174.20

Jovens ilhados

José Paulo Florenzano 20 de dezembro de 2023

Os termômetros acima dos quarenta graus, somados aos festejos de final de ano, haviam elevado a demanda por cerveja e refrigerante a níveis inesperados, esgotando rapidamente os estoques de bebidas nas distribuidoras do Rio de Janeiro. Dessa maneira, debaixo do escaldante sol de verão e com a escassez de produtos tidos como essenciais, principiava o ano de 1969, não deixando alternativa aos cidadãos senão engolir a seco o Ato Institucional 5, decretado em um dia aziago. “Esta sexta-feira foi 13 para muita gente”, comentava com sarcasmo o ministro da Justiça, Gama e Silva, após anunciar em cadeia de rádio e televisão o ato que viria a marcar de forma indelével toda uma geração: a Geração AI-5, conforme a denominaria o sociólogo Luciano Martins.[1]

Tratava-se de elucidar os comportamentos, valores e experimentos que Luciano Martins considerava como sendo característicos da alienação engendrada no contexto histórico da ditadura militar.[2] No entanto, como o próprio sociólogo advertia, o conceito em questão não abrangia o conjunto da juventude brasileira, mas iluminava um fenômeno circunscrito aos jovens das classes médias e altas situados nos bairros mais economicamente favorecidos, como, precisamente, os da Zona Sul.[3] Contudo, mesmo nestes enclaves urbanos mais privilegiados, havia clivagens importantes, comportamentos desviantes, e, convém salientar, ações de resistência à ditadura militar.

Mas, enquanto os segmentos mais politicamente radicalizados da Zona Sul submergiam na clandestinidade da luta armada, segundo a imprensa carioca, levados pelo sonho de reviverem as aventuras cinematográficas de Bonnie & Clyde transpostas para o campo da realidade revolucionária; os setores mais alheios ideologicamente ao embate político-militar mantinham-se à margem do campo de batalha, mais interessados no amistoso realizado no Maracanã entre os selecionados do Brasil e da Alemanha, assunto predominante do Posto 1 ao Posto 6 de Copacabana.[4] Ailton Francisco da Silva, trabalhador ambulante que percorria a “praia mais bonita do mundo” de um extremo ao outro, vendendo chá mate e batata frita, ponderava que “quanto menos política, melhor”, o “negócio” era mesmo “futebol, samba e elas”. Desejoso de se perder em meio à tanta “mulher bonita”, ele “não queria nem que Deus o ajudasse”.[5]

Além do resultado no Maracanã, interessava aos banhistas que afluíam as praias cariocas as últimas novidades da moda. E a moda, naquele início de ano, era o jipe incrementado com faróis de milha, pneus importados e flores “psicodélicas” desenhadas nas laterais dos veículos que disputavam espaço com os ônibus urbanos. Os passageiros exaustos que retornavam para casa após uma longa jornada de trabalho, podiam colher nos coletivos superlotados os ensinamentos das mensagens inscritas nos jipes da moda pela irreverência de uma juventude privilegiada: “Dinheiro não traz felicidade, compra”.[6]

Costurando o trânsito em alta velocidade, exibindo os corpos bronzeados, cabelos ao vento, os jipes de guerra disputavam com os carros esportes a hegemonia das ruas. Entre os dois grupos, no entanto, interpunha-se a turma das “motocicletas japonesas” que apenas dois anos antes tinham sido a “coqueluche” da Europa.[7]  Lá como cá, pouco importava se sobre duas ou quatro rodas, o objetivo dos motoristas era o mesmo: atrair a atenção do assim chamado belo sexo. “Na praia de Ipanema, por exemplo, uma jovem de 18 anos” – notava o observador arguto da imprensa carioca – “esnobava tranquilamente uma carona em um Puma novinho em folha”, preferindo, ao invés do carro esporte último tipo, “enfrentar” as aventuras em um “velho jipão de guerra”.[8]

A garota de Ipanema, nesse sentido, constituía-se no cobiçado “troféu” disputado pelas gangues da Puma, da Honda e da Land-Hover. Não por acaso, um dos jipes de guerra que circulava pela Avenida Atlântica alertava os motoristas mais impacientes com o trânsito: “Devagar que estou paquerando”. Contudo, entre um flerte e outro, havia espaço para cumprir o dever cívico e externar o amor à pátria. As lojas de acessórios ofereciam aos clientes uma buzina especial cujo som imitava os acordes do Hino Nacional. A Geração AI-5, a rigor, repartia-se em uma plêiade de grupos mais ou menos alienados, com graus variados de envolvimento com o culto aos carros. De fato, se voltarmos por um instante à moda dos jipes, veremos que eles também traziam slogans pincelados com as cores de uma pretensa contestação: “Seja criativo, invente um protesto”.

Com efeito, anos depois da referida moda, mas ainda na paisagem austera dos Anos de Chumbo, uma expoente da Geração AI-5 convertia o território ameno e anódino da praia carioca no epicentro de uma inesperada disputa política travada em torno da soberania dos corpos bronzeados. Importada diretamente do Mediterrâneo, o uso dos “maiôs sumários”, desacompanhados de “souteen”, agitava as areias da Montenegro, considerada, então, o trecho mais badalado da orla marítima.[9] De fato, à medida que o ponto de encontro das elites cariocas se popularizava, atraindo indivíduos de fora do restrito círculo de privilegiados, o espaço da sociabilidade se deslocava, migrando da praia do Arpoador para a do Castelinho, e, agora, no início dos anos setenta, para a da Montenegro. Esta última, no entanto, achava-se fadada a padecer a mesma “invasão” que condenara outrora a “princesinha do mar”, Copacabana, o bairro mais famoso do Brasil, cuja desdita, do ponto de vista das elites, principiara com as conexões urbanas delineadas de forma inadvertida pela autoridade pública, interligando Olaria-Copacabana, Méier-Forte, Triagem-Leme.[10]

Copacabana
Praia de Copacabana, em 1971. Fonte: Wikipédia

Os banhistas do subúrbio que as linhas de ônibus desembarcavam nos pontos finais de Copacabana, de acordo com uma descolada jornalista da Montenegro, constituíam uma “fauna estranha”, dotada de uma atitude atrevida, pois, ignorando todos os sinais e avisos, projetava-se através da fronteira simbólica traçada entre a Zona Norte e a Zona Sul, não para cumprir o destino de servir aos brancos das classes médias e altas nos empregos braçais, e, sim, para lhes surpreender nos redutos de lazer nos quais cultivavam uma sociabilidade exclusiva.[11]

A reportagem do Jornal do Brasil, registrando a cena da perspectiva dos moradores da Zona Sul, explicitava o incômodo que a presença julgada invasiva dos banhistas fora de lugar suscitava nas elites locais. Indiferentes à etiqueta vigente nas áreas mais nobres da orla marítima, os suburbanos se instalavam nelas com uma extensa parentela, munidos de latas de refrigerantes e de pratos de alumínio, “saboreando” sem constrangimento “um almoço completo em plena areia”.[12] Todavia, eram poucos os que dispunham dos recursos necessários para empreender a profanação dos lugares frequentados pela “Geração Dourada”.  A maioria se resignava com as áreas de lazer previamente designada para os pobres, como, por exemplo, a praia de Ramos.

Mantendo-se a salvo da invasão suburbana, a praia da Montenegro se transfigurava no início dos anos setenta na plataforma privilegiada onde continuavam a “ser lançadas as modas” que agitavam a Zona Sul, a mais recente das quais: a dos seios nus.[13]  Agora, com efeito, de um extremo ao outro, viam-se “mocinhas” de 15 a 18 anos sem a peça de cima do biquíni, incorrendo, consoante o delegado Edgar Façanha, na “prática de ato obsceno”. Chefe da Divisão de Censura e Diversões Públicas da Secretaria da Segurança do Estado da Guanabara, ele advertia as “mocinhas” que a pena para esse “crime” variava de três meses a um ano de detenção.[14] Agindo com rigor e rapidez, a autoridade encarregada de zelar pela moralidade pública buscava conter a onda obscena, impedindo que ela arrastasse a juventude carioca para as águas da perdição. Para levar a cabo a repressão, o delegado Façanha dispunha, além do policiamento ostensivo nas praias, da presença vigilante do corpo de salva-vidas, incumbido também – ironizava o poeta Carlos Drummond de Andrade – da nobre tarefa de “salvar o pudor público”.[15]

A princípio, a investida repressiva liderada pelo delegado Façanha parecia ter causado o efeito desejado, observando-se o refluxo da maré do busto nu nas areias cariocas. Mas tratava-se de uma falsa impressão. Pouco dias após brandir a ameaça de levar para a prisão as mulheres apanhadas em flagrante na prática do ato obsceno, uma garota de Ipanema cometia a proeza de contestar a medida punitiva. Como se não houvesse AI-5, a jovem garota, então com 24 anos, ingressava na justiça com um pedido de habeas-corpus a fim de garantir o “direito” de tomar banho de mar sem a parte de cima do maiô, pois, conforme argumentava, “ninguém pode ser obrigado a vestir-se como desejavam as autoridades policiais”.[16] A proibição se lhe afigurava “absolutamente ridícula”. Habituada a frequentar as praias de Saint-Tropez ou de Cap Ferrat, ela não via nada de mais “normal” do que despojar-se da pudicícia com a qual a burguesia pretendia cobrir o corpo das esposas, mães e filhas.[17]

Fora dos estreitos limites da Zona Sul, porém, a realidade se afigurava bem diversa para as mulheres cariocas.  A decisão de vestir um simples biquíni as expunha a toda sorte de risco, inclusive o da agressão física perpetrada pelos próprios companheiros ou maridos, conforme atestavam os boletins de ocorrência registrados nas delegacias de Niterói no verão quente de 1969.[18]

Mesmo nas áreas mais avançadas da Zona Sul, diga-se de passagem, a liberalidade nos costumes enfrentava fortes resistências. Ainda que a linha de demarcação entre o masculino e o feminino estivesse ali sendo questionada de diversas formas, não se consentia a ninguém ignorar impunemente a lógica binária que estruturava o campo das relações sociais. De fato, a iniciativa de um jovem ousado de desfilar pelas ruas de Copacabana com uma “minissaia masculina”, no verão de 1968, constituíra um desafio intolerável à ordem heteronormativa. À semelhança da garota de Ipanema, ele apostava em um devir no qual cada um poderia exercer plena soberania sobre o corpo, escolhendo e definindo os trajetos e trejeitos que desejava seguir e adotar.[19]

As primeiras aparições públicas do rapaz de Copacabana atraíram “olhares indiscretos e sussurros”. Depois, no entanto, “as cosias pioraram”. Embora estivesse acompanhado da namorada, ele teve de enfrentar “assobios e piadas de toda espécie”. Vieram, então, as respostas às provocações, discussões acaloradas e um princípio de confusão com um “grupo de moços” na Rua Siqueira Campos. Já na Praça Serzedelo Correia, um grupo de garotos não se conteve: “Olha a mulherzinha. Olha a mulherzinha”. Como se não bastasse a reação do público, pouco depois dos incidentes, ele e um amigo, proprietário da loja em Ipanema responsável pelo lançamento da controvertida moda, acabaram presos por uma ronda policial sob a acusação de “atentado ao pudor e provocação de tumulto”.[20]  Estava encerrado, assim, o curto verão da minissaia masculina.           

A coação que se abatera sobre o busto nu da garota de Ipanema e a minissaia masculina do rapaz de Copacabana, não se dera apenas a partir da ação do aparato repressivo do Estado, mas fora acionada também pela polícia moral na qual se convertera um segmento atuante e influente da sociedade civil.[21] Nesse sentido, não resta dúvida, os dois gestos colocavam em questão os mecanismos regulatórios do comportamento social, acionados no quadro de uma cultura autoritária, sexista e heteronormativa. 

Os jovens ilhados da Geração AI-5, argumentava Luciano Martins, destruíam as pontes que poderiam levá-los a interagir de forma efetiva com a história, com o mundo e  com o outro. Embalados pelo culto das drogas, eles se recusavam a enfrentar a realidade que os envolvia e desafiava, vivendo em vez disso o mito da eterna juventude. [22]  Os dois episódios focalizados no presente artigo, no entanto, sugerem a necessidade de nuançar o retrato esboçado pelo autor sobre a Geração AI-5. Afinal de contas, as correntes da transgressão, ao menos no plano comportamental, também banhavam as soníferas ilhas.[23]


Notas

[1]. Martins, Luciano. A ´Geração AI-5` e Maio de 68: duas manifestações intransitivas. Rio de Janeiro, Argumento, 2004. O título do artigo toma de empréstimo a expressão cunhada pelo sociólogo. Sobre o sarcasmo do ministro da Justiça, Cf. “Gama e Silva não esquece a data”, Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 1968.

[2] Luciano Martins, op. cit., p.14

[3] Luciano Martins, op. cit., p.20

[4] Cf. “Cariocas aproveitam bem o sol afluindo às praias”, O Globo, 16 de dezembro de 1968.

[5] Cf. “De sol com os navios passando em Copa”, Correio da Manhã, 15 de dezembro de 1968.

[6] Cf. “Jipão velho é ´onda quente ‘no verão de quarenta graus”, O Globo, 8 de janeiro de 1969. Sobre a dupla de criminosos que assaltavam bancos nos Estados Unidos no contexto da Grande Depressão, ver o filme: “Bonnie & Clyde”, diretor, Arthur Penn, com Faye Dunaway e Warren Beatty,1967.

[7] Cf. “Minimoto alegra jovens, mas não deixa população dormir”, O Globo, 21 de janeiro de 1969.

[8] Cf. “Jipão velho é ´onda quente’ no verão de quarenta graus”, O Globo, 8 de janeiro de 1969.

[9] Cf. “Verão cheio de ondas”, Jornal do Brasil, 12 de setembro de 1972.

[10] Cf. “Verão cheio de ondas”, Jornal do Brasil, 12 de setembro de 1972.  

[11] Cunha, Olívia Maria Gomes da. Bonde do Mal: Notas sobre Território, Cor, Violência e Juventude numa Favela do Subúrbio Carioca. In: Maggie, Yvonne; Rezende, Claudia Barcellos (Org.). Raça como retórica: a construção da diferença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001 A praia da Montenegro era assim denominada por se localizar diante da Rua Montenegro, em Ipanema, tornando-se o concorrido ponto de encontro das elites sociais e culturais da cidade no final dos anos sessenta. Cf. “Montenegro, estamos aí”, Jornal do Brasil, 31 de janeiro de 1969.

[12] Cf. “Montenegro, estamos aí”, Jornal do Brasil, 31 de janeiro de 1969.

[13] Cf. “Verão cheio de ondas”, Jornal do Brasil, 12 de setembro de 1972.

[14] Cf. “Busto nu nas praias do Rio dará prisão”, Jornal do Brasil, 27 de setembro de 1972.

[15] Cf. “O busto proibido”, Carlos Drumond de Andrade, Caderno B, Jornal do Brasil, 5 de outubro de 1972.

[16] Cf. “Moça pede habeas-corpus por busto nu”, Jornal do Brasil, 21 de outubro de 1972.

[17] Cf. “Beatriz foge da fama e vai à praia em São Conrado”, Jornal do Brasil, 22 de outubro de 1972.

[18] Cf. “Maridos dão nas esposas de biquíni”, Jornal do Brasil, 7 de janeiro de 1969.

[19] Cf. “Um passo para a frente”, Jornal do Brasil, 13 de janeiro de 1968.

[20] Cf. “Lançador da minissaia no Rio abomina calças como símbolo de masculinidade”, Jornal do Brasil, 13 de janeiro de 1968.

[21] Como frisava o delegado Façanha em sua cruzada contra os seios nus: “Acredito que a maior barreira contra essa atitude seja o próprio pudor feminino. Esse recato é instintivo na mulher”. Cf. “Beatriz foge da fama e vai à praia em São Conrado”, Jornal do Brasil, 22 de outubro de 1972.

[22] Luciano Martins, op.cit.,pp.47-50.

[23] Referência à música “Sonífera Ilha”, da banda Titãs. Álbum “Titãs”, Gravadora WEA, 1984.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Jovens ilhados. Ludopédio, São Paulo, v. 174, n. 20, 2023.
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