Em 1991 li uma matéria no jornal Folha de S. Paulo escrita com um tom muito comum à época. O Palmeiras aos poucos formava a grande equipe que seria bicampeã brasileira em 1993 e 1994 sob o comando de Vanderlei Luxemburgo, mas andava perdendo mais partidas do que se esperava. Já bastante reforçado por Evair, César Sampaio e Andrey, entre outros, o time não engrenava e isso aumentava a irritação da torcida, carente de títulos havia uns bons anos. Eis que o artigo do jornal coloca, entre surpreso e indignado, que apesar das derrotas, o elenco treinara apenas em um período na véspera, o que seria repetido, aliás, um dia depois.

A edição seguinte do matutino trouxe, no entanto, um esclarecimento. João Paulo Subirá Medina, chefe da preparação física do Palestra Itália, explicava que havia propósito e planejamento na opção por exercício regrado e descanso. O profissional levava ao grande público uma face da dinâmica científica do esporte, a da periodização do treinamento, processo no qual a recuperação é tão importante quanto a sobrecarga. Sacava com isso, também, a poeira moralista que entranha as cobranças de torcedores, cujo imaginário diz com frequência que as derrotas vêm porque os futebolistas, que seriam preguiçosos, pouco se dedicam a seu trabalho.

Voz iluminista do futebol, Medina cumpre um papel importante na cultura deste esporte no Brasil. Sem deixar a paixão de lado e valorizando a ciência, ele procura o equilíbrio. Segundo fiquei sabendo ao assistir a entrevista que concedeu a Juca Kfouri, o estudioso vem sendo importante referência para Fernando Diniz. O treinador interino da seleção brasileira e que há pouco levou o Fluminense ao inédito título de campeão da Copa Liberadores da América frequenta atividades na Universidade do Futebol, discute com Medina e atende às suas sugestões bibliográficas. A que mais lhe teria interessado seria um livro do português Manuel Sérgio Vieira e Cunha – um dos inventores da Filosofia que se ocupa do esporte –, intelectual admirado também, vejam só, por José Mourinho, um profissional do futebol com concepções muito distintas das do comandante do Tricolor.

João Paulo Medina
João Paulo Medina. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Mas eu conhecera o trabalho de Medina muito antes daquela matéria jornalística do começo da década de 1990. Foi na década anterior, mas, entre um e outro ponto, relato um segundo encontro com o trabalho dele. No final dosanos 1980 eu era estudante de Educação Física e dois de seus livros eram referência fundamental para o pensamento crítico da área. Entre professores e estudantes interessados em repensar suas práticas pedagógicas e aprópria disciplina de ensino, eram tema de conversa A educação física cuida do corpo e…mente (1983) e O brasileiro e seu corpo (1986). O título do primeiro joga com o substantivo (a mente) e o verbo conjugado (ela mente), o que indica, ademais, o diagnóstico impressionista que o autor empreende; o segundo é resultado de sua dissertação de mestrado, defendida no programa de Educação da PUC de Campinas. Naqueles anos, vi-o pessoalmente em uma palestra no Ginásio do SESC, em Florianópolis, e chamou-me a atenção o fato de ele parar de falar a cada vez que o murmúrio na plateia subia o volume além do razoável.

Bom, voltando no tempo, lá por 1982 e 1983 Medina era notícia e eu, que acompanhava o futebol, demoraria um pouco para, nos anos subsequentes, dar-me conta de que apessoa que escrevera os livros mencionados no parágrafo acima era a mesma que eu conhecia da leitura dos jornais e da Placar. Uma parte importante do pensamento avançado da Educação Física fazia então uma ponderação dura ao esporte de alto rendimento em sua determinação estrutural para a Educação Física, mas os temas do preparador físico com mestrado em Filosofia da Educação eram outros, se bem me lembro: a formação profissional precaríssima dos futuros professores de Educação Física, o caráter de classe de produção dos corpos no Brasil. Ou seja, ele seguiu compatibilizando, a seu modo, a crítica social com trabalho de preparação de atletas, no qual era e é um expoente.

Na entrevista, Juca reconhece a admiração de longos anos por Medina, chegando a chamar a conversa de “Aula de futebol e humanismo”. Dá para entender. O entrevistado destaca que analistas de desempenho europeus têm mostrado interesse pelo modelo de jogo de Diniz, sendo grande a curiosidade em ver como se comportará uma equipe posicional como a do Manchester City, de Pepe Guardiola, frente a um time “caótico” como o Flu, em caso de embate no próximo Campeonato Mundial de Clubes. É de se notar o respeitoso pessimismo que exalam suas análises sobre as chances de sucesso do clube brasileiro. Sublinha ainda o que o treinador chama de drible coletivo – suponho que seja a ciranda promovida pela troca de passes intensa com os atletas muito próximos – e o quanto ele questiona as determinações da ciência, ao afirmar, por exemplo, que há mais no ser humano e em suas possibilidades de superação do que a fisiologia admite.

A competitividade elevadíssima, diz Medina, tiraria o prazer de muitos em praticar o futebol. Diniz seria aquele capaz de despertar a paixão, o prazer genuíno em jogar. Falar disso nos dias de hoje pareceria absurdo, dadas as exigências do alto rendimento, mas estaria no técnico do Flu e em suas inovadoras ideias a possibilidade dessa síntese. Pessoalmente tenho dúvidas de que ela seja possível. Quem sabe, no entanto, nossas discretas esperanças possam se dirigir para uns momentos de jogo no esporte. Momentos não apenas restritos aos ases da bola, como Ronaldinho Gaúcho e Djalminha, que pareciam ter uma ludicidade superior, mas a qualquer um dos atletas profissionais, essa gente a quem se impõe – e que impõe a si mesma – anos de disciplina a cansaço para chegar a realizar o sonho de ser jogador de futebol. Já estaria de bom tamanho. Nem toda conciliação é possível, tampouco necessária ou até mesmo desejável.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. João Paulo Medina – futebol e crítica. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 18, 2023.
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