96.20

Invasão

Leandro Marçal 20 de junho de 2017

A escuridão tomou conta do céu, por inteiro, de uma só vez. Ninguém entendia nada, ninguém explicava tudo aquilo.

Exércitos ao redor do mundo se posicionavam, policiais por todos os cantos se escondiam para não serem chamados a uma luta contra ninguém sabia o quê.

Foram dias de incertezas. Muitos olhavam para cima aguardando Jesus, Maomé ou Kal-El aparecer entre as nuvens com a moral da história da humanidade seguida dos créditos finais.

A voz metálica era ecoada por todos os cantos, num idioma universal. Não havia tampões para se esconder daquilo que amedrontava a todos.

bola
Bola, objeto de desejo. Foto: Lucas Figueiredo/Mowa Press.

– Terráqueos, viríamos em missão de paz, mas essa parece não ser sua vocação. Estamos há alguns milênios estudando sua espécie de longe e não entendemos algumas coisas. Nossos sistemas hiper avançados não foram capazes de explicar como seres racionais (precisaremos de uma maior explicação de onde tiraram essa tese absurda) têm costumes estranhos. Não faz sentido algum brigar por motivos de vestir camisas de cores diferentes naquele esporte inventado há algum tempo, o futebol, por exemplo. Vocês se matam e criam problemas para os outros por algo que deveria ser um lazer, mas por sua cegueira vira balcão de negócios para aqueles que os surrupiam ou ganham com trabalho milhões daqueles papéis que para vocês valem a vida enquanto as suas se põem em risco. Não há nada de organizada quando a torcida se presta a dar tiros, enfrentar autoridades autoritárias e desautorizadas, esconder barras de ferros e escorrer sangue pelos asfaltos das ruas ou cimento das arquibancadas. Nossos super sistemas não resolvem a equação na qual sua espécie mata milhões por fome e violência e ao mesmo tempo financia um negócio de forma elitista, perversa e massacrante.

Gritos, choros, bocas abertas, olhos fechados.

Pescoços doendo de tanto olhar para o alto, aleluias gritados de um lado para o outro, alguns correndo para cá e outros paralisados como se criassem raízes no solo. De norte a sul, de leste a oeste.

A voz metálica era clara e insaciável no discurso.

– Tudo isso porque há quem ainda defina o tal futebol como sagrado, terráqueos. Se é assim, o que lhes faz permitir que grupos mal intencionados se apoderem de um bem nunca visto em outras galáxias, com o poder de unir a tantos, mas com as piores intenções possíveis? Acham mesmo que sua espécie é superior a todas as outras dessa esfera gigante e destruída que vocês vivem sem coerência alguma? Se acham o centro do universo? Nós, ouvimos todas as suas tentativas de chamados por nós da mesma forma que ignoram os latidos dos cães há séculos, festejando sua chegada em casa depois de um dia de trabalho inútil e vazio como os de vocês.

Senhoras choravam, terroristas desmaiavam, jogadores de futebol dormiam ou postavam as melhores selfies para registrar os momentos em suas redes sociais.

– Não se preocupem: ninguém mais vai morrer em decorrência de vestir uma camisa diferente, entrar na torcida errada ou até mesmo por discordar. Todas essas suas imbecilidades terrenas foram a prova de que vocês não fazem parte de nossos planos futuros de salvação do universo, pois vocês só sabem destruir.. Não há evolução possível para espécie tão atrasada.

Silêncio no mundo. Um clarão, uma cor vermelha. E a exterminação geral como um pisar no formigueiro ou fogo no ninho de marimbondos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Invasão. Ludopédio, São Paulo, v. 96, n. 20, 2017.
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