Em maio de 1959 o Santos foi pela primeira vez à Europa, excursionar por vários países, todos desejosos de reverenciar a figura do “menino prodígio”, Pelé, campeão na Copa da Suécia. Ao desembarcar de volta no Aeroporto de Congonhas, depois de quase dois meses de viagem pelo Velho Mundo, A Tribuna registrava a nova imagística do alvinegro praiano, simbolizada, sobretudo, pela tríade ofensiva: “Junto aos dois troféus, três craques do Santos, Pelé, Coutinho e Dorval, todos de chapéu tirolês”[1]. Via de regra, em todos os lugares por onde passava a companhia de espetáculos, na Bélgica, na Alemanha ou na Itália, o destaque dos órgãos de imprensa recaía invariavelmente sobre o triunvirato negro. Por certo, outros atletas também mereciam elogio e reconhecimento, notadamente o meio de campo Zito e o ponta-esquerda Pepe. Havia, ainda, Paulo César de Araújo, conhecido pela alcunha de Pagão, cujo talento lhe assegurava lugar de relevo nas análises dos cronistas esportivos de Santos. Detenhamo-nos nesta personagem, hoje, menos celebrada quando se costuma evocar o esquadrão da Vila Belmiro.
Cognominado de Pagão por ter recebido o batismo somente aos quatro anos de idade, de estatura baixa para o ofício de centroavante, 1.67 metros, o atacante havia percorrido os três clubes da cidade portuária, realizando os primeiros treinos profissionais no Jabaquara, transferindo-se em seguida para a Portuguesa Santista, onde se distinguira como artilheiro do Campeonato Paulista da Primeira Divisão, em 1954, com dezesseis gols, proeza suficiente para despertar o interesse dos grandes clubes. De fato, já no ano seguinte ele se achava incorporado ao elenco do alvinegro praiano e em 1956 obteve a consagração com o bicampeonato Paulista da Divisão Especial. Depois de se manter por três temporadas consecutivas na posição de titular absoluto da camisa nove, problemas de ordem física determinaram o ponto de inflexão na carreira ascendente do jogador, o qual, com efeito, acabaria cortado da delegação que excursionava em 1959 pela Europa, sendo enviado de volta ao país para cuidados médicos[2]. As informações que circulavam na Vila Belmiro, porém, davam conta de razões inconfessadas para o inesperado desligamento:
[Pagão havia retornado] porque se desentendera com o seu companheiro de equipe, Édson Arantes do Nascimento (Pelé), culpando o “coloured” avante de prender o seu jogo, facilitando quando Coutinho entrava na linha de avantes a fim de garantir para o seu companheiro de pensão, um lugar na equipe de cima.[3]
A delegação do Santos, eis o ponto a ser ressaltado, não trouxera da longa jornada pelos gramados europeus apenas troféus e dólares. Na bagagem constava também uma questão racial implícita na disputa pela posição de titular no ataque da equipe. A Tribuna a mencionava, no entanto, como mero boato, simples intriga sem qualquer fundamento. Para prová-lo, o periódico citava a declaração do treinador Lula segundo a qual Pagão sofrera uma “distensão grave” que o impossibilitara de prosseguir com o grupo. A contusão do centroavante remontava à disputa do Torneio Rio-São Paulo, realizado nos meses que precederam a viagem pelo Velho Mundo[4]. Desde então a carreira do atleta ingressara no ciclo infernal dos afastamentos temporários, retornos precipitados e novos desligamentos, motivados pela lesão muscular que se tornara crônica: “Ia treinar, pronto, sentia de novo”. O departamento médico, no entanto, lhe dizia que “não era nada” e o liberava para entrar em campo: “Eles não acreditavam quando eu me queixava das dores, cheguei a jogar machucado várias vezes”[5]. O episódio deixara “uma mágoa que guardo para sempre”. De fato, a impossibilidade de retomar em condições normais a carreira profissional, as constantes recaídas determinadas pela distensão mal curada, lançaram sobre o centroavante a suspeita de fazer “corpo mole” e o estigmatizaram com o epíteto de “Canela de Vidro”[6]. Para piorar as coisas, nesse ínterim, começava a despontar na Vila Belmiro um atacante jovem e habilidoso, cheio de vigor, como reconhecia o próprio Pagão:
Mas enquanto isso surgia o Coutinho. Meu papel no time era o de vir buscar a bola e combinar com o Pelé na área. Na minha ausência essa responsabilidade ficou com o Pelé, Coutinho marcando os gols.[7]
Quando, afinal, obteve o tempo necessário para se recuperar da lesão muscular já era tarde demais, a posição pertencia a Coutinho, e, salientava Pagão, “com todo o merecimento”[8]. Nesta entrevista à Cidade de Santos, concedida no final dos anos sessenta, o desenlace da disputa pela camisa nove era atribuído pelo atleta aos problemas físicos que o atingiram, bem como às pressões do clube para precipitar-lhe o retorno mesmo sem reunir as condições ideais para voltar ao gramado. Nenhuma alusão, portanto, à questão racial, aventada outrora pelo jornal A Tribuna. Por certo, em 1959, quando ela foi noticiada com a ressalva de se tratar de simples boato, a condição de titular estava em aberto, constituindo-se em objeto de uma acirrada concorrência entre os dois centroavantes, ao passo que em 1968, no contexto em que Pagão a relembrava, ela pertencia à história construída por uma equipe cujos méritos ninguém ousava, então, colocar em dúvida[9].
Todavia, no embate envolvendo a camisa nove a variável representada pelas relações raciais não deve ser ignorada, ao contrário, convém levá-la em consideração, quanto mais não seja porque ao que parece ela não se restringia à briga pela titularidade na linha ofensiva, mas incidia também na disputa no sistema defensivo, mais precisamente no gol, onde o titular Manga se encontrava desafiado pelo reserva Laércio. Conforme recordava o segundo, em uma entrevista concedida à Cidade de Santos, os colegas alertavam-no à época sobre os reais motivos da sua condição de regra-três:
Você não sabe que existe macumba por trás disso tudo? O Manga não sai do gol, é bobagem ficar aí treinando feito louco, estão trabalhando para ele.[10]
Laércio chegara à Vila Belmiro em 1955 no bojo da negociação envolvendo a transferência de Formiga para o Parque Antártica. Mas, desde então, todos os arqueiros que haviam tentado arrebatar a posição do goleiro negro acabaram derrotados, não por uma questão de mérito, mas devido à intervenção das forças sobrenaturais, consideradas responsáveis pelas contusões que nas horas decisivas alijavam os concorrentes da disputa pela titularidade. Dessa maneira, o ex-goleiro do Palmeiras explicava ao repórter da Cidade de Santos o porquê do longo tempo passado na condição de regra-três. A “onda negra” não o “largava”. Graças a ela, “Manga não saia do gol”.
Antes de excursionar pela Europa, no entanto, o Santos arrebatara o título de campeão do Torneio Rio-São Paulo, na última rodada da competição, ao vencer o Vasco da Gama no Pacaembu pelo placar de 3 a 0 -, com Laércio no gol e Coutinho no ataque[11]. Mas, fosse por causa das inúmeras contusões, fosse devido ao excesso de jogos, o revezamento entre os atletas constituía a norma, não a exceção, ensejando as mais diversas escalações ao longo da temporada, não somente no gol, como, sobretudo, no ataque.
Assim, por exemplo, na vitória por 7 a 0 contra o América, na Vila Belmiro, pelo Campeonato Paulista de 1960, A Tribuna sublinhava que “Pagão e Coutinho” se transformaram em “constante pesadelo” para a defesa adversária. Já por ocasião da goleada de 5 a 0 sobre o Botafogo, em pleno Maracanã, pela Taça Brasil de 1963, ela salientava que não havia como deter os “endiabrados” Coutinho e Pelé, cujas “tabelinhas” puseram em “pânico” a defesa carioca[12]. De novo no Maracanã, contra o mesmo Botafogo, mas desta feita pelo Torneio Rio-São Paulo de 1959, A Tribuna descrevia nos seguintes termos o último gol do Santos, na vitória por 4 a 2, marcado aos vinte e cinco minutos do segundo tempo:
Pagão e Pelé organizaram a clássica “tabelinha”, trocando bola por quatro vezes consecutivas, terminando o centroavante por mandar a pelota para o fundo da meta.[13]
A tabela clássica, portanto, ao contrário da visão sedimentada na memória coletiva, não se limitava à dupla constituída por Pelé e Coutinho, mas envolvia também as combinações formadas por Coutinho e Pagão, ou, ainda, como no Maracanã, por Pelé e Pagão. De fato, no templo sagrado do futebol, onde se cultuava outrora um jogo pagão, jogava-se muitas vezes ao som de um samba popular que escalava em campo, de acordo com a imaginação do poeta, jogadores “endiabrados” cujas tabelas embaralhavam as cartas de identidade, ignorando a cor do time e a tez do atleta: “Para Mané para Didi para Mané para Mané para Didi para Pagão para Pelé para Canhoteiro”.[14]
[1] Cf. “Dois troféus e três craques”, A Tribuna, 15 de julho de 1959.
[2] Cf. “Pagão num ano de pouca sorte”, A Tribuna, 18 de dezembro de 1959. O atacante sentiu a contusão contra a Bulgária e só retornou ao time contra o Real Madrid, “mas apenas por alguns minutos”. Sem condições de prosseguir na excursão, embarcou de volta para o Brasil.
[3] Cf. “Esclarecendo uma ´onda`…com fatos” A Tribuna, 15 de julho de 1959. A pensão mencionada por Pagão era a de Dona Georgina onde ficavam hospedados os atletas mais jovens do Santos, dentre os quais, Dorval, Pelé e Coutinho. Cf. “Pensionistas de Dona Georgina”, A Tribuna, 10 de fevereiro de 1961.
[4] A contusão ocorreu na partida contra o Fluminense, no Pacaembu, disputada no sábado à noite, 18 de abril de 1959. De acordo com a edição do dia seguinte de A Tribuna: Entrou Coutinho nos minutos finais, sem oportunidade”.
[5] Cf. “Pagão diz o que sofreu”, Cidade de Santos, 25 de fevereiro de 1968. Nessa entrevista o atleta responsabilizava o departamento médico do clube pela situação vivida: “Um dia não aguentei mais, fui falar com o dr. João de Vincenzo, escondido. Ele ficou espantado: ´meu Deus, isso é um crime que estão fazendo com você: está com os músculos rompidos, precisa ficar pelo menos dois meses sem jogar”.
[6] Cf. “Pagão diz o que sofreu”, Cidade de Santos, 25 de fevereiro de 1968.
[7] Cf. “Pagão diz o que sofreu”, Cidade de Santos, 25 de fevereiro de 1968.
[8] Cf. “Pagão diz o que sofreu”, Cidade de Santos, 25 de fevereiro de 1968: “Fiquei na reserva, entrava de vez em quando. Vi que naquele timaço já não havia lugar para mim.”.
[9] As desconfianças a respeito das afinidades da dupla Pelé e Coutinho também contaminariam os preparativos da Seleção Brasileira para a Copa do Chile, conforme noticiava a imprensa praiana: “Nesta divergência entre Pelé e Vavá há algo mais que é o entendimento extraordinário entre Pelé e Coutinho…”. Cf. “Propalada rivalidade Vavá x Pelé chegou ao Chile”, A Tribuna, 26 de maio de 1962.
[10] Cf. “…Laércio ser titular”, Cidade de Santos, 26 de novembro de 1967. Manga era o codinome de Agenor Gomes, arqueiro do bicampeonato do Santos, conquistado em 1955 e 1956.
[11] Vitória por 3 a 0 com gols de Pelé e Coutinho (2). Cf. “Santos F. Clube, Campeão do Brasil! ”, A Tribuna, 14 de maio de 1959.
[12] Cf. “Santos bicampeão da Taça Brasil”, A Tribuna, 3 de abril de 1969. Os gols foram assinalados por Dorval, Pepe, Coutinho e Pelé (2).
[13] Cf. “Torneio Rio-São Paulo”, A Tribuna, 10 de abril de 1959. Os gols foram marcados por Pelé, Dorval e Pagão (2).
[14] Letra da música “O Futebol”, do álbum “Chico Buarque, de autoria de Chico Buarque de Hollanda, composta em 1989.