians seria fenomenal, mas que tal esse plano B?

abração

Gilmar

Claro que não aceitei a comparação com o grande jogador corinthiano:

Gilmar

Dr. Sócrates? Longe disso… talvez Biro-Biro…

Farei o texto que você sugeriu…

Grande abraço

Plínio

Esta foi a nossa última troca de e-mails. Recebi a notícia da sua morte com muita tristeza, principalmente por uma vida ceifada de forma absolutamente evitável. O professor, geógrafo do futebol e botafoguense Gilmar Mascarenhas ainda nos ofereceria descobertas, análises e reflexões. Estas de um intelectual comprometido com as parcelas da população brasileira mais descuidadas, mais desprovida de direitos essenciais. Já faz muita falta.

Gilmar Mascarenhas em entrevista a Sérgio Settani Giglio. Foto: Sérgio Settani Giglio.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Plinio Labriola Negreiros

Professor de História Estudo a História do Corinthians Paulista e do Futebol

Como citar

NEGREIROS, Plínio Labriola. Gilmar Mascarenhas: professor, geográfico do futebol e botafoguense. Ludopédio, São Paulo, v. 121, n. 15, 2019.
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