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Hungria: a mãe esquecida do futebol – Parte I

Gabriel Said 27 de fevereiro de 2020
Vista do Rio Danúbio e da Ponte das Correntes, em Budapeste. Foto: Acervo pessoal.

A partir da Floresta Negra, os córregos Breg e Brigach encontram-se na região de Freiburg na Alemanha, em Donaueschingen. Desse encontro, simbolizado pelo chafariz de Donauquelle, nasce o rio Danúbio, que percorrerá cerca de 2.860Km, atravessando outros nove países, entre eles Áustria, Hungria e tendo o seu delta na Romênia. As margens do rio são propícias para a vida e o cultivo, com mais de 85 milhões de pessoas morando ao seu redor. O que irei tratar aqui é de algo semeado por britânicos, fossem eles marinheiros, mercadores, operários ou professores, e cultivado de uma forma especial pelos húngaros de Budapeste: o futebol.

Jonathan Wilson em seu mais recente livro, The names heard long ago: how the golden age of Hungarian shaped the modern game (“Os nomes ouvidos há muito tempo: como a era dourada do futebol húngaro moldou o jogo moderno”, em tradução livre), traz à tona a importância com o reconhecimento merecido a relevância do futebol húngaro para esse esporte. Tamanha influência húngara também é reconhecida pelo jornalista Martí Perarnau, que abriu a 42ª edição de sua revista mensal The Tactical Room em maio de 2018 com o texto Los Violinistas Húngaros:

“Todos os violinistas são húngaros. Ou deveriam ser. Todos os violinistas são metaforicamente nascidos na Hungria. Todos eles têm alma húngara, como assegura essa hipérbole que não está menos correta apesar de exagerada.

Usemos essa hipérbole para afirmar outra não menos certa: todos os futebolistas são húngaros. Ou deveriam ser. Hungria é a grande mãe esquecida do futebol. Sem seu formidável laboratório de ideias, este jogo não teria alcançado os níveis de excelência que nos permite ver, de Montevidéu a Barcelona, Amsterdã a Buenos Aires. Hungria foi uma marmita criativa que rompeu fronteiras e sotaques. Desde 1915 até 1956 todas as ideologias do futebol ferveram em vapor húngaro, estimuladas por um contexto apaixonado e febril que buscava achar a solução mágica do enigma misterioso desse jogo […]”

As primeiras sementes foram plantadas por Edward Shires, John Tait Robertson e Jimmy Hogan. Shires, jovem de Manchester que abandonou a fábrica onde trabalhava aos 17 anos para se mudar para Viena e, uma década mais tarde já em Budapeste, fundar e presidir o MTK Budapest. Robertson, escocês que chegou para trabalhar no MTK em 1911 como treinador com a missão de encerrar a hegemonia do rival Ferencváros. E Hogan, treinador inglês que chegou no MTK em 1914.

O fato de Robertson ser escocês não pode passar em branco. Na Escócia e norte da Inglaterra se jogava um estilo de futebol distinto do praticado ao sul da ilha. Em 1872, no primeiro amistoso internacional oficial, para compensar a desvantagem física em relação aos ingleses, desenvolveu-se na Escócia um jogo focado nos passes curtos ao invés do drible*. O sucesso é notável: 9 vitórias nos primeiros 15 jogos e só 2 derrotas. Em 1872, terminou sem gol.

Robertson começou a transformar o jogo do MTK logo de início. Insatisfeito pelos jogadores não saberem jogar com os dois pés, com o jogo aéreo do time, mas principalmente com seus defensores, que não sabiam se harmonizar com o restante do time e fazer boas coberturas: “Não vi um defesor central realmente bom em toda a liga.”.

Ferencváros continuou vencendo a liga em 1911-12 e 1912-13, mas o trabalho de Robertson já tinha colocado o MTK em outro nível, com um estilo bem característico e com muito potencial a ser explorado, Shires reconhecia que os “húngaros estavam aprendendo mais com ele do que aprenderia com qualquer outro em dez”. Porém, depois de dois anos em Budapest, Robertson retornou para casa e abriu caminho para Hogan dar passos além na capital húngara.

Enquanto jogador, Jonathan Wilson lembra que Hogan não passou de razoável. O que o diferenciava dos demais ingleses era sua inquieta curiosidade e zelo pedagógico. Em 1916, a tática hegemônica no futebol mundial era o 2-3-5. Hogan estava satisfeito com ela, mas era crítico de seu excesso de rigidez, com posições muito bem definidas. Para ele, o controle de bola com troca de passes curtos e inteligentes era o melhor jeito de controlar o jogo, apesar de também reconhecer o valor do passe longo para desestabilizar os adversários. Mesmo com sua tendência ao “futebol escocês”, Hogan estava aberto para adaptações se julgasse melhor.

Jimmy Hogan. Foto: Aston Villa Arquives.

Entre 1913 até 1916, o campeonato húngaro parou por causa da guerra. Quando voltou, o MTK com Hogan ganhou os 5 campeonatos seguintes e mais outros 4 sem ele. Em 1919-20 o MTK ganhou 26 dos 28 jogos. No ano seguinte, 21 vitórias em 24 jogos e só 9 gols sofridos. Em 1921-22 ganharam 16 de 22, 17 de 22 em 1922-23 e 19 de 22 no ano seguinte. O trabalho do treinador estava em tão perfeita harmonia com a cultura do clube que mesmo sem o treinador o time continuava vencendo. O time de Hogan ia muito além dos troféus conquistados: em 1953 após o histórico 6×3 da Hungria contra a Inglaterra em Wembley, Sándor Barcs, o chefe da delegação húngara explicou como o país havia se tornado tão bom no futebol: “Você teria que voltar 30 anos para o tempo que Jimmy Hogan veio nos ensinar a jogar”. Se a Hungria teve bons “semeadores”, vale tentar entender também o “solo fértil” de Budapeste.

Viena é uma cidade com muitas semelhanças a Budapeste. Ambas banhadas pelo Danúbio, partes do Império Austro-Húngaro, Jimmy Hogan trabalhou na Áustria por alguns anos antes de ir para Budapeste, assim como Shires morou entre 1894 e 1904 lá. Outra figura importante no desenvolvimento do futebol na Europa Central e responsável por levar Hogan para Viena; Hugo Meisl, era muito influente no futebol austríaco. E, por fim, ambas cidades eram repletas de cafés. A Áustria foi um país importante no desenvolvimento do jogo no início do século XX, com equipes fortes, técnicas e com ideias, com uma equipe nacional fortíssima em 1934: o Wunderteam, treinado por Meisl e capitaneado por Mathias Sindelaar, que jogou sua carreira inteira no FK Austria Wien e discutivelmente o primeiro Falso 9 da história (veremos isso mais para frente).

Mesmo assim, Budapeste é muito mais influente que Viena. Jonathan Wilson aponta para três fatores:

  1. Budapeste era uma cidade cosmopolita. Tal característica fez a cidade por muito tempo ser considerada a mais amigável para um judeu morar (note-se que em tempos de antissemitismo forte pela Europa), com 23% da população da cidade formada por judeus no início do século XX. Esse é um fator relevante pois o MTK Budapeste tem identidade judia e muitos dos grandes nomes que por lá passaram também eram. O ambiente da cidade favoreceu o crescimento do MTK e, consequentemente, sua influência no futebol do país.
    Um café em Budapeste nos anos 1920. Foto: OMNIA/Magyar Kereskedelmi és Vendéglátóipari Múzeum.
  2. Os cafés. Como Wilson aponta, os cafés simbolizavam a modernidade e europeneidade da cidade. Os cafés eram o coração de Budapeste, comparáveis às ágoras gregas, lá todas as classes falavam de tudo: arte, literatura, fofocas, política, música e futebol. O jornalista Tamás Kóbor escreveu sobre os cafés na revista A Hét (A Semana), entre 1892 e 1893: “Os cafés se tornaram uma parte inescapável de nossas vidas, a externalização de tudo que está dentro de nós, de tudo que buscamos.”. Os debates sobre futebol nos cafés tendiam a ter uma natureza diferente dos pubs ingleses, onde as pessoas costumavam ficar de pé com a cerveja nas mãos. Nos cafés, a tendência era de as pessoas ficarem sentadas, com as mãos livres e uma mesa disponível, que levou Wilson a sugerir que tais relações socioarquitetônicas permitiam às pessoas a ilustrarem melhor argumentos táticos utilizando a mesa, levando as discussões a níveis de abstração mais elevados. Uma das histórias da fundação do Ferencváros chega a remeter um café local chamado Gebauer. Wilson, porém, alenta que a influência dos cafés ainda é limitada e explora algo ainda mais importante.
  3. As várzeas (grunds). Tomando como referência o livro Az első aranykor (A primeira era dourada), do sociólogo Peter Szegedi, Wilson destaca: “A grande razão para o futebol húngaro ter se desenvolvido como o fez foram os campos de várzea, os terrenos abandonados enquanto Budapeste passava por uma rápida expansão e crianças se reuniam para jogar”. Na biografia de Gyula Mandy, ex-jogador do MTK e da seleção húngara, outra referência é encontrada aos campos de várzea:

“Por causa das bolas de pano que não quicavam e, portanto, deveriam ser controladas para o drible e chute de um jeito que não passassem no chão arenoso, irregular ou com grama alta, caso o contrário ela ficaria presa lá imediatamente. […] Já que os goleiros eram raros, quase todos tinham que atacar e também defender. Isso também significava que ninguém poderia se comportar como uma estrela, senão era excluído ou os outros o ensinavam uma lição”.

Gyorgy Orth. Foto: Reprodução.

Das várzeas, surgiu Győrgy Orth. Cresceu sem pai, em família humilde e completou os estudos com a ajuda de amigos que o bancavam. Nas várzeas, cresceu se destacando entre garotos mais velhos e fortes do que ele. Em 1915, aos 14 anos, jogou por um clube local contra o MTK. Em julho de 1917 fez sua estreia pelo MTK e em novembro já estava na seleção nacional. Hogan elogiava a maturidade dos húngaros e sua vontade de aprender; todos os dias ficava até mais tarde com Orth e Baun – outro talento das várzeas – ensinando a arte do jogo. Orth, disse Hogan, era o “mais versátil, melhor e mais inteligente jogador que já vi”. Começara sua carreira como lateral esquerdo antes de virar ponta esquerda e jogar pela seleção em cinco posições diferentes, incluindo goleiro. Em 1925, a FA (Football Association) promoveu uma das maiores, senão a maior, mudança de regra da história do futebol desde sua fundação em 1863: reduziu de três para dois jogadores defensivos necessários para a jogada continuar valendo. O impacto foi imediato: a tática 2-3-5 rapidamente se tornou obsoleta e deu lugar ao 3-2-2-3, mais conhecido como W-M.

Esquema do W-M. O espelhamento nos jogos favorecia um jogo mais individual e físico como os ingleses gostavam. Foto: Wikipedia.

Quando duas equipes que jogavam no W-M se enfrentavam, a simetria do sistema tático favorecia o jogo para ser uma série de duelos individuais: defensor esquerdo marcava o ponta direita, defensor direito marcava o ponta esquerda, etc. Os duelos entre defensor central e centroavante na Inglaterra e Europa Central eram sintomáticos sobre as formas de entender o jogo. Enquanto na Inglaterra se proliferavam os pontas-de-lança de muita imposição física e defensores igualmente imponentes, com ceticismo em relação aos defensores que tinham boa habilidade de passe, na Hungria o meio campista base do antigo 2-3-5 já era um construtor de jogo recuado, que viraria o defensor central da nova tática, mantendo suas características criativas. Com Hogan de volta ao MTK, Győrgy Orth foi pioneiro como defensor construtor de jogo, jogando o mais fino futebol em 1925. Com Hogan e Orth, o defensor central não estaria condenado a dar chutões sem direção e nem a se limitar a passes curtos; Orth tinha a categoria e liberdade de iniciar contra-ataques com seus lançamentos precisos. Essa adaptação do defensor central como construtor de jogo vai ao encontro do estilo de jogo de Hogan descrito por Wilson: “Hogan sempre reforçou a importância do passe longo para desestabilizar defesas adversárias, desde que bem direcionado e não um chute sem direção”.

O futebol húngaro ainda provocaria muitas transformações no futebol europeu e sul-americano. Do goleiro-líbero ao falso nove, no surgimento do 4-2-4 e 4-3-3, na formação de esquadrões imortais na Argentina, Uruguai, Itália, Alemanha e Portugal, de László Kubala em Barcelona e Ferenc Puskás em Madrid, em sua participação na construção do Brasil como potência mundial e, por fim, nos Aranycsapat dos anos 50. Vamos ver um pouco disso tudo nas próximas três partes sobre a influência húngara no futebol moderno.

Leia a parte II aqui.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. Hungria: a mãe esquecida do futebol – Parte I. Ludopédio, São Paulo, v. 128, n. 31, 2020.
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