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Jornalistas e Cartolas: uma reflexão sobre o jornalismo esportivo

Jornalistas e Cartolas: uma reflexão sobre o jornalismo esportivo como fonte histórica a patir de uma análise do Jornal do Brasil e do Jornal dos Sports no dissídio esportivo dos anos 1930

Dentro do campo da História do Esporte, o uso de material da imprensa esportiva como fonte histórica é recorrente, e mesmo natural. Como apontado por Victor Melo et al. (2013, p. 120), “os periódicos, notadamente os jornais, são muito usados nos estudos históricos (…). De fato, provavelmente permanecerão por muito tempo como sua principal fonte”. São raros os trabalhos sobre os esportes, e sobre o futebol no Brasil em particular, que não utilizam matérias do jornalismo esportivo como fontes. E isso não deve ser encarado como um problema. De fato, as páginas dos jornais representam importantes meios de comunicação e de registro que permanecem acessíveis aos pesquisadores, onde um grande volume de informações sobre assuntos relacionados ao esporte podem ser acessadas e interpretadas. Tendo-se em conta um procedimento metodológico adequado, as páginas esportivas são, sem dúvida, um importante manancial de informações para historiadores que se debruçam sobre diferentes aspectos do fenômeno esportivo. O artigo de Tânia de Luca (2010) ainda é um importante ponto de partida para quem busca compreender melhor essa metodologia. De forma bem resumida, pode-se afirmar que em um trabalho de pesquisa histórica, é parte fundamental do ofício do historiado adotar um olhar crítico sobre suas fontes, de modo que este não seja levado à conclusões distorcidas devido ao mal uso de fontes tendenciosas.

No entanto, ainda é possível encontrar obras em que tais fontes parecem ser utilizadas sem esses mínimos cuidados. Onde tem-se a impressão de que os jornais apresentam o passado “como ele realmente aconteceu”, em uma abordagem rankeana da história, no que Melo et al. (2013, p. 120) definem como uma “crença ingênua de que os jornais apenas registram os acontecimentos, sendo, portanto, confiáveis para o relato do passado”. Isso não quer dizer, no entanto, que tais fontes não possam, ou mesmo não devam, ser utilizadas pelos historiadores ou pesquisadores em geral. Deve-se apenas levar tais fatores em consideração ao se proceder com a análise do material utilizado.

Este texto tem como objetivo demonstrar a importância de tais cuidados ao se estudar o esporte nas páginas dos jornais. Já fiz apontamentos nesse sentido em outro texto, sobre a imprensa esportiva na Argentina peronista. O presente trabalho teve início durante minhas pesquisas sobre o esporte no primeiro governo Vargas. Ao analisar a imprensa esportiva carioca no período de 1933 a 1937, foi visível a diferença de enfoque com que diferentes jornais lidavam com o mesmo assunto. Dentre esses, destaco aqui dois dos principais jornais da cidade do Rio de Janeiro, o Jornal do Brasil (JB) e o Jornal dos Sports (JS). Em um momento no qual a organização esportiva estava dividida entre dois grupos dirigentes antagônicos, o JB e o JS conduziam suas matérias de forma visivelmente parcial, tornando-se porta-vozes dos grupos em conflito, no que Bernardo Buarque de Hollanda (2012) chamou de “cronistas-cartloas”, ou seja, agentes da imprensa esportiva que transitavam entre os campos do esporte e da imprensa.

Para melhor entendermos a questão aqui proposta, faz-se necessária uma breve análise do período em que a organização esportiva nacional esteve dividida entre dois grupos antagônicos, fato conhecido na época como o dissídio esportivo.

O dissídio esportivo

O governo de Vargas teve como uma de suas principais marcas uma profunda ambiguidade, entre modernização e tradição. Por um lado, o país atravessava uma grande modernização econômica e social, com a implementação de ampla gama de políticas sociais, envolvendo a regulamentação da educação, do serviço público, do trabalho e da cultura, por exemplo, e com uma crescente racionalização do aparelho burocrático do Estado, que provia meios administrativos e recursos financeiros a essas políticas. Junto a essa modernização, conviviam fortes características tradicionais, representadas pelas oligarquias regionais que ainda possuíam grande influência junto ao governo.

Tal ambiguidade pode ser também encontrada nas relações entre Estado e esporte, em especial no que se refere à inserção do profissionalismo no Brasil. Um olhar mais superficial sobre a relação entre Getúlio e o esporte poderia apontar para um esforço do Estado na consolidação do regime profissional no esporte brasileiro. Contudo, tal não foi o caso, como pode ser visto no processo de construção do profissionalismo do futebol brasileiro.

Amador desde adoção pelas elites brasileiras no início do século, o futebol se modernizava e os clubes tentavam acompanhá-lo, buscando meios de burlar as barreiras limitadoras do amadorismo vigente. O amadorismo marrom era feito através do pagamento de “bichos” aos jogadores amadores – como não podiam receber salários dos clubes por serem amadores, os jogadores recebiam prêmios por cada jogo disputado.

O amadorismo marrom foi uma das maiores armas utilizadas pelos clubes para manter seus jogadores e aliciar craques de outras equipes. No entanto, no final dos anos 20 e início dos 30, o futebol se profissionalizava na Argentina e no Uruguai, e a Itália descobria os Oriundi – jogadores descendentes de italianos que eram cooptados para times da terra de Mussolini e do calcio. Os clubes de futebol brasileiros começavam a sofrer com um grande êxodo de jogadores brasileiros para o exterior. Em 1931, muitos jogadores paulistas foram parar na Itália, como Filó[1], Del Debbio, Serafini, Pepe e Ministrinho – todos que já haviam defendido a seleção brasileira –, assim como Nininho e Ninão, ambos do Palestra Itália de Belo Horizonte, atual Cruzeiro.

Devido ao êxodo de jogadores para o exterior e o baixo poder aquisitivo dos clubes, o profissionalismo passou a ser visto por alguns como o único caminho a ser seguido rumo à modernização do futebol brasileiro. A ideia de considerar jogadores profissionais verdadeiros trabalhadores ainda enfrentava grandes barreiras, mas não era mais inconcebível.

Alguns clubes de São Paulo e do Rio de Janeiro passaram então a pleitear a introdução do regime profissional junto à Confederação Brasileira de Desportos (CBD). Entre esses, encontravam-se os ex-presidentes da CBD Arnaldo Guinle e Oscar Costa, ex-presidente e presidente do Fluminense respectivamente, assim como dirigentes da entidade gestora do futebol paulista, a Apea. Com a recusa por parte da CBD em acatar os termos do regime profissional, Fluminense, Vasco, Bangu e América tomam a iniciativa de romper com a Amea e criam a Liga Carioca de Futebol (LCF), à qual o Flamengo logo aderiu. A LCF adotou o profissionalismo como regime vigente e foi rejeitada pela CBD, que só aceitava entidades amadoras. A nova Liga Carioca teve seu primeiro campeonato em 1933, disputado por América, Bangu, Bonsucesso, Flamengo, Fluminense e Vasco. O Bangu sagrou-se o primeiro campeão do regime profissional no Rio de Janeiro, vencendo o Fluminense na final. Assim, o futebol seguia os passos de outros esportes que haviam criado Ligas paralelas à Amea, como o tênis, em 1931, o atletismo e o basquete, ambos em 1933.

Arnaldo Guinle.
Arnaldo Guinle.

Juntamente com a criação da LCF no Rio de Janeiro, a Apea adota o profissionalismo e se desliga da CBD. Em pouco tempo, as duas entidades recebem o apoio da Federação Fluminense de Esportes (com clubes do estado do Rio de Janeiro, que tinha sua capital na cidade de Niterói, visto que a cidade do Rio de Janeiro era ainda o Distrito Federal), da Associação Mineira Esportes e da Federação Paranaense de Desportos e formam a Federação Brasileira de Football (FBF). Esta representava o futebol profissional em todo o país. Presidida por Sérgio Meira, ligado ao São Paulo, a FBF tinha em seus quadros os maiores clubes do Brasil: América, Flamengo, Fluminense, Vasco da Gama, Corinthians, Palestra Itália-SP, Santos, São Paulo, Palestra Itália-MG, Atlético Paranaense e Coritiba, entre outros. Já a CBD continuou contando com os clubes das demais federações, como a Bahia e o Rio Grande de Sul, além dos times amadores que não se uniram à FBF, como o Botafogo.

Um olhar mais atento à cisão do futebol brasileiro pode, no entanto, observar que a disputa não era uma mera discordância entre amadores e profissionais. O dissídio representava as próprias contradições do regime vigente. A antiga elite que dirigira o futebol nacional, representada por Arnaldo Guinle, que fora presidente da CBD de 1916 a 1920, perdia o controle da direção do esporte nacional para um novo grupo que ascendia juntamente à Revolução de 1930. Nomes como Luiz Aranha e João Lyra Filho, ligados à CBD e ao Botafogo, passavam a exercer grande influência junto à Confederação Brasileira de Desportos e iam aos poucos assumindo o controle da entidade.

A imprensa esportiva e a pacificação em 1934

Em 1934 aparece a primeira tentativa de fim ao dissídio, logo chamada de pacificação dos esportes. Essa primeira proposta de acordo entre a Confederação Brasileira de Desportos e a Federação Brasileira de Football veio à tona pouco após a desclassificação da seleção brasileira da Copa de 1934, no mês de junho. É importante observar aqui que a precoce eliminação da seleção nacional, que perdeu o jogo eliminatório da estreia, pode ter sido um fator determinante na movimentação de dirigentes da CBD, visando reformar e fortalecer o futebol da seleção nacional, o carro chefe a CBD.

A proposta apresentada previa, entre outras medidas, que a FBF e suas afiliadas especializadas (as federações regionais de futebol) fossem reconhecidas pela CBD, fazendo com que a FBF, então filiada à Confederação Brasileira, dirigisse o futebol nacional. No Rio de Janeiro, a Liga Carioca de Football assumiria o futebol da cidade, com a incorporação de um único clube da Associação Metropolitana de Esportes Athléticos (Amea) a seus quadros – o Botafogo. Dos demais clubes de futebol ligados à Amea, alguns fariam parte de uma liga de amadores – como o Olaria, o Brasil e o Andarahy – e outros entrariam para uma subliga, a segunda divisão da época. Nos outros esportes, o basquete seria dirigido pela Liga Carioca de Basketball, uma das especializadas, e o atletismo teria uma nova liga criada, com a unificação da Amea e da Liga Carioca de Athletismo.

Esse “pacto de paz” foi assinado por dirigentes de ambas as facções em luta, como Arnaldo Guinle (então com o cargo de presidente do Conselho de Administração da LCF), Luiz Aranha (presidente do Conselho de Administração da CBD), Sergio Meira Filho (presidente da FBF) e Eduardo Góes Trindade (presidente da Amea), além de um convidado representante da Liga Argentina de Football, Enrique Pinto.

A repercussão deste acordo ganhou diferentes tons junto aos diferentes órgãos da imprensa esportiva. O Jornal do Brasil, que desde o início do dissídio havia tomado abertamente a defesa da Confederação Brasileira de Desportos e de suas afiliadas, as chamadas entidades ecléticas, não procurava esconder em suas páginas seu descontentamento com o acordo que estava para ser firmado, como pode ser visto em matéria intitulada “A tal ‘pacifiação’”, publicada no dia 05 de junho:

A nota dominante em nossos meios esportivos é a tal “pacificação” que, segundo se afirma, os mentores profissionalistas que para a desgraça do nosso sport, ao que parece, o empolgam no momento, vão impingir aos que se tem batido com sinceridade pela verdadeira causa do sport nacional, concretizada nessa organização magnífica e sem similar no mundo inteiro, que é a Confederação Brasileira de Desportos. (Jornal do Brasil, 05/06/1934, p. 24)

Pode-se observar, por este trecho, que o Jornal do Brasil não escondia de que lado estava e em nome de quem falava. Ao se referir à CBD como uma “organização magnífica e sem similar no mundo inteiro”, não havia dúvida de que o jornal estava contrário ao grupo liderado por Arnaldo Guinle, que, de acordo com o próprio jornal, empolgavam o esporte nacional no momento, mesmo que para a suposta desgraça do mesmo.

O Jornal do Brasil continuaria mostrando sua insatisfação com o acordo firmado em uma série de artigos em que tentava provar que o pacto atendia apenas os interesses da FBF. De acordo com o JB, tal acordo prejudicaria todos os esportes, com exceção do futebol, uma vez que seria o lucro com o futebol que permitiria a Amea e todas as outras entidades ecléticas regionais financiarem os outros esportes. Dessa forma, o jornal publicou uma série de matérias que, ao falarem dessa proposta de pacificação, se referiam a ela em seus títulos como “pretensa pacificação”: “A Pretensa Pacificação que vai Desmantelar o Sport Nacional” (07/06/1934, p. 24), e “A Pretensa Pacificação dos Sports Nacionais” (15/06/1934, p. 25).

Já o Jornal dos Sports, que à época era dirigido por Argemiro Bulcão, apontava a proposta de pacificação como a grande esperança para o bem do esporte nacional. Já em 02 de junho, o jornal estampava com grande destaque em sua primeira página: “Para Grandeza dos Sports Brasileiros a Pacificação Virá!” (Jornal dos Sports, 02/06/1934, p.1). A assinatura do pacto foi vista com muita felicidade pela redação do Jornal dos Sports, que na edição do dia 07 de junho publicou a matéria “Uma Nova Trilha, Tranquila e Esperançosa, para os Sports Nacionaes”, onde dizia:

A pacificação dos sports, hontem feita atravez do pacto firmado pelos “leaders” mais proeminentes das duas facções que lutavam sem desfallecimentos, há mais de um anno, é, antes do mais, uma victória para o próprio sport brasileiro, seu maior beneficiário (…). (Jornal dos Sports, 07/06/1934, p.1)

Ainda que de forma mais velada, é possível ver no Jornal dos Sports sua predileção pela liga especializada. O acordo, tido pelo JB como algo benéfico para a FBF, em prejuízo à CBD, era tratado como “uma vitória para o próprio esporte brasileiro”. O destaque dado cotidianamente aos dois campeonatos organizados simultaneamente pela Amea e pela LCF demonstra a posição do jornal. Se por um lado o Jornal dos Sports destinava a maior parte de suas manchetes de primeira página aos times da LCF – Flamengo, Fluminense e, até 1935, Vasco da Gama –, por outro o Jornal do Brasil dava uma cobertura muito mais ampla aos jogos organizados pela associada regional da CBD, como Botafogo e Olaria, Andarahy e Cocotá, Portuguesa e Mávilis. Nas páginas do JB, até mesmo os jogos da segunda divisão da Amea tinham maior destaque dos que os jogos da LCF, mesmo que se tratasse de jogos como Argentino e América Suburbano, Ideal e Penha, Irajá e Municipal, Brasil Suburbano e União, pela Amea, e Fluminense e Bangu, Bonsucesso e Vaso, pela LCF (Jornal do Brasil, 01/06/1934, p. 22). Um pesquisador desatento, sem conhecimento do futebol carioca, poderia achar que Flamengo e Fluminense não jogaram nesse período, caso se informasse apenas pelo JB.

No final de julho de 1934, aproximadamente dois meses após a assinatura do pacto assinado por Luiz Aranha, uma assembleia de diretores da CBD e representantes de suas entidades filiadas decide rejeitar as bases do pacto firmado em início de junho. Mais uma vez, as respostas dos dois órgãos de imprensa esportiva aqui analisados são díspares no tratamento da questão.

O Jornal dos Sports vê a rejeição do pacto como uma atitude impatriótica, e aponta a Confederação Brasileira de Desportos como culpada pelo fracasso nas negociações. Tal fato pode ser observado na matéria “A Federação Brasileira de Football Considera inexistente o Pacto de Paz!”:

A última tentativa de paz, na qual ambas as correntes cediam parte de suas imposições a bem de uma tranquilidade posterior, vem agora de ruir. Toda a culpa cabe, sem dúvida alguma, aos mentores da C.B.D., que embora reconhecidos pela opinião insuspeita do público como vencidos, ousaram uma vez mais repudiar uma paz, em que na verdade o vencedor não espesinhava o adversário. (Jornal dos Sports, 03/08/1934, p. 1)

Se afastando um pouco mais de sua aparente neutralidade, o Jornal dos Sports apontava claramente um grupo como “vencedor” do embate entre as duas facções – o grupo das especializadas liderado por Arnaldo Guinle. Já o Jornal do Brasil comentou a notícia com um tom de felicitação ao que, sob seu ponto de vista, foi uma atitude de coragem e bom senso dos dirigentes cebedenses. No artigo “A Situação do Sport Nacional”, comenta que a ação foi “natural”, “lógica” e fruto de “bom senso”.

O gesto da assembleia geral da Confederação Brasileira de Desportos recusando as bases do pacto de 6 de Junho foi natural, lógico, numa demonstração clara de bom senso e eloquente em sua unanimidade. (Jornal do Brasil, 07/08/1934, p. 22)

Na mesma matéria, o Jornal do Brasil ainda ataca o grupo das especializadas (FBF e entidades regionais), acusando-o de manipular os órgãos da imprensa esportiva que se colocavam contra a atitude da assembleia da CBD e ao fim do pacto de paz.

O despeito pelo ruidoso fracasso dessa tentativa, o desespero de não poder humilhar (…) o adversário levaram esse grupo, através de sua imprensa, a atacar justamente aqueles que, num movimento de legítima defesa para o resguardo da própria vida, recusaram o pacto (…). (Jornal do Brasil, 07/08/1934, p. 22)

Ao utilizar a expressão “através de sua imprensa”, o JB deixava claro o papel exercido por veículos como o Jornal dos Sports, privando-se de mencionar que desempenhava o mesmo papel, apenas de outro lado. É interessante observar que a figura do dirigente Luiz Aranha – talvez por sua influência política ou por prestígio pessoal – é exaltada por ambas as correntes da imprensa como um digno dirigente que buscava o melhor para o esporte nacional. Figura proeminente no campo político nacional, ele era irmão de Oswaldo Aranha, membro fundador do Clube 3 de Outubro e amigo íntimo de Getúlio Vargas – que se refere a ele ao longo de seu diário como “Lulu Aranha” (VARGAS, 1995). Luiz Aranha ocupou o cargo de presidente do Conselho Administrativo da CBD durante a presidência de Alvaro Catão, entre 1933 e 1936, e foi presidente da entidade entre 1936 e 1943. Ou seja, ele esteve à frente da entidade durante praticamente toda a disputa do dissídio esportivo.

Dependendo do lado defendido pelo jornal, Luiz Aranha poderia ter sido induzido ao erro de assinar o pato por sua vontade em encerrar a cisão no esporte (como visto pelo JB), como poderia ter sido traído pelos dirigentes da CBD, que rejeitaram seu acordo. Essa última visão ficava clara nas páginas do Jornal dos Sports, como no artigo “A Federação Brasileira de Football Considera inexistente o Pacto de Paz!”, matéria que comentava o fim do pacto de paz e afirmava: “Os srs. drs. Luiz Aranha e Eduardo Trindade, que foram incansáveis baluartes nos últimos estertores da entidade cebedense, viram baldeados todos os esforços desenvolvidos em prol de uma paz digna para as duas correntes” (Jornal dos Sports, 03/08/1934, p. 4).

A primeira tentativa de acordo falhara, e as disputas continuariam por cerca de três anos.

O percurso até o fim do dissídio

Em dezembro de 1934, o Vasco da Gama, campeão carioca daquele ano, decide abandonar as fileiras da LCF após uma breve crise com as diretorias do Flamengo e do Fluminense. O clube dos camisas negras aposta todas as suas fichas no título recém conquistado e, juntamente com o Botafogo, funda uma nova entidade no Rio de Janeiro, a Federação Metropolitana de Desportos (FMD), ligada à CBD. A diretoria vascaína pretende usar de seu prestígio e carregar consigo os pequenos clubes à nova entidade. Bangu e São Cristóvão seguem o exemplo e desligam-se da LCF para se filiar à nova entidade. Em São Paulo, o Palestra Itália – campeão paulista pela APEA – e o Corinthians desligam-se da entidade profissional e fundam a Liga Paulista de Futebol, também filiada à CBD. Em apenas alguns dias a FBF perde três dos maiores clubes de seus quadros, entre eles os campeões do Rio e de São Paulo. Com isso a CBD consegue se reerguer, mas paga um preço por tais aquisições: o fim do amadorismo. Clubes como Corinthians, Palestra Itália, Vasco da Gama e Bangu não voltariam ao amadorismo tão facilmente.

Por mais que a CBD ainda tentasse manter as aparências, é evidente que as coisas já não eram mais como antes. Com a FMD e a Liga Paulista, a CBD adota o “regime livre” – também chamado de regime misto –, concentrando em um mesmo campeonato equipes amadoras e profissionais.

Com a nova configuração das forças do futebol brasileiro, passa-se a falar muito pouco sobre a questão do amadorismo e do profissionalismo. O grande desentendimento que supostamente teria provocado a criação de novas entidades gestoras do esporte não era mais um obstáculo à conciliação das partes. No entanto, a rixa que havia entre os dois regimes ficava mais clara como uma luta entre duas facções pela hegemonia do controle do esporte brasileiro, uma luta entre grupos que agora levantavam as bandeiras das entidades especializadas e ecléticas.

O ano de 1937 assistiu ao fim do dissídio com a chamada “pacificação dos esportes”. Em 1937 a CBD voltou a sofrer importantes baixas em seus quadros. Os clubes de Juiz de Fora decidiram abandonar a Associação Mineira de Futebol, ligada à entidade eclética e alinharam-se à FBF. O Mesmo aconteceu em Porto Alegre, onde os principais times da Liga Atlética Porto Alegrense – Internacional, Grêmio, Força e Luz e Cruzeiro – também passaram para o lado das especializadas. No Rio de Janeiro, o Bangu demonstrou insatisfação em ralação à FMD e seus dirigentes mostraram-se nostálgicos quanto a seu tempo junto à LCF. No início de julho o Bangu pediu seu reingresso nas fileiras das especializadas e abandonou a FMD.

Em 17 de julho de 1937, o América e o Vasco da Gama apresentaram uma proposta de reunificação do futebol carioca. O pacto entre América e Vasco criava uma nova entidade no futebol carioca, à qual todos os grandes clubes da cidade estavam convidados a entrar como membro fundador. Com a criação de uma terceira entidade, tanto a FMD como a LCF seriam dissolvidas. A nova agremiação se filiaria à Federação Brasileira de Futebol e essa, por sua vez, pediria filiação à CBD. Nesta nova organização de forças, a FBF ficaria responsável pelo futebol brasileiro e a CBD (entidade filiada à FIFA) seria a responsável pela representação do Brasil no exterior. Desse modo, todos os clubes brasileiros deveriam se filiar à Federação Brasileira de Futebol, ou não poderiam enfrentar os outros clubes filiados à mesma.

Essa nova divisão de poderes no futebol deixava bem claro quem havia saído do dissídio esportivo como vencedor. A CBD não saía do dissídio com nenhum benefício. Deixaria de comandar o futebol dentro do território nacional e ficaria apenas com o comando da seleção brasileira em disputas internacionais, encargo que já controlava antes do pacto por ser a entidade brasileira filiada à FIFA. Já o grupo ligado à FBF sagrava-se vitorioso na pacificação e assumia o controle do futebol no Brasil. No entanto, esse ponto de vista não era reproduzido por toda a imprensa esportiva carioca.

A imprensa esportiva no fim do dissídio

Em julho 1937, a imprensa esportiva foi surpreendida pela noticio do pacto entre América e Vasco que levariam ao fim do dissídio esportivo. Até meados de junho daquele ano, o Jornal do Brasil acusava as especializadas, a quem chamava de “dissidentes”, de estarem caminhando para o ocaso. Segundo os cronistas do jornal, as entidades rivais à CBD contavam em suas fileiras apenas com o que chamava de “tripé”: América, Flamengo e Fluminense, no Rio de Janeiro. A estes, somavam apenas o Atlético Mineiro, em Belo Horizonte, e a Portuguesa de Desportos, em São Paulo. Já a CBD teria em suas fileiras diversos clubes de renome, como o Botafogo e o Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, o Palestra Itália (atual Palmeiras), o Corinthians, o São Paulo, o Santos e a Portuguesa de Santos, em São Paulo, e o Palestra Itália (atual Cruzeiro) e o América Mineiro, em Minas Gerais.

Essa visão do Jornal do Brasil fica clara na ocasião em que Grêmio e Internacional se filiam à FBF, fortalecendo o grupo dos supostos “dissidentes”, na matéria “Um Bandeamento por Vantagens Momentâneas e Efêmeras”:

Literalmente batidos, encurralados nesse tripé [América, Flamengo e Fluminense], os dissidentes já estavam reduzidos, praticamente aos célebres Fla-Flu que a imprensa amiga proclamava como sendo coisa de outro mundo, embora esses quadros, na realidade, não passem de medíocres, com vários medalhões e uma propaganda formidável para alimentar o fogo sagrado de suas hostes. (Jornal do Brasil, 26/06/1937, p. 25)

Se referindo especificamente ao Distrito Federal, a cidade do Rio de Janeiro, a reportagem mais uma vez criticava indiretamente o Jornal dos Sports por seu apoio às entidades especializadas. Além de reclamar da “imprensa amiga” e de sua “propaganda formidável”, o jornal forçosamente depreciava as equipes de Flamengo e Fluminense, referindo-se a elas como “medíocres”. Deve-se ressaltar aqui que Flamengo e Fluminense tinham dois dos melhores quadros do futebol nacional na época, com alguns dos maiores craques brasileiros [2].

Ao receberem a notícia do acordo entre Vasco e América, taxado como “pacto da paz” – como o primeiro pacto o fora três anos antes –, ambos os lados da imprensa procuraram demonstrar terem se saído vitoriosos na disputa. Para isso, mostravam seus dirigentes satisfeitos com o resultado das negociações, e ao mesmo tempo tentavam demonstrar a derrota do adversário com insinuações sobre o descontentamento do lado oposto com o acordo. Dessa forma, o Jornal do Brasil buscava demonstrar a vitória da CBD com uma declaração de Luiz Aranha relatada no artigo “Feita a Paz no Football Brasileiro”:

O dr. Luiz Aranha (…) felicitou a Metropolitana [Federação Metropolitana de Desportos – FMD] pela resolução tomada, mostrou como sempre esteve pronto a estabelecer uma paz honrosa e terminou declarando que a C.B.D. via igualmente com satisfação aproximar-se essa paz subscrevendo também, em nome da entidade máxima do desporto brasileiro a proposta Vasco-América. (Jornal do Brasil, 20/07/1937, p. 16)

Ao mesmo tempo, o jornal tentava mostrar uma possível insatisfação por parte de dirigentes da Federação Brasileira de Football e da Liga Carioca de Football com o pacto, insinuando uma possível derrota destas face ao acordo firmado.

Segundo os comentários que fervilham nas rodas desportivas, o sr. Arnaldo Guinle, que se acha na Europa tratando justamente de assuntos desportivos a ver se consegue alguma coisa em favor da dissidência, se manifestou aborrecido com o assunto e contrário ao pacto.

O América foi também taxado de traidor porque não só concorda em que os dissidentes voltem para a C.B.D., desta ou daquela maneira, mas na C.B.D., como ainda mata o pretexto da especialização pelo qual se batem.
O Dr. Ari Franco, presidente da Liga Carioca de Football, segundo declarações publicadas nos jornais, é contrário à formula apresentada e se dispõe a abandonar o desporto caso seja ela executada. (“Está Iminente a Paz no Football Carioca”, Jornal do Brasil, 20/07/1937, p. 16)

O jornal fazia afirmações que não se comprovaram em nenhuma outra fonte. Arnaldo Guinle não “se manifestou aborrecido” e Ari Franco não “abandonou o desporto”, segundo outras fontes. O mesmo padrão pode ser observado nas páginas do Jornal dos Sports, então já dirigido por Mario Filho.[3] Nesse período o jornal já se mostrava mais claramente ligado ao lado das especializadas, como demonstra uma foto estampada na primeira página do dia 12 de julho de 1937, sob a manchete “A Multidão Viu o ‘Enterro’ da C.B.D.” (Jornal dos Sports, 12/07/1937, p.1). A foto mostra torcedores segurando velas acesas e um pequeno caixão preto com os dizeres “C.B.D. – Galinha Morta”, antes de um jogo entre o Fluminense e um combinado de jogadores argentinos.

Enterro CBD

No mesmo dia em que o Jornal do Brasil noticiava a declaração de Luiz Aranha a favor da pacificação, o Jornal dos Sports publicou a fala do vice-presidente da FBF, Plínio Leite. Este comandava a entidade na ocasião, em virtude de viagem de Arnaldo Guinle à Europa. Na matéria “A Palavra do presidente em Exercício da F.B.F”, o Jornal dos Sports procura passar uma imagem vencedora da FBF. Segundo a matéria, Plínio Leite teria dito:

O contentamento é geral pelo prenuncio da terminação do dissídio do football nacional. Como vice-presidente da Federação Brasileira de Football cabe-me afirmar que o gesto do América assignando o pacto com o Vasco nada mais é do que ser elle o representante verdadeiro da opinião de todos os seus companheiros de lutas e que com elles estão solidários como sempre estiveram. (Jornal dos Sports, 20/07/1937, pp. 1 e 6)

 

Assim como o Jornal do Brasil, o Jornal dos Sports também procurou demonstrar uma possível insatisfação com o pacto pelo lado da CBD, de modo a que este aparecesse como o derrotado no processo de pacificação. Como exemplo pode-se apontar duas matérias publicadas no dia 18 de julho, sem maiores destaques na última página da edição. Em “«Traição do Vasco»> Eis como o Sr. Célio de Barros Classificou, Pelo Radio o Movimento em Prol da Paz Sportiva” (Jornal dos Sports, 18/07/1937, p. 6), o jornal menciona uma entrevista de Célio de Barros[4], secretário da CBD à rádio Cruzeiro do Sul, na qual este teria chamado o Vaso da Gama de traidor devido ao pato que firmara com o América. Já a matéria “A Situação do Botafogo é de Expectativa” alegava que o clima no Botafogo era de desaprovação à pacificação, dizendo: “havia até diretores (…) que preferiam ver o club com a sua secção de foot-ball extincta a aceitar uma paz iniciada nas condições do actual movimento” (Jornal dos Sports, 18/07/1937, p. 6).

Considerações Finais

Em 29 de julho de 1937 era realizada a solenidade de fundação da nova entidade que viria a gerir o futebol carioca, a Liga de Football do Rio de Janeiro (LFRJ). Não tardou muito para que o futebol paulista seguisse os passos da pacificação. Com o fim do dissídio em São Paulo, os clubes da Apea se filiaram à Liga Paulista de Futebol (LPF), que inscrevia a Portuguesa de Desportos como membro fundador da entidade e se filiava à Federação Brasileira de Football, agora ligada à CBD. No Paraná a federação Paranaense de Desportos, após um breve afastamento da FBF, voltou a pedir sua inscrição na entidade, também seguindo os parâmetros acordados no Distrito Federal. Em Minas Gerais, o mesmo acontecia com a Liga Esportiva Mineira, assim como em muitos outros estados do país.

Com o fim do dissídio, a paz voltou a reinar no futebol brasileiro. Os outros esportes que já organizavam ligas especializadas seguiram o mesmo caminho traçado pelo futebol, com os clubes se filiando à federação especializada e essa se filiando à CBD. Da mesma forma, a imprensa esportiva abraçou os ideais da paz, selando suas atividades de porta-vozes de entidades em conflito.

Do dia 21 ao 26 de julho, o Jornal do Brasil já repetia diariamente com grande destaque em sua página de “Notícias Desportivas” o confronto entre Flamengo e Fluminense, que ocorreria no dia 26/07. Já o Jornal dos Sports passa a dar maior destaque a notícias envolvendo o Botafogo e o Vasco da Gama em sua primeira página.

Vê-se, desta forma, que uma análise crítica das fontes estudadas é de fundamental importância para um trabalho histórico. Caso um pesquisador menos cuidadoso buscasse olhar o período através de um único veículo da imprensa esportiva, este teria uma visão parcial e desfocada do esporte no período analisado.

Como qualquer outra área da imprensa, da mídia, ou mesmo qualquer outra fonte produzida pelo homem, a imprensa esportiva é feita a partir de um olhar historicamente situado, feita a partir de um ponto de vista específico, por alguém de uma determinada posição social e visando atingir um público em preferencial. Assim, torna-se imprescindível para o pesquisador um olhar mais cuidadoso para a natureza da fonte, sendo ela a imprensa esportiva ou não.


[1] Anfilóquio Guarisi foi contratado pela Lazio e, por também possuir nacionalidade italiana, acabou sendo convocado para a seleção italiana que conquistou a Copa do Mundo de 1934 em casa. Chamado pelos italianos de Guarisi, Filó chegou a disputar um jogo na competição e se tornou o primeiro brasileiro campeão do mundo.

[2] Entre os grandes jogadores da dupla Fla-Flu de 1937, podemos destacar Leônidas da Silva, Romeu, Tim e Hércules, base do ataque da seleção brasileira que disputou a Copa do Mundo de 1938.

[3] Mario Filho assumiu a direção do Jornal dos Sports em 1936, em meio ao dissídio esportivo, e manteve a política do jornal de fidelidade às especializadas, grupo que ele já defendia das páginas esportivas d’O Globo. De acordo com Rui Castro, Mario Filho teria adquirido o Jornal dos Sports de Argemiro Bulcão com dinheiro financiado de Arnaldo Guinle e José Bastos Padilha (Castro, 2001, p. 133). Padilha era concunhado de Mario Filho (era casado com a irmã de sua esposa) e foi presidente do Flamengo de 1933 a 1938.

[4] Célio de Barros era jornalista, presidente de Sport Club Brasil e importante dirigente da Confederação Brasileira de Desportos e do esporte carioca. O estádio de atletismo situado junto ao Maracanã foi nomeado em sua homenagem.

Referências bibliográficas

DE LUCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKI, C. (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2010.

HOLLANDA, Bernardo Buarque de. O cor-de-rosa: ascensão, hegemonia e queda do Jornal dos Sports entre 1930 e 1980. In: HOLLANDA, Bernardo Buarque de; MELO, Victor A. (Orgs.). O esporte na imprensa e a imprensa esportiva no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.

MELO, Victor A. et al. Pesquisa histórica e História do Esporte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.

VARGAS, Getúlio. Diário.  2V.  São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: FGV, 1995.

 

Artigo publicado originalmente em História(s) do Sport.

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Maurício Drumond

Doutor em Histórica Comparada, editor de "Recorde: Revista de História do Esporte", pesquisador do "Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer" da UFRJ e autor de livros e artigos sobre a História do Esporte.

Como citar

DRUMOND, Maurício. Jornalistas e Cartolas: uma reflexão sobre o jornalismo esportivo. Ludopédio, São Paulo, v. 164, n. 12, 2023.
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