113.1

Gol anulado

José Paulo Florenzano 1 de novembro de 2018

O refrão de uma nova canção ecoava pelas ondas do rádio, em 1972, recordando aos moradores da Cidade Maravilhosa de que, no domingo, tinha Maracanã. E, de fato, naquele domingo havia nada mais nada menos do que Flamengo e Vasco. O “clássico dos milhões” vinha cercado de expectativas. Além da disputa pela liderança do Campeonato Carioca, a partida situava em campos opostos os atletas argentinos Doval e Andrada, destaques da competição, o primeiro, rubro negro, artilheiro com 15 gols; o segundo, cruzmaltino, somava 624 minutos sem tomar gols. Seguindo a divisão habitual estabelecida pelas torcidas na arquibancada do estádio Mário Filho, a do Flamengo se encontrava posicionada do lado esquerdo das Tribunas de Honra, enquanto a do Vasco se acomodava do lado direito. Já as torcidas de Botafogo e América, ali presentes para a partida preliminar, foram reunidas atrás do túnel dos árbitros. Pelos quiosques espalhados pela orla marítima, nos bares da cidade, nos botecos do subúrbio, o refrão convidava, insistente: “No domingo tem Maracanã / Tem Maracanã / Tem Maracanã”[1].

Com efeito, cerca de oitenta mil cariocas afluíram ao Templo do Futebol para celebrar o culto da religião mais popular do país. Encarregado de oficiar a cerimônia, o árbitro a iniciava, deixando a bola rolar pelo espaço sagrado onde os fiéis aguardavam a cada domingo o lance mágico capaz de conferir brilho e sabor a uma existência sofrida e insossa. O jogo, porém, corria sob alta tensão, com muito equilíbrio, nenhuma brecha no sistema de trincheiras armado pelos respectivos treinadores. Mas aos 31 minutos do primeiro tempo, como que possuído por uma divindade do futebol, Doval arrancara desde a intermediária do campo, driblando os adversários, um após o outro, até penetrar na grande área e colocar no canto esquerdo do goleiro Andrada: “Todo estádio tremeu de beleza”[2].

Goleiro Andrada. Foto: Revista El Gráfico.

Dessa maneira, Nelson Rodrigues registrava em sua coluna no jornal O Globo o assombro provocado pela jogada genial do atacante argentino. Compartilhando com o dramaturgo tricolor as impressões do lance divino, Armando Nogueira não hesitava em identificá-lo nas páginas do Jornal do Brasil como “um gol de antologia”[3]. E, no entanto, sob a alegação de que o companheiro de ataque, Caio, se achava em posição de impedimento, a obra prima de Doval foi anulada pelo árbitro da partida, José Marçal Filho[4]. Perplexo, o atacante do Flamengo contava aos repórteres de campo a sua reação: “corri para ele e perguntei como poderia anular um gol tão bonito”? Sem encontrar uma justificativa que o convencesse do acerto da decisão, o centroavante argentino desabafava: “Essa foi a maior injustiça que já sofri em toda a minha vida”[5].

Aos 26 anos, Doval buscava reconquistar o terreno perdido em sua carreira de atleta profissional. Contratado em 1970 junto ao San Lorenzo de Almagro, ele não conseguira se firmar no ataque do rubro negro, porque, de acordo com a imprensa esportiva, cedera às inúmeras “tentações” da Cidade Maravilhosa. Depois de emprestar-lhe o passe ao Huracan, no entanto, o Flamengo decidira trazê-lo de volta em 1972. Sem abdicar do estilo de vida que o estigmatizava como indisciplinado, indiferente aos críticos, ele continuava marcando presença nos circuitos boêmios, nas praias cariocas, mas, também, nas áreas adversárias, como o demonstrava a jogada do clássico: “Doval fez um desses gols”, salientava Nelson Rodrigues, que permanecerá na história do futebol como “um momento de eternidade”[6].

Gols, eternos ou efêmeros, continuaram a ser anulados ao longo do tempo, cancelando emoções, espalhando frustrações. Nesse sentido, podemos esboçar uma certa tipologia para os gols invalidados. Existem, por um lado, aqueles que se encaixam na categoria das conclusões banais, desprovidas de importância e despojadas de beleza, cuja anulação não causa sérios prejuízos nem a equipe, nem a torcida, tampouco aos admiradores do futebol arte. Existem, por outro lado, aqueles que, embora não sendo esteticamente raros, poderiam, caso validados, ter alterado a trama da disputa do título. Citemos um exemplo.

Em 1971, São Paulo e Palmeiras se encontraram no Morumbi pela última rodada do Campeonato Paulista. As equipes somavam, respectivamente, 34 e 33 pontos na tabela de classificação. O tricolor, portanto, precisava apenas do empate para sagrar-se campeão. Mais de cem mil torcedores distribuíram-se pelas arquibancadas do estádio Cícero Pompeu de Toledo na expectativa da comemoração do título. Logo no início do jogo o São Paulo abriu o placar com Toninho Guerreiro. Aos 22 minutos do segundo tempo, aproveitando um cruzamento para a grande área, Leivinha mergulhou na bola e empatou a partida. Os atletas do alviverde comemoraram o gol, o auxiliar, Dulcídio Wanderley Boschilla, ato contínuo foi correndo para o centro do campo, mas o árbitro, Armando Marques, sob o argumento surreal de que o atacante não cabeceara a bola, mas a enviara para o fundo das redes com a mão, manteve o placar de 1 a 0 para o tricolor. Uma cabeçada “totalmente normal”, nas palavras de Leivinha, anulada de forma equivocada, como, aliás, o próprio árbitro viria admitir, anos depois, quando os dois se encontraram por ocasião de uma excursão internacional do selecionado brasileiro:

Um dia, na Itália, ele confessou para mim que realmente tinha errado, depois, revendo o lance [na televisão] disse que realmente errou. Até achei uma atitude bonita, pelo menos admitiu o erro, só que isso ele não falava na televisão onde trabalhava[7].

O gol de Leivinha, por si só, não assegurava a taça de campeão ao Palmeiras. O São Paulo possuía time para segurar o empate, ou, ainda, retomar a vantagem no placar. Mas, como relembra o ponta de lança da Academia, à época, com 22 anos, também “poderia haver uma reviravolta naquela altura do jogo”[8]. A mesma observação se aplica ao gol anulado do atacante Pedrinho, na final da Copa do Brasil, disputada em 2018 na Arena Corinthians. Assinalado aos 24 minutos do segundo tempo, a obra de arte do atleta alvinegro também reabria a disputa pelo título, colocando o Corinthians em vantagem, 2 a 1, placar que levava a decisão para os pênaltis (o Cruzeiro havia vencido a primeira partida no Mineirão por 1 a 0).

Todavia, o lance de Pedrinho pertence a uma terceira categoria de gols invalidados pela arbitragem, definida pela mescla do valor estético do gol bonito, como no caso de Doval, com o valor esportivo do gol decisivo, como no caso de Leivinha. Além disso, ele se insere em uma nova paisagem histórica, sob vários aspectos, muito distinta da configuração na qual se encontram situadas as jogadas anteriormente mencionadas. Com efeito, emoldurada pelo cenário sofisticado das arenas esportivas, a anulação do gol foi decretada com o auxílio do árbitro assistente de vídeo, na sigla em inglês, VAR (video assistant referee), acionado com o objetivo de eliminar as injustiças recorrentes na história do futebol, como as que recaíram sobre as carreiras de Doval e Leivinha.

A “máquina da verdade”, como a denomina o cineasta Ugo Giorgetti, foi introduzida com a promessa de depurar os lances capitais de quaisquer irregularidades, ilícitos ou equívocos, deixando subsistir tão somente o gesto técnico, livre das artimanhas encenadas pelos atacantes, a salvo das microviolências praticadas pelos defensores[9]. Nada agora pode escapar à ubiquidade das câmeras de televisão, estrategicamente posicionadas no estádio panóptico: o impedimento no lance, o gol com a mão, o tapa na cara, o puxão na camisa ou o toque por baixo[10].

No caso específico do gol de Pedrinho, ele foi invalidado porque, fora do lance, Jadson do Corinthians teria cometido falta em Dedé do Cruzeiro. Porém, ao invés de dirimir as dúvidas e estabelecer a verdade dos fatos, o árbitro de vídeo, segundo a análise da imprensa paulista, se deixara ludibriar pela performance teatral do zagueiro da equipe mineira. De acordo com esta linha de interpretação, o contato havido entre os dois fora normal e refletia o caráter viril do próprio jogo. Suspeitava-se, no fundo, que a anulação do gol pretendia compensar o pênalti inexistente assinalado pouco antes a favor do Corinthians. A polêmica nos remete à reflexão boasiana assim enunciada pela antropóloga norte-americana Ruth Benedict: “Nenhum ser humano olha para o mundo com olhos puros, mas o vê modificado por um determinado conjunto de costumes, instituições e maneiras de pensar”[11]. A lei da compensação, por exemplo, constitui um elemento arraigado na cultura do futebol brasileiro. A arte cênica, por sua vez, possui um peso considerável na performance do atleta profissional.

A promessa da “máquina da verdade”, no entanto, consiste em assegurar a existência de uma lente dotada de neutralidade suficiente para capturar as imagens sem as distorções provocadas pelas categorias culturais, os sistemas de valores e os esquemas perceptivos que costumam embaraçar a visão dos observadores.

Depois de consultar o vídeo à beira do campo, Wagner do Nascimento Magalhães fez a mímica alusiva ao VAR para anunciar a anulação do gol de Pedrinho, veredicto acatado com resignação tanto pelo atleta quanto pelos torcedores do alvinegro na Arena Corinthians. De fato, como se insurgir contra a “máquina da verdade”? Como discutir com a mais avançada das tecnologias! Resignada, a assim chamada Fiel Torcida teve que tragar a dor e engolir a sentença denominada pelo jornalista Juca Kfouri de “maldade contra o futebol”[12].

A “maldade contra o futebol”, antes de tudo, golpeava o autor da jogada, Pedrinho, o atleta de 20 anos que deixara a vida pobre, em Maceió, para realizar o sonho de se transformar em atleta profissional, passando no meio do caminho por várias dispensas, primeiro no Vitória, depois no São Paulo, até conseguir uma chance no Corinthians. Ela atingia, em segundo lugar, os torcedores que na Arena Corinthians, nas palavras de Ugo Giorgetti, deslizaram sem mediação da “loucura e alegria” para o “silêncio e o desânimo”[13]. E, por último, ela alcançava os torcedores que, embora adeptos das equipes rivais, diante da beleza do lance, se permitiram viver a experiência contraditória de torcer contra o sucesso do Corinthians, mas a favor da obra de arte de Pedrinho, desejando ao mesmo tempo ver o gol anulado e validado.

Mas, enquanto se desenrolava a final da Copa do Brasil, longe da luxuosa Arena Corinthians, em um boteco ordinário do centro da cidade, as ondas do rádio ecoavam os versos sábios de uma velha canção: “Eu aprendi que a alegria / De quem está apaixonado / É como a falsa euforia / De um gol anulado[14].


[1] Trata-se da música de Pedro Paulo, compositor e torcedor do rubro negro, intitulada: “Domingo tem Maracanã”, composição lançada em 1971. Cf. Xavier, Beto (2009) Futebol no país da música. São Paulo, Panda Books, p.101.

[2] Cf. A coluna: “Meu personagem da semana”, Nelson Rodrigues, O Globo, 21 de agosto de 1972.

[3] Cf. A coluna “Na grande área”, Armando Nogueira, Jornal do Brasil, 21 de agosto de 1972.

[4] Cf. “Da luta Doval e Andrada, resta o gol que não valeu”, Jornal do Brasil, 21 de agosto de 1972.

[5] Cf. “Da luta Doval e Andrada, resta o gol que não valeu”, Jornal do Brasil, 21 de agosto de 1972.

[6] Cf. A coluna: “Meu personagem da semana”, Nelson Rodrigues, O Globo, 21 de agosto de 1972.

[7] Entrevista concedida ao autor na cidade de São Paulo em 28 de março de 1996.

[8] Entrevista concedida ao autor na cidade de São Paulo em 28 de março de 1996.

[9] Cf. “Corinthians 2 x 1 Cruzeiro”, Ugo Giorgetti, O Estado de S. Paulo, 21 de outubro de 2018.

[10] Cf. Florenzano, José Paulo (1998) Afonsinho e Edmundo: a rebeldia no futebol brasileiro. São Paulo, Musa Editora, em especial o capítulo “O estádio panóptico”.

[11] Cf. Benedict, Ruth (2013) Padrões de cultura. Petrópolis, RJ. Editora Vozes, p.13.

[12] Cf. “Domingo de contrastes”, Juca Kfouri, Folha de S. Paulo, 21 de outubro de 2018.

[13] Cf. “Corinthians 2 x 1 Cruzeiro”, Ugo Giorgetti, O Estado de S. Paulo, 21 de outubro de 2018.

[14] Trata-se da música de João Bosco e Aldir Blanc, “Gol anulado”, inserida no disco de 1976: “Galos de Briga”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Gol anulado. Ludopédio, São Paulo, v. 113, n. 1, 2018.
Leia também: