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Lógica de guerra

José Paulo Florenzano 4 de maio de 2017

No início de 1973, A Tribuna, de Santos, lamentava a “deplorável impressão” causada na Vila Belmiro pelo “comportamento da chamada Torcida Jovem”, recriminando-a por ter recepcionado “com um coro de palavrões e muita hostilidade o grupo de adeptos da Portuguesa”.[1] Esta nova força em ascensão nas arquibancadas não se restringia, porém, apenas a uma determinada entidade, mas abrangia o conjunto das torcidas do alvinegro praiano. Em meados da década, com efeito, elas se achavam articuladas na Associação das Torcidas Organizadas do Santos (ATOS), presidida por Cosme Damião, movimento que reunia em 1978 cerca de vinte mil seguidores distribuídos por mais de quarenta agrupamentos. [2]

“Crescendo assustadoramente” – observava a revista Placar – essa “torcida jovem e operária” disputava agora com a do Corinthians “o privilégio de ser a maior do Estado, pelo menos em termos de presença nos estádios”.[3] De fato, entre a segunda metade da década de setenta e a primeira metade da década de oitenta, o clássico entre os dois alvinegros transformar-se-ia no encontro de mais alto risco na cidade de São Paulo. Um caso em particular serve-nos de ilustração para esta hipótese. Em um domingo à tarde de setembro de 1977, Oswaldo Filho, integrante dos Gaviões, havia desembarcado cedo no Morumbi para estender as faixas do grupo no anel superior do estádio. Cumprida a tarefa ele se pôs a perambular pelos corredores localizados atrás das arquibancadas, quando, de repente, viu-se surpreendido, cercado e “agredido por gente da Torcida Jovem do Santos”.[4] Não foi uma simples agressão. Uma facada lhe abriu uma “avenida nas costas”, no dizer de uma testemunha, obrigando-o a uma visita forçada ao Hospital das Clínicas. Todavia, depois de receber cerca de vinte pontos, ter o peito enfaixado e com a camisa rasgada, Oswaldo Filho, mesmo assim, não hesitou em retornar ao Morumbi a tempo de acompanhar o desenrolar do jogo, esclarecendo aos companheiros que o fitavam com um misto de admiração e perplexidade: “Ou vocês achavam que eu perderia um jogo do Corinthians por causa disso?”[5] Do outro lado da arquibancada, no entanto, o líder da Sangue Santista, Guilherme Quandt, não escondia sua opinião acerca da ocorrido: “Ele foi esfaqueado porque mereceu, provocou a nossa torcida”.[6]

O episódio, apesar do gesto de devoção que encerrava aos olhos dos militantes das arquibancadas, colocava na berlinda as torcidas organizadas de São Paulo. Pela primeira vez, com efeito, surgiam propostas para suspendê-las dos estádios. Nilton Ribeiro, presidente da Torcida Independente, declarava temer-lhes a “extinção” por iniciativa das autoridades públicas, cujos porta-vozes associavam-nas agora mais diretamente à prática de uma violência que excedia os níveis considerados toleráveis para as praças de esportes.[7] A questão, contudo, comportava um paradoxo. Senão, vejamos. Protagonistas dos atos de agressão que se difundiam e espraiavam pelos estádios de São Paulo, as organizadas, ao mesmo tempo, procuravam assumir a responsabilidade de contê-los em patamares aceitáveis mediante propostas apresentadas nas reuniões da Associação das Torcidas Uniformizadas, entidade em processo de formação presidida por Flávio La Selva, dirigente histórico dos Gaviões da Fiel. Uma das sugestões então apresentadas passava pela separação dos agrupamentos rivais nas arquibancadas. De fato, pouco depois dos acontecimentos relativos ao “torcedor esfaqueado” a medida acabaria encampada pelo então secretário estadual da Segurança Pública, coronel Erasmo Dias.[8] A partir daquela data elas deveriam ser “separadas por cordas e fiscalizadas por policiais fardados”.[9]

Dessa maneira, a lógica da ocupação territorial das arquibancadas ingressava em uma nova etapa, caracterizada pela radicalização do antagonismo entre as torcidas, processo que engolfava a própria corporação incumbida de manter a ordem no recinto esportivo, conforme nos permitem mostrar as palavras eloquentes de um torcedor praiano: “A gente está sempre apanhando da polícia. Então, quando surge uma oportunidade para a forra, a gente aproveita”.[10] A recíproca era verdadeira. Mesmo quando a ocasião não se oferecia, os agentes de segurança se encarregavam de instaurar a insegurança através de um “show especial” de “violência gratuita” que não poupava sequer os espectadores comuns, “vítimas indefesas” do aparato repressivo.[11] Convém, no entanto, contextualizar o problema. O recrudescimento da repressão nos estádios de futebol coincidia, de um lado, com o aumento da criminalidade nas ruas do centro, e, de outro lado, com a retomada do movimento estudantil nos campi das universidades. Os soldados atuavam nestas três frentes de batalha, tendo como alvo, respectivamente, o torcedor organizado, o jovem “trombadinha” e o estudante “comunista”. Aos olhos da polícia militar o primeiro se afigurava uma mescla dos dois últimos, em parte “bandido”, em parte “subversivo”, de qualquer modo, um “elemento” suspeito a quem se destinava o cassetete elétrico, novidade da corporação.

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Torcedor e sua tatuagem da Torcida Jovem do Santos. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Sendo assim, não devemos nos surpreender com o fato de a revista Placar recorrer, certa feita, ao termo “massacre” para retratar as agressões perpetradas por policiais militares contra “integrantes da Torcida Jovem”.[12] A questão por certo não se achava circunscrita às organizadas santistas. Avelino Gomes, dirigente dos Gaviões, evocava a existência do famigerado “corredor polonês” formado pelos agentes da ordem nas “escadarias internas do Morumbi”, pelo qual passaram gerações de torcedores organizados, deixando, ali, “manchas de sangue nas paredes e degraus”.[13]

A configuração social do estádio se constituía, dessa maneira, em um sistema multipolar de tensões e conflitos que se refletiam nas agressões mútuas envolvendo espectadores e atletas; nas brigas cada vez mais cruentas das torcidas rivais entre si; ou, ainda, nos confrontos destas últimas com a polícia militar, convertida ela própria em uma “organizada de farda”.[14] A imprensa esportiva, por sua vez, mediante o emprego de uma retórica belicosa, contribuía para propagar e cristalizar a percepção do estádio de futebol como teatro de operações de grupos inimigos em “guerra”.[15] Todos, portanto, de uma maneira ou de outra, concorriam para a escalada da violência, malgrado as iniciativas em contrário para mantê-la dentro de parâmetros aceitos como “normais”. As reuniões entre as lideranças das organizadas e o comando da polícia militar, por exemplo, eram realizadas desde o início da década. A imprensa esportiva abria amplo espaço para o debate acerca das causas do fenômeno, concedendo voz inclusive aos líderes das torcidas. Estas, de um lado, reconheciam interesses comuns e buscavam se articular em associações que as representassem perante os órgãos de decisão, mas, de outro lado, viam tais esforços refreados pelo aumento das rivalidades produzidas na rede de interpendência em que se achavam imersas na esfera do futebol.[16]

A prática torcedora inaugurada pelas organizadas ensejava tanto a criação do espaço público quanto a instauração do campo de batalha, desvelando uma trajetória cambiante que explorava o imenso leque de alternativas e combinações possíveis situadas entre o combate democrático e o confronto físico. À luz de um quadro histórico composto de vários matizes, que não se achava pincelado apenas pelos atos de violência, começavam a irromper, com efeito, as experiências dissidentes da República do Futebol.

[1] Cf. “Novo jogo antes da viagem”, A Tribuna, 26 de janeiro de 1973.

[2] Cf. “Torcida do Santos exige direito de participar”, O Estado de S. Paulo, 30 de abril de 1978.

[3] Cf. “Paixão violenta”, revista Placar, nº421, 19 de maio de 1978. Ainda sobre o crescimento da torcida praiana, a revista Manchete, nº 54, 24 de outubro de 1978, indagava em termos provocativos: “O Santos já é maior do que o Corinthians?”

[4] Cf. “Esfaqueado, Oswaldo foi torcer”, Jornal da Tarde, 6 de setembro de 1977.

[5] Cf. “O empate que quase teve um crime”, Jornal da Tarde, 5 de setembro de 1977.

[6] Cf. “As chuvas provocam uma breve trégua nesta guerra”, Jornal da Tarde, 8 de setembro de 1977.

[7] Cf. “Começou a discussão: como evitar o perigo das agressões nos jogos de futebol?” Jornal da Tarde, 6 de setembro de 1977.

[8] Cf. “Torcidas apontam caminho contra a violência”, O Estado de S. Paulo, 7 de setembro de 1977.

[9] Cf. “Erasmo Dias manda reforçar policiamento”, O Estado de S. Paulo, 16 de setembro de 1977. Isto não significa que a separação das torcidas tenha sido adotada de forma sistemática em todos os estádios de São Paulo logo após o anúncio da medida. Ao que tudo indica a implantação foi gradual.

[10] Cf. “Paixão violenta”, revista Placar, nº421, 19 de maio de 1978.

[11] Cf. “E entre o pouco público, a violência da polícia”, Jornal da Tarde, 24 de outubro de 1977.

[12] Cf. “Um caso de polícia”, revista Placar, nº 588, 21 de agosto de 1981.

[13] Cf. “Gaviões relacionam os motivos da revolta”, Folha de S. Paulo, 4 de dezembro de 1983.

[14] Palma, Mariana Galvani y Javier (2005) La Hinchada de uniforme. In: Hinchadas. Pablo Alabarces (org.) Buenos Aires, Prometeo Libros.

[15] Dunning, Eric; Murphy, Patrick; Williams, John (1988) The roots of football hooliganism: an historical and sociological study. London & New York, Routledge, p.152

[16] Elias, Norbert (1992) A busca da excitação. Lisboa, Difel. Ver também Mignon, Patrick (2014) A emergência de uma questão: a torcida na França (1985-1998). In: Hooliganismo e Copa de 2014. Bernardo Borges Buarque de Hollanda e Heloisa Helena Baldy dos Reis (orgs.) Rio de Janeiro, 7 Letras.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Lógica de guerra. Ludopédio, São Paulo, v. 95, n. 6, 2017.
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