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Jogo pagão

José Paulo Florenzano 6 de dezembro de 2018

Em maio de 1959 o Santos foi pela primeira vez à Europa, excursionar por vários países, todos desejosos de reverenciar a figura do “menino prodígio”, Pelé, campeão na Copa da Suécia. Ao desembarcar de volta no Aeroporto de Congonhas, depois de quase dois meses de viagem pelo Velho Mundo, A Tribuna registrava a nova imagística do alvinegro praiano, simbolizada, sobretudo, pela tríade ofensiva: “Junto aos dois troféus, três craques do Santos, Pelé, Coutinho e Dorval, todos de chapéu tirolês”[1]. Via de regra, em todos os lugares por onde passava a companhia de espetáculos, na Bélgica, na Alemanha ou na Itália, o destaque dos órgãos de imprensa recaía invariavelmente sobre o triunvirato negro. Por certo, outros atletas também mereciam elogio e reconhecimento, notadamente o meio de campo Zito e o ponta-esquerda Pepe. Havia, ainda, Paulo César de Araújo, conhecido pela alcunha de Pagão, cujo talento lhe assegurava lugar de relevo nas análises dos cronistas esportivos de Santos. Detenhamo-nos nesta personagem, hoje, menos celebrada quando se costuma evocar o esquadrão da Vila Belmiro.

Cognominado de Pagão por ter recebido o batismo somente aos quatro anos de idade, de estatura baixa para o ofício de centroavante, 1.67 metros, o atacante havia percorrido os três clubes da cidade portuária, realizando os primeiros treinos profissionais no Jabaquara, transferindo-se em seguida para a Portuguesa Santista, onde se distinguira como artilheiro do Campeonato Paulista da Primeira Divisão, em 1954, com dezesseis gols, proeza suficiente para despertar o interesse dos grandes clubes. De fato, já no ano seguinte ele se achava incorporado ao elenco do alvinegro praiano e em 1956 obteve a consagração com o bicampeonato Paulista da Divisão Especial. Depois de se manter por três temporadas consecutivas na posição de titular absoluto da camisa nove, problemas de ordem física determinaram o ponto de inflexão na carreira ascendente do jogador, o qual, com efeito, acabaria cortado da delegação que excursionava em 1959 pela Europa, sendo enviado de volta ao país para cuidados médicos[2]. As informações que circulavam na Vila Belmiro, porém, davam conta de razões inconfessadas para o inesperado desligamento:

[Pagão havia retornado] porque se desentendera com o seu companheiro de equipe, Édson Arantes do Nascimento (Pelé), culpando o “coloured” avante de prender o seu jogo, facilitando quando Coutinho entrava na linha de avantes a fim de garantir para o seu companheiro de pensão, um lugar na equipe de cima.[3]

A delegação do Santos, eis o ponto a ser ressaltado, não trouxera da longa jornada pelos gramados europeus apenas troféus e dólares. Na bagagem constava também uma questão racial implícita na disputa pela posição de titular no ataque da equipe. A Tribuna a mencionava, no entanto, como mero boato, simples intriga sem qualquer fundamento. Para prová-lo, o periódico citava a declaração do treinador Lula segundo a qual Pagão sofrera uma “distensão grave” que o impossibilitara de prosseguir com o grupo. A contusão do centroavante remontava à disputa do Torneio Rio-São Paulo, realizado nos meses que precederam a viagem pelo Velho Mundo[4]. Desde então a carreira do atleta ingressara no ciclo infernal dos afastamentos temporários, retornos precipitados e novos desligamentos, motivados pela lesão muscular que se tornara crônica: “Ia treinar, pronto, sentia de novo”. O departamento médico, no entanto, lhe dizia que “não era nada” e o liberava para entrar em campo: “Eles não acreditavam quando eu me queixava das dores, cheguei a jogar machucado várias vezes”[5]. O episódio deixara “uma mágoa que guardo para sempre”. De fato, a impossibilidade de retomar em condições normais a carreira profissional, as constantes recaídas determinadas pela distensão mal curada, lançaram sobre o centroavante a suspeita de fazer “corpo mole” e o estigmatizaram com o epíteto de “Canela de Vidro”[6]. Para piorar as coisas, nesse ínterim, começava a despontar na Vila Belmiro um atacante jovem e habilidoso, cheio de vigor, como reconhecia o próprio Pagão:

Mas enquanto isso surgia o Coutinho. Meu papel no time era o de vir buscar a bola e combinar com o Pelé na área. Na minha ausência essa responsabilidade ficou com o Pelé, Coutinho marcando os gols.[7]

Quando, afinal, obteve o tempo necessário para se recuperar da lesão muscular já era tarde demais, a posição pertencia a Coutinho, e, salientava Pagão, “com todo o merecimento”[8]. Nesta entrevista à Cidade de Santos, concedida no final dos anos sessenta, o desenlace da disputa pela camisa nove era atribuído pelo atleta aos problemas físicos que o atingiram, bem como às pressões do clube para precipitar-lhe o retorno mesmo sem reunir as condições ideais para voltar ao gramado. Nenhuma alusão, portanto, à questão racial, aventada outrora pelo jornal A Tribuna. Por certo, em 1959, quando ela foi noticiada com a ressalva de se tratar de simples boato, a condição de titular estava em aberto, constituindo-se em objeto de uma acirrada concorrência entre os dois centroavantes, ao passo que em 1968, no contexto em que Pagão a relembrava, ela pertencia à história construída por uma equipe cujos méritos ninguém ousava, então, colocar em dúvida[9].

Pagão. Foto: Divulgação Santos FC (reprodução).

Todavia, no embate envolvendo a camisa nove a variável representada pelas relações raciais não deve ser ignorada, ao contrário, convém levá-la em consideração, quanto mais não seja porque ao que parece ela não se restringia à briga pela titularidade na linha ofensiva, mas incidia também na disputa no sistema defensivo, mais precisamente no gol, onde o titular Manga se encontrava desafiado pelo reserva Laércio. Conforme recordava o segundo, em uma entrevista concedida à Cidade de Santos, os colegas alertavam-no à época sobre os reais motivos da sua condição de regra-três:

Você não sabe que existe macumba por trás disso tudo? O Manga não sai do gol, é bobagem ficar aí treinando feito louco, estão trabalhando para ele.[10]

Laércio chegara à Vila Belmiro em 1955 no bojo da negociação envolvendo a transferência de Formiga para o Parque Antártica. Mas, desde então, todos os arqueiros que haviam tentado arrebatar a posição do goleiro negro acabaram derrotados, não por uma questão de mérito, mas devido à intervenção das forças sobrenaturais, consideradas responsáveis pelas contusões que nas horas decisivas alijavam os concorrentes da disputa pela titularidade. Dessa maneira, o ex-goleiro do Palmeiras explicava ao repórter da Cidade de Santos o porquê do longo tempo passado na condição de regra-três. A “onda negra” não o “largava”. Graças a ela, “Manga não saia do gol”.

Antes de excursionar pela Europa, no entanto, o Santos arrebatara o título de campeão do Torneio Rio-São Paulo, na última rodada da competição, ao vencer o Vasco da Gama no Pacaembu pelo placar de 3 a 0 -, com Laércio no gol e Coutinho no ataque[11]. Mas, fosse por causa das inúmeras contusões, fosse devido ao excesso de jogos, o revezamento entre os atletas constituía a norma, não a exceção, ensejando as mais diversas escalações ao longo da temporada, não somente no gol, como, sobretudo, no ataque.

Assim, por exemplo, na vitória por 7 a 0 contra o América, na Vila Belmiro, pelo Campeonato Paulista de 1960, A Tribuna sublinhava que “Pagão e Coutinho” se transformaram em “constante pesadelo” para a defesa adversária. Já por ocasião da goleada de 5 a 0 sobre o Botafogo, em pleno Maracanã, pela Taça Brasil de 1963, ela salientava que não havia como deter os “endiabrados” Coutinho e Pelé, cujas “tabelinhas” puseram em “pânico” a defesa carioca[12]. De novo no Maracanã, contra o mesmo Botafogo, mas desta feita pelo Torneio Rio-São Paulo de 1959, A Tribuna descrevia nos seguintes termos o último gol do Santos, na vitória por 4 a 2, marcado aos vinte e cinco minutos do segundo tempo:

Pagão e Pelé organizaram a clássica “tabelinha”, trocando bola por quatro vezes consecutivas, terminando o centroavante por mandar a pelota para o fundo da meta.[13]

A tabela clássica, portanto, ao contrário da visão sedimentada na memória coletiva, não se limitava à dupla constituída por Pelé e Coutinho, mas envolvia também as combinações formadas por Coutinho e Pagão, ou, ainda, como no Maracanã, por Pelé e Pagão. De fato, no templo sagrado do futebol, onde se cultuava outrora um jogo pagão, jogava-se muitas vezes ao som de um samba popular que escalava em campo, de acordo com a imaginação do poeta, jogadores “endiabrados” cujas tabelas embaralhavam as cartas de identidade, ignorando a cor do time e a tez do atleta: “Para Mané para Didi para Mané para Mané para Didi para Pagão para Pelé para Canhoteiro”.[14]


[1] Cf. “Dois troféus e três craques”, A Tribuna, 15 de julho de 1959.

[2] Cf. “Pagão num ano de pouca sorte”, A Tribuna, 18 de dezembro de 1959. O atacante sentiu a contusão contra a Bulgária e só retornou ao time contra o Real Madrid, “mas apenas por alguns minutos”. Sem condições de prosseguir na excursão, embarcou de volta para o Brasil.

[3] Cf. “Esclarecendo uma ´onda`…com fatos” A Tribuna, 15 de julho de 1959. A pensão mencionada por Pagão era a de Dona Georgina onde ficavam hospedados os atletas mais jovens do Santos, dentre os quais, Dorval, Pelé e Coutinho. Cf. “Pensionistas de Dona Georgina”, A Tribuna, 10 de fevereiro de 1961.

[4] A contusão ocorreu na partida contra o Fluminense, no Pacaembu, disputada no sábado à noite, 18 de abril de 1959. De acordo com a edição do dia seguinte de A Tribuna: Entrou Coutinho nos minutos finais, sem oportunidade”.

[5] Cf. “Pagão diz o que sofreu”, Cidade de Santos, 25 de fevereiro de 1968. Nessa entrevista o atleta responsabilizava o departamento médico do clube pela situação vivida: “Um dia não aguentei mais, fui falar com o dr. João de Vincenzo, escondido. Ele ficou espantado: ´meu Deus, isso é um crime que estão fazendo com você: está com os músculos rompidos, precisa ficar pelo menos dois meses sem jogar”.

[6] Cf. “Pagão diz o que sofreu”, Cidade de Santos, 25 de fevereiro de 1968.

[7] Cf. “Pagão diz o que sofreu”, Cidade de Santos, 25 de fevereiro de 1968.

[8] Cf. “Pagão diz o que sofreu”, Cidade de Santos, 25 de fevereiro de 1968: “Fiquei na reserva, entrava de vez em quando. Vi que naquele timaço já não havia lugar para mim.”.

[9] As desconfianças a respeito das afinidades da dupla Pelé e Coutinho também contaminariam os preparativos da Seleção Brasileira para a Copa do Chile, conforme noticiava a imprensa praiana: “Nesta divergência entre Pelé e Vavá há algo mais que é o entendimento extraordinário entre Pelé e Coutinho…”. Cf. “Propalada rivalidade Vavá x Pelé chegou ao Chile”, A Tribuna, 26 de maio de 1962.

[10] Cf. “…Laércio ser titular”, Cidade de Santos, 26 de novembro de 1967. Manga era o codinome de Agenor Gomes, arqueiro do bicampeonato do Santos, conquistado em 1955 e 1956.

[11] Vitória por 3 a 0 com gols de Pelé e Coutinho (2). Cf. “Santos F. Clube, Campeão do Brasil! ”, A Tribuna, 14 de maio de 1959.

[12] Cf. “Santos bicampeão da Taça Brasil”, A Tribuna, 3 de abril de 1969. Os gols foram assinalados por Dorval, Pepe, Coutinho e Pelé (2).

[13] Cf. “Torneio Rio-São Paulo”, A Tribuna, 10 de abril de 1959. Os gols foram marcados por Pelé, Dorval e Pagão (2).

[14] Letra da música “O Futebol”, do álbum “Chico Buarque, de autoria de Chico Buarque de Hollanda, composta em 1989.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Jogo pagão. Ludopédio, São Paulo, v. 114, n. 6, 2018.
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