152.1

Jornalismo em condicional

Pedro Paula de Oliveira Vasconcelos 1 de fevereiro de 2022

O início dos campeonatos estaduais levou embora mais uma intertemporada no futebol brasileiro, quando atletas estão de férias, os treinos são raros e há pouquíssimas competições. Nessas épocas, sem resultados para repercutir, o jornalismo esportivo muda de foco e prioriza o extracampo, especialmente a negociação de jogadores. É o famigerado Mercado da Bola, que a cada ano ganha espaço e sofisticação (vide a atual cobertura do ge.globo.br).

Programas de rádio e de TV, portais online, redes sociais e jornais impressos ficam cheios de discursos do tipo: “Clube X monitora o jogador A”; “Clube Y quer o jogador B”; “Jogador C desperta o interesse da equipe Z”. Foi assim que, por alguns dias em dezembro, a torcida do Ceará sonhou com a chegada do atacante Gilberto (ao sair do Bahia, ele acabou escolhendo o Al Wasl). No Corinthians, há quem aguarde Cavani – que dois anos atrás esteve, hipoteticamente, a um passo do São Paulo.

Diversas vezes, sequer existe assinatura de contrato, sondagem oficial, confirmação de compra e venda. Mas a simples possibilidade parece suficiente para abastecer longos debates. E aí vemos um fenômeno curioso: numa atividade que procura relatar, interpretar ou julgar acontecimentos situados sócio-historicamente, fala-se bastante do que ainda não ocorreu e não se sabe se ocorrerá, do que talvez tenha ocorrido ou do que poderia ter sucedido se a história fosse diferente.

Quero aqui trazer, em forma de ensaio, considerações sobre o assunto, num primeiro esforço de teorização. Ao final do texto, apresento a ideia de jornalismo em condicional como modo de ressaltar os efeitos dessa produção que privilegia o rumor, a dúvida, a especulação, a contingência, a expectativa e não a certeza, a tendência em vez da prova, o virtual no lugar do atual.

1.

O jornalismo consegue apreender e narrar a “realidade”? De que maneira temos acesso aos objetos do mundo? O processo que os discursiviza é mais ou menos transparente? E o resultado, mais ou menos fiel à apuração? Essas perguntas levam a inúmeras respostas, dependendo da abordagem. Apesar das divergências, costuma-se concordar em um ponto: é necessário partir de um referente, suscetível de comprovação; ou seja, os textos jornalísticos devem se referir a ocorrências, processos e problemáticas que foram ou que serão inscritos num real-histórico determinado, como explica Sodré (2009).

Essa indispensável ancoragem nos acontecimentos, que ganhou corpo no jornalismo industrial e sua herança positivista, serve de base a inúmeras formulações, algumas das quais cito abaixo.

  • Miquel Alsina (1993): a existência das mídias depende do acontecimento-notícia. Dele se elabora uma representação social conforme as dimensões simbólicas do autor.
  • Patrick Charaudeau (2013): os meios de comunicação têm como tarefa dar conta de acontecimentos situados numa cotemporalidade enunciativa.
  • Márcia Benetti (2010): o texto jornalístico deriva do reconhecimento, da apuração e do relato sobre fatos brutos.
  • Adriano Rodrigues (1993): no jornalismo, o acontecimento é o referente de que se fala – uma espécie de ponto zero da significação.
  • Marconi da Silva (2006): a linguagem jornalística aponta para objetos do mundo. Ela se constrói em torno de acontecimentos, cabendo ao profissional farejá-los, identificá-los e narrá-los (FRANÇA, 2012).

Longe de esgotar a questão, pretendo apenas ressaltar a importância da ideia de referente/acontecimento para o jornalismo. Ao escrever, perseguimos a materialidade, os estados e as transformações do nosso cotidiano.

Essa exigência, inclusive, caracteriza o trabalho da imprensa e o diferencia de áreas próximas. Senão vejamos: de acordo com Sodré (2009), a ficção cria aquilo que narra; na literatura, por exemplo, o acontecimento não tem, necessariamente, de preexistir ao ato de narrar – sem ele, o texto continua existindo. No jornalismo, por outro lado, o acontecimento obriga-se a ser verídico e comprovável. O pacto de credibilidade que sustenta a indústria da informação vem daí.

2.

Diante de numerosa matéria-prima, a editoria esportiva opera recortes bem específicos na hora de compor seu conteúdo. Geralmente, privilegia o jogo como evento nuclear. Interessa o que se passou dentro de campo e nas adjacências (arquibancada, área técnica), além da preparação dos times e os desdobramentos de cada partida. A consequência é uma pauta burocrática (BARBEIRO; RANGEL, 2006) que enfatiza resultados (MALULY; LONGO, 2020; VILAS-BOAS, 2005).

Nem todos os jogos, contudo, tem a mesma notoriedade. Como argumentado pelo espanhol Rojas-Torrijos (2012a; 2012b; 2016), na maior parte dos países europeus e latino-americanos, o jornalismo esportivo se resume ao futebol. E mais (ou menos?): futebol masculino, adulto, profissional e oriundo dos grandes centros.

Esse tipo de ocorrência, com essas características e esses atores, é produzido em ritmo industrial, que a cobertura especializada busca replicar, noticiando e comentando a todo vapor. No Brasil, há apenas um período de relativo marasmo: entre dezembro e janeiro, a rotação diminui, e o jornalismo que privilegia o evento-jogo fica desfalcado.

Seria talvez a oportunidade de investir em novos personagens e angulações – dada a relevância sócio-histórica do esporte e sua estreita ligação com outros campos. Essa discussão, no entanto, fica para depois. Cabe agora notar como as intertemporadas, e o vácuo que elas criam, intensificam as pautas de negociação, convite, sondagem etc. 

Cavani Uruguai
Foto: Wikipédia

3.

O começo da pandemia de Covid-19, em 2020, foi uma grande intertemporada fora de época. Tive a chance de analisar vários programas esportivos da TV fechada, que continuaram com transmissão ao vivo apesar da ausência de torneios.

Numa edição interessantíssima (13/04/2020), o SportsCenter, da ESPN Brasil, noticiou a possibilidade do atacante Cavani, então no Paris Saint-Germain, vir para o São Paulo. Sobre o assunto, só existiam entrevistas desencontradas. Foi o bastante. Debates como Cavani se encaixaria em qualquer time brasileiro? tomaram 25% do tempo total do programa. O uruguaio preferiu o Manchester United – e agora, quase dois anos depois, assistimos a um roteiro parecido, ligando Cavani ao Corinthians.     

Também na ESPN Brasil, o programa Bate-Bola (16/04/2020) veiculou uma entrevista de Andrés Sanchez, presidente do Corinthians, na qual revelava a tentativa de contratar Neymar quando ele estava saindo do Santos para o Barcelona. A pauta: Se o atacante tivesse jogado no Corinthians, hoje o clube estaria cheio de títulos ou cheio de dívidas? Por alguns minutos, os jornalistas propuseram uma linha do tempo alternativa – com Neymar ainda no futebol brasileiro.

Os exemplos se repetem consistentemente e ajudam a ilustrar a cobertura em momentos de poucos jogos (e de negociações aquecidas). As denominações costumam oscilar entre Mercado da Bola; Central do Mercado; Vai e Vem do Mercado, entre outras. 

Defendo que a especulação tem papel significativo em discursos dessa natureza, afinal, trata-se daquilo que talvez aconteça no futuro, daquilo que nunca ocorreu, mas com sorte, poderia ter ocorrido e daquilo que talvez tenha se realizado, embora falte certeza. Nesse último caso, a gramática oferece um termo para expressar a dúvida: condicional de valor evidencial. Verbos no futuro do pretérito (“teria dito”; “teria autorizado”; “seria o culpado”) revelam conteúdo obtido de maneira indireta ou carente de verificação.

Nas palavras de Fontcuberta (1993, p. 33), estamos no terreno das hipóteses e dos rumores não comprovados: “o único que se sabe é que não se sabe nada concreto, ainda que se intua que possa passar algo”.

4.

Considero incorreto e insatisfatório, porém, reduzir o fenômeno à simples invenção, como se o jornalismo esportivo resolvesse fabricar a esmo cenas e protagonistas. O mecanismo discursivo se mostra mais complexo: na origem, existe sim algum indício, um fragmento de ocorrência que se manifesta ao jornalista. Entretanto, invés de um Acontecimento com A maiúsculo, temos uma versão falha, incompleta, apenas potencial, duvidosa, contingente, sobre a qual não se sabe muito. É a entrevista isolada, a informação plantada pelo empresário ou pelo assessor, o sonho inalcançável do dirigente, a dica em segunda mão, a expectativa do público, a postagem na rede social etc.

Em face de conteúdos tão indeterminados, o bom jornalismo pede checagem, aprofundamento e consulta a novas fontes até que a dúvida seja esclarecida. Luiz Costa Pereira Júnior (2010) propõe um gráfico bastante útil em A apuração da notícia:

O indicado, conforme o autor, é ter dados suficientes e precisos ao fim da apuração. Se as informações forem precisas, mas insuficientes, o repórter tem de cavar mais. Se forem suficientes, mas imprecisas, vale intensificar a checagem. No caso de imprecisão e escassez, Pereira Júnior (2010) sugere recomeçar do zero.

Verificar antes de publicar, confirmar antes de repercutir, certificar-se de que as declarações e os fatos são autênticos antes de assumi-los – eis a forma-ideal da prática jornalística.

Gilberto Bahia
Foto: reprodução Facebook/Esporte Clube Bahia

5.

Eticamente, portanto, espera-se o máximo possível de conformidade entre o texto publicado e a matéria-prima que está na origem do processo. Mas o que ocorre quando, fora do cenário ideal, temos em mãos um quase-acontecimento (ou um acontecimento falho, parcial, duvidoso – como caracterizei acima)?

Minha tese: a especulação preenche os espaços deixados pela precocidade da pauta, pela ausência de informações seguras ou pelas oscilações do mercado. Faz isso à revelia dos limites factuais, deixando de lado a âncora que conecta o jornalismo à “realidade”. Se âncoras estabilizam e dão segurança, elas também impedem o movimento. E sobretudo em períodos de intertemporada, há uma espécie de permissão para navegar livremente, com a imaginação solta.

Nesse ponto, é útil mencionar que autores como Quéré (2012) e França (2012) atribuem ao acontecimento uma enorme força narrativa (ou potencial hermenêutico). Ao aparecer no mundo, ele nos faz pensar e agir. Tentamos compreendê-lo e defini-lo. Atribuímos valor. Falamos dele, transformando-os em texto, inclusive jornalístico.  

Sodré (2009) argumenta que o pragmatismo e a formalidade do jornalismo tentam ignorar a imaginação, o não-visto. Mas aquém ou além dos fatos, o acontecimento tem uma parte excessiva que abre um amplo leque interpretativo. Talvez por isso, completa Marconi da Silva (2011, p. 102), “o mundo jornalístico é tão encantador e superlativo”.

A falta de elementos comprováveis em algumas coberturas gera um excedente de sentido capaz de transbordar. Porém, o que transborda já perdeu sua ancoragem. É como se a procura humana por desdobramentos não se contentasse com o pouco que se tem. Qual o sentido de enfrentar a escassez diante de um oceano de possibilidades? Construir mundos parece melhor: “a vida faz mais sentido na ficção”, afirma B. E. Ellis, citado por Sodré (2009, p. 161).

6.

Para finalizar, essa prática discursiva gera um jornalismo em condicional. O dicionário Houaiss define assim a palavra condicional: “1. Que contém, implica, é sujeito a ou dependente de uma condição; incerto, condicionado; 2. Que expressa condição ou suposição; que introduz ou implica uma suposição ou hipótese” (CONDICIONAL, 2009, p. 515). Agarrado a acontecimentos parciais, frouxos, contingentes, incertos, temos um jornalismo em suspensão e estado de dúvida, aguardando uma confirmação que talvez nunca chegue, mas sem a qual, como vimos, pode sobreviver facilmente.

Trata-se de um tópico que instiga reflexões. É possível pensá-lo, por exemplo, a partir da ética e da qualidade no jornalismo esportivo; ou das estratégias utilizadas pela mídia para converter rumores em debates animados. Há de se discutir ainda a manutenção de assuntos e fontes consagrados mesmo quando o número de jogos diminui, afinal, reservar à especulação tanto tempo e espaço também é um gesto político. Voltarei a isso no futuro.

Referências

ALSINA, Miquel Rodrigo. La construcción de la noticia. Barcelona: Paidós, 1993. 

BARBEIRO, Heródoto; RANGEL, Patrícia. Manual de jornalismo esportivo. São Paulo: Contexto, 2006.

BENETTI, Marcia. O jornalismo como acontecimento. In: BENETTI, Marcia; FONSECA, Virginia Pradelina da Silveira (Org.). Jornalismo e acontecimento: mapeamentos críticos. Florianópolis: Insular, 2010.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2013.

CONDICIONAL. In: HOUAISS, Antônio; VILAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 1439.

FONTCUBERTA, Mar de. La noticia: pistas para percibir el mundo. Barcelona/Buenos Aires: Paidós, 1993.

FRANÇA, Vera. O acontecimento e a mídiaGaláxia, São Paulo, v. 24, p. 10-21, dez. 2012. Acesso em: 20 abr. 2020.

MALULY, Luciano; LONGO, Gustavo. A construção da notícia esportiva: conceitos e autores. Revista de Estudos Universitários-REU, v. 46, n. 2, p. 231-254, 2020.

PEREIRA JÚNIOR, Luiz costa. A apuração da notícia: métodos de investigação na imprensa. Petrópolis: Vozes, 2010.

QUÉRÉ, Loius. A dupla vida do acontecimento: por um realismo pragmatista. In: FRANÇA, V.; OLIVEIRA, L. (Org). Acontecimento: reverberações. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

RODRIGUES, Adriano Duarte. O acontecimento. In: TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Vega, 1993.

ROJAS-TORRIJOS, José Luis. Del fútbol por exceso a la espectacularización de la información en el periodismo deportivo. Propuestas para una mayor diversificación temática de los contenidos. In: CONGRESO INTERNACIONAL LATINA DE COMUNICACIÓN SOCIAL, La Laguna. Actas, 2012a. p. 1-13.

ROJAS-TORRIJOS, José Luis. La futbolización de la información deportiva. Un estudio de casos de cuatro diarios deportivos europeos. Comunicação & Cultura, 13, p. 77-95., 2012b.

ROJAS-TORRIJOS, José Luis. La creciente banalización de los contenidos deportivos. Cuadernos de Periodistas, Madrid, v. 31, p. 48-56, 15 mar. 2016.

SILVA, Marconi Oliveira da. Era tudo mentira: a verdade jornalística. São Paulo: Intermeios, 2011.

SILVA, Marconi Oliveira da. Imagem e verdade: jornalismo, linguagem e realidade. São Paulo: Annablume, 2006.

SODRÉ, Muniz. A narração do fato: notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis: Vozes, 2009.

VILAS BOAS, Sérgio. Formação & Informação esportiva: jornalismo para iniciados e leigos. Summus Editorial, 2005.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Pedro Vasconcelos

Jornalista e mestre em comunicação. Apaixonado por esportes (e pela cobertura midiática dos fenômenos esportivos). Atualmente, pesquisa a participação do espectador em programas televisivos sobre futebol.

Como citar

VASCONCELOS, Pedro Paula de Oliveira. Jornalismo em condicional. Ludopédio, São Paulo, v. 152, n. 1, 2022.
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