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Mapeamento do futebol de várzea em São Paulo: apontamentos iniciais

Este texto integra a série especial Santa Marina, o circuito varzeano de SP e a preservação dos clubes esportivos populares, publicada na coluna Em defesa da várzea do portal Ludopédio. O principal objetivo é colocar em debate a urgência de garantir a reprodução e continuidade das práticas populares esportivas e culturais nas cidades brasileiras. Os textos, que serão publicados quinzenalmente ao longo de 2023 e 2024, apresentarão as atividades, etapas, metodologias, resultados e principais reflexões do “Mapeamento do Futebol Varzeano em São Paulo”, realizado em 2021, sob encomenda do Núcleo de Identificação e Tombamento (NIT) do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura do Município de São Paulo, a fim de reunir subsídios para identificar práticas culturais relacionadas ao futebol de várzea e para analisar processos administrativos de proteção do patrimônio cultural. Além disso, diante de um contexto marcado por reiteradas ameaças aos espaços urbanos onde se pratica o futebol popular, esta série busca colocar em discussão o caso do Santa Marina Atlético Clube (SMAC), clube amador centenário cujo espaço de atuação vem sendo ameaçado por um pedido de reintegração de posse pela multinacional Saint-Gobain.

Santa Marina
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Neste texto começaremos a apresentar as reflexões iniciais, a estrutura e, gradativamente, parte dos resultados da pesquisa que serviu de base para a elaboração do relatório Mapeamento do Futebol de Várzea em São Paulo. Tal relatório apresenta as atividades e análises realizadas para o referido projeto de mapeamento que buscou reunir subsídios para a identificação de práticas culturais na cidade de São Paulo relacionadas ao futebol de várzea.

De forma geral, o objetivo da pesquisa era identificar demandas e questões (atuais e futuras) associadas às práticas populares, esportivas e culturais do circuito varzeano paulistano, estendido à Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), delineando indicadores plausíveis para a proposição, planejamento e avaliação de processos administrativos de proteção do patrimônio cultural em tramitação no Núcleo de Identificação e Tombamento do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), que por sua vez intencionava, com a pesquisa, reunir aporte para o processo de proteção da sede-social do Santa Marina Atlético Clube (SMAC), elucidado na publicação anterior desta coluna.

Para isso, o estudo buscou, inicialmente, contemplar os eixos previstos e delineados no documento “Pesquisa de mercado – Mapeamento do futebol de várzea em São Paulo”, que foi formulado pelo Departamento de Patrimônio Histórico (DPH). Nesse documento, foi demandado que a pesquisa realizasse:

  1. Uma introdução às referências culturais, divididas em tipos/categorias e situadas historicamente, que componham as dinâmicas ligadas ao futebol de várzea em São Paulo (SP), ao exemplo de formas de fazer, objetos, ofícios, situações, temáticas abordadas ou quaisquer outras que auxiliem a compreensão dessa prática cultural;
  2. Mapeamento georreferenciado, em base editável, de agentes e locais relacionados ao futebol de várzea em São Paulo.
  3. Indicação de eventuais aspectos relevantes a serem aprofundados pelo campo do patrimônio cultural
  4. Indicação e catalogação dos materiais e fontes utilizados, incluindo as referências bibliográficas, gravações específicas e material audiovisual.
  5. Produção do relatório final (escrito, organizado e mapeado)

Com base nesse escopo inicial, e sem qualquer pretensão de realizar um mapeamento completo e final do circuito varzeano da cidade de São Paulo, a pesquisa foi concebida como um primeiro esforço de seleção de casos (o que foi denominado, posteriormente, como “pontos nodais”) e de interpretação que, inevitavelmente, deve estar aberta às inúmeras controvérsias desse campo. No entanto, com a finalização da pesquisa, foi possível dimensionar que tais escolhas foram capazes de traduzir o fenômeno pesquisado, contemplando suas permanências e efemeridades.

Santa Marina
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Elaboração da pesquisa

Nessa chave, após debates e possibilidades aventadas no planejamento inicial, a pesquisa foi organizada em duas dimensões: a) por um lado, era preciso delimitar categorias que pudessem dar conta de dimensionar a grandiosidade do circuito varzeano de São Paulo (SP) e RMSP e apontar processos mais relevantes para a produção dos mapas temáticos georreferenciados; b) simultânea e dialeticamente, era preciso manter o enfoque no SMAC, tanto no sentido de compreender sua inserção neste circuito, quanto nos arranjos internos e cotidianos do clube, a partir de um olhar etnográfico, donde poderiam ser revelados aspectos significativos relativos às sociabilidades que o envolvem.

Para o procedimento de mapeamento, sabíamos que a localização de todos os times e clubes populares seria inexequível, embora alguns esforços nesse sentido tenham sido empreendidos em trabalhos precedentes da área1. Apostamos, então, na definição de um conjunto de processos que, na várzea contemporânea da RMSP, podem ser considerados potentes: campeonatos e copas de grande abrangência (aquelas que articulam diversas regiões da metrópole); eventos e festivais; espaços de uso público mobilizados pela várzea em consonância com a administração pública municipal (Clubes da Comunidade, Clubes Esportivos, Centros Educacionais Unificados); atuação específica do SMAC; práticas culturais, projetos e formações realizados pelos clubes, entre outras dinâmicas.2

A partir desse conjunto, delimitamos pontos nodais, perpassando as quatro regiões da capital, que foram então compreendidos como representativos dos processos que transcorrem na várzea contemporânea e como arranjos aglutinadores e potentes do circuito varzeano. Na próxima publicação desta coluna, iremos esmiuçar em detalhe tais pontos, suas localizações, bem como o modo como chegamos à definição dos mesmos.

Por ora, destacamos que, com base nos pontos nodais, estabelecemos três eixos temáticos para o desenvolvimento da pesquisa, sendo eles: a) campos; b) acervos e coleções varzeanas e; c) eventos, projetos e práticas culturais. Tais eixos foram o fio condutor de toda a pesquisa, sendo referências para todo o levantamento de dados primários e secundários, bem como para para a elaboração dos 22 mapas temáticos georreferenciados que foram entregues, sendo estes, elucidativos da várzea da RMSP, em consonância com o modo como o SMAC dela participa.

A dinâmica de levantamento de dados realizada pela equipe manteve contato direto com varzeanos e varzeanas vinculados aos clubes/times representativos dos pontos nodais. Em linhas gerais, foram documentos e informações compartilhadas pelos/as varzeanos/as (datas, localizações, listas de clubes e eventos, fotografias, etc.), majoritariamente de modo remoto, a partir de convite para participação da pesquisa, que foi submetido pela equipe num primeiro momento, com a formalização do DPH.

Esse conjunto de levantamentos foi articulado, também, a um conjunto de pesquisas em páginas de times/clubes varzeanos nas redes sociais e, assim, permitiu encadear os eixos temáticos, elucidando-os com base em situações e dinâmicas contemporâneas de diversas regiões da RMSP.

Em termos de aprofundamento, o enfoque foi dado ao SMAC. Nesse ponto nodal, devido às demandas colocadas pela Ação Civil instaurada pelo MPSP (conforme citado no texto anterior desta coluna), optamos pela realização de uma pesquisa etnográfica. Foram 10 (dez) dias de trabalho de campo na sede social do SMAC, amparadas por aporte teórico-metodológico da Antropologia Urbana, a partir das quais tecemos uma interpretação sobre as memórias, os futebóis e as sociabilidades do clube, com vistas à elucidação dos bens culturais que o legitimam, historicamente, como clube social popular.

Na finalização desse estudo, demarcarmos não apenas o potente conjunto das referências culturais deste clube, mas sobretudo como elas reverberam e se inserem no circuito varzeano da RMSP, em sentido amplo, histórica e espacialmente. Nessa chave, apresentamos o entendimento de que os clubes sociais (ou clubes de bairro), de ampla ascensão entre as décadas de 1940 – 1980 em São Paulo (SP), não exclusivamente esportivos, porém fortemente imbricados ao esporte (sobretudo ao futebol varzeano), permitem sugerir a adoção de uma base de referência para normativas de proteção ao patrimônio. Sendo espaços onde, desde meados do século passado, foi possível construir formas de identidade, pertencimento, solidariedade, comprometimento político, além de práticas esportivas ou culturais, tais agremiações ou associações apresentam identidades próprias e plurais de caráter comunitário, sendo células residuais de organização autorregulada da sociedade civil em cidades grandes e regiões metropolitanas, como São Paulo (SP).

Assim, pensando nas categorias que fundamentam as normativas de proteção ao patrimônio material (tombamentos) e imaterial (registros), tais clubes podem ser compreendidos como lugares, cujas estruturas materiais são suporte onde se desdobram múltiplas formas de expressão, saberes e celebrações, além de proporcionarem um conjunto de objetos representativos do vínculo simbólico entre grupos sociais e clubes.

Santa Marina
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Estrutura do relatório e da coluna

Nesta coluna pretendemos, então, esmiuçar todas as etapas dessa pesquisa. A série terá 23 textos quinzenais, que serão publicados entre outubro de 2023 e setembro de 2024. Destacamos que a proposta não é reproduzir o relatório na íntegra. Suas seções e tópicos serão reformulados, com o objetivo de sintetizar algumas passagens e assim favorecer a apreensão do/a leitor/a. Mesmo apresentando o relatório reformulado, a organização desta coluna seguirá a estrutura básica do relatório, composta por cinco seções principais:3

  1. Procedimentos metodológicos
  2. Pontos nodais (contextos varzeanos selecionados como principais referências)
  3. Eixos temáticos de análise (Campos; Acervos e coleções varzeanas; Eventos, projetos e práticas culturais)
  4. Pesquisa etnográfica no Santa Marina Atlético Clube (SMAC)
  5. Considerações gerais e conclusivas

Nesse sentido, o próximo texto, terceiro da série, abordará a construção da metodologia de pesquisa.

Notas

1 Além das cinco seções principais, o relatório apresenta uma introdução, referências bibliográficas, fontes cartográficas e audiovisuais e anexos.

2 Nos anos 1990, como parte do Estudo de Tombamento do Parque do Povo (São Paulo, 1994), pelo CONDEPHAAT, foi realizada a pesquisa “Geografia do Futebol de Várzea de São Paulo”, em que um esforço de mapeamento foi apresentado, com base em cartografias históricas. Santos (2021) apresenta um mapeamento comparativo de campos varzeanos entre 2004 e 2018, porém com recorte na região noroeste da capital. Também se destaca o Portal Torcedores.com, na seção Agenda da Várzea, que nos anos 2010 tinha uma seção para mapeamento coletivo dos times, a partir do aplicativo Google.

3 Importante destacar que optamos por trabalhar, principalmente para os mapeamentos georreferenciados, com dados relativos ao ano de 2019, período anterior à interrupção das práticas cotidianas e alterações na organização das atividades dos clubes sociais e agremiações varzeanas a partir de março de 2020, período mais rígido da quarentena que marcou o contexto da pandemia de COVID-19 em São Paulo e no Brasil. Contudo, algumas situações e dinâmicas puderam ser atualizadas com dados coletados a partir dos contatos travados com interlocutores ao longo de novembro e dezembro de 2021.

Referências

SANTOS, A. L. O samba como patrimônio cultural em São Paulo (SP): As batucadas de beira de campo e o futebol de várzea. Tese (Doutorado em Geografia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.

SÃO PAULO. Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico. Processo no. 26.513/1988. Estudo de tombamento do Parque do Povo. 1994.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP.Fundador e editor do Ludopédio.

Aira F. Bonfim

Mestre em História pela FGV com pesquisas dedicadas à história social do futebol praticado pelas brasileiras da introdução à proibição (1915-1941). É produtora, artista-educadora e por 7 anos esteve como técnica pesquisadora do Museu do Futebol. O futebol de várzea, os  debate sobre patrimônios e mais recentemente o boxe e o circo, são alguns temas em constante flerte... 

Alberto Luiz dos Santos

Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP). Membro da Rede Paulista de Educação Patrimonial (REPEP) e do Grupo de Pesquisa Patrimônio, Espaço e Memória, vinculado ao Labur/FFLCH/USP (CNPq). Possui produção acadêmica voltada às área de Geografia Urbana e Patrimônio Cultural, desde 2012, com enfoque nas referências culturais vinculadas ao futebol de várzea, após 2016. 

Como citar

SPAGGIARI, Enrico; BONFIM, Aira F.; SANTOS, Alberto Luiz dos. Mapeamento do futebol de várzea em São Paulo: apontamentos iniciais. Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 27, 2023.
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