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Março de 1918, o racismo no futebol paulistano e sua imprensa

Yohann Lossouarn 28 de agosto de 2023

Desde a abolição – tão tarde, em 1888 – o racismo (e a quase segregação) não se escreve preto no branco no Brasil, mas concorda com a conservação das desigualdades. E a Nova República contribui especialmente para isso desde 1889. São Paulo se deseja, e se inscreve além do mais na vanguarda dessa modernidade econômica e política – e cultural assim. Para isso, a cidade precisa aparecer como uma força motriz no domínio do futebol. Aqui ela constrói parte da sua oposição com o poder do Rio de Janeiro. E, como a imagem da ambiguidade da cidade com o racismo, a liga principal (então  Associação Paulista de Sports Athleticos ou apenas APSA) se inscreve também num racismo das coisas não ditas. É isso que conduz a polêmica de que vamos falar e que faz todo o seu interesse.

O que acontece em março de 1918?

Há três vagas no campeonato da segunda divisão da APSA que deve começar no final de abril (e não existe uma terceira divisão). A liga então organiza um pequeno torneio para decidir quais equipes vão fazer a segunda divisão.

O futebol paulistano difundiu-se desde a primeira década do século XX e se instituiu rapidamente. Então, os protagonistas são numerosos na competição em 1918, apesar das exigências rigorosas da APSA. Essas exigências (incluindo possuir um campo) me parecem ser uma primeira astúcia para descartar os clubes varzeanos: os mais pobres e assim os mais pretos. Aqueles que não podem usar da ajuda de solidariedade nacional de uma burguesia, assim como os imigrantes italianos ou mesmo sírios. O primeiro turno do torneio é de seis jogos, dos quais os perdedores são quase desqualificados. Isso joga-se no 17 de março no Parque Antártica, seis times vencem.

O Parque Antarctica em 1910
O Parque Antarctica em 1910. Fonte: Wikipédia / Guilherme Gaensly / Acervo do Museu Paulista da USP

A carta racista

Mas, no 21 de março, na seção futebol do vespertino A Gazeta, é publicada a carta de um leitor “frequentador da segunda divisão”. Ele aponta sua “surpresa” de ter visto “jogadores de cor” em alguns times (e “não menos de sete em um!”). Ele diz, em essência, não ser contra que eles joguem “no absoluto”, mas que os pretos são proibidos nos campeonatos da APSA de acordo com o regulamento da agremiação. “É a razão que não há jogadores de cor na primeira divisão, né?”, ele escreve.

Depois, ele acusa diretamente um clube de não seguir essa regra, o Argentino F. C.. É um clube tradicional da várzea desde 1910, que tenta pela primeira vez o acesso à elite. Isso vai ajudar outros leitores a identificar ele como torcedor (ou mesmo diretor) do Heróe F. C., o clube que justamente perdeu para o Argentino. Podemos ler isso nos dias depois, quando leitores chocados vão enviar cartas à redação do A Gazeta para responder ao racista. Assim o debate começa e o A Gazeta gosta disso: vai completar a página de futebol nos dias de pouca atualidade, jogando com a polêmica…

As respostas

Mas essa situação é especialmente uma ocasião para nós, historiadores, de aprender mais sobre o estado do racismo na metrópole de São Paulo nessa época. Raramente podemos sondar a opinião do “quase” homem comum (e uma mulher!), mas temos aqui as cartas dos leitores de um dos jornais menos elitista e um dos mais populares de São Paulo na época. Estamos na obrigação de pensar que não é o mais “comum” dos leitores do jornal que irá escrever para publicação, mas outros leitores vão ler a carta e isso é importante também para saber sobre a opinião da cidade. Esses leitores silenciosos podem, assim, abrir e prolongar o debate na suas vidas (no trabalho, nos clubes…).

Podemos notar que, desde o primeiro dia em que o jornal publica cartas de resposta, a redação menciona que essas são só algumas que eles escolhem. É por eloquência? A opinião? Certamente em parte. A Gazeta confessa a sua aprovação das duas primeiras respostas escritas “para dizer que o nosso sport não deve haver preconceito de côr”, mas o mais importante é o desejo de fazer viver o debate.

A primeira é assinada por um “constante leitor” e destaca que um preto brasileiro é tão brasileiro quanto um outro na frente da constituição. Essa é a opinião que vamos ler na maioria das cartas do debate onde o “antirracismo” rima com nacionalismo. O mais “lírico” deles escreve mesmo que “a nossa nacionalidade si algum sentimento por ella, até hoje, pode ter, é o de gratidão e de orgulho: gratidão pelo que muito lhe deve e orgulho pelos brasileiros negros que ella lhe tem dado. Em todas as páginas da nossa história […] astros descendentes da raça negra”.

Outros vão apontar o caso do futebol platino (um pouco idealizado) em que sabem da presença de um jogador preto nos maiores jogos: Isabelino Gradín.

Isabelino Gradín foi um futebolista e velocista uruguaio. Negro
O jogador uruguaio Isabelino Gradín. Fonte: Wikipédia

Um homem chave do futebol paulistano

Um dos participantes da primeira onda de contestação da carta inicial traz uma informação crucial para o debate. O escritor é Luiz Pannain, antigo jogador dos maiores times de SP e agora redator da seção futebol de um importante periódico (Fanfulla) e sócio emérito de três (!) clubes da primeira divisão.

Assim ele traz a sua expertise: ele sabe que nada nas regras da APSA é diretamente sobre a cor da pele, mas ele entende a qual artigo o racista fez referência. Esse artigo diz que não vão ser admitidos: “jogadores profissionais ou jogadores que não tenham boa educação ou profissão honesta”. De fato, é em tal artigo que se esconde toda a ambiguidade da cidade com o racismo do qual eu falo no início. Porque tudo é questão de interpretação e o debate então vai se concentrar nisso, o que nos permite ver que o seus discursos de “antirracismo” são bem fracos. O impensado racista sempre traz suas argumentações para a dignidade dos jogadores pretos, exemplo: “preto de côr mas branco nas ações”.

O racismo de São Paulo… no seu futebol

E tal reflexão vai abrir uma porta para os que desejam a exclusão. Eles se sentem legitimados a perguntar provas de que os jogadores pretos são integrados a elite cultural da cidade, nos mais seletos clubes recreativos e artísticos… “se há igualdade de cor…” escreve um deles.

Num outro registro, alguns vão fazer dos jogadores pretos – antecipadamente – a razão das desordens que as suas presenças poderiam causar nos jogos de campeonato. [Desordens nos grandes jogos são a atualidade desses dias de 1918]. E um leitor fez isso de uma maneira particularmente perniciosa.

Ele permite-se fazer uma lista de insultos racistas que o público poderia usar contra eles nos jogos, notadamente “macaco”. E ele adiciona um pouco de “racismo social” dizendo que isso seria causado não por homens tal ele, mas por torcedores “sem educação”.

Mas ainda há torcedores piores (segundo ele): os pretos. Ele julga que os jogos dos jogadores pretos “naturalmente” vão atrair torcedores pretos que vão “naturalmente” ser ofendidos por insultos, e assim tornar-se violentos, e a polícia será necessária…

O “problema” dos torcedores

Assim se abre outro debate sobre as desordens no público que seriam ainda aumentadas com mais torcedores pretos. Alguns seguem ele e perguntam sobre a presença das senhoras, que então não vão mais chegar e participar do brilhante dessas festas. Aqui denotamos o medo que os jogos da elite tornem-se como os varzeanos (que parte dos autores aqui desprezam), com torcedores pretos que entraram no campo armados quando a equipe que eles torcem está perdendo.

Mas outros vão responder que o mesmo acontece com brancos.

Depois dessa parte do debate, chega uma nova onda de nacionalismo antirracista nas cartas. Um deles afirma que um “sport sem distinção de raça é o progresso dos povos e alguém que recusa isso é um inimigo do Brasil”. Um outro, que censura a lista de insultos, propõe uma grande poesia a fim de exaltar o Brasil, os Afro-Brasileiros e notadamente que “a única raça que conhecemos aqui é a raça brasileira!”.

Uma das últimas cartas desejaria ser uma conclusão e procura um consenso. É a de uma mulher que assina como “humilde torcedora do Paulistano”. Ela disse, em substância, que se os brancos da elite são tão refratários a jogar com pretos é porque eles têm medo de perder e assim de não serem os gloriosos laureados. Mas antes disso ela pergunta provas de que os pretos baniram as suas práticas as mais indignas. Eles mostram assim que são “capazes de competir moral e socialmente com os altivos veteranos da Paulicéa… E basta”.

Mazzoni
Thomaz Mazzoni. Foto: Divulgação

32 anos depois

Thomaz Mazzoni também leu esses debates nos arquivos durante a escrita do seu clássico “História do futebol no Brasil: 1895-1950”. Para ele, o assunto fez referência à atualidade onde essa questão dos “jogadores de côr” continua. Então, ele aproxima a situação de 1918 com o modo como se trata do presente dele, jornalista. E isso é de valor para nós, em 2023, porque informou da perpetuação da questão nos mesmos termos, desde – no mínimo – 1950.

“Olimpicus” (o seu pseudônimo de jornalista) assim fez sua pesquisa nos estatutos da APSA da época e concluiu, como Luiz Pannain, que não há nada explícito sobre tal exclusão. No entanto, ele parece ter encontrado vestígios de outro caso semelhante onde “um clube paulista muito cotado” havia pedido a exclusão de um jogador “de côr” de um time rival. Infelizmente, Mazzoni não indica com precisão se esse caso ocorreu naquele ano. O que está claro é que ele condena tal procedimento e argumenta – como alguns missivistas, 32 anos antes – que “os homens de côr, pela legislação brasileira, tem tantos direitos como os brancos”.

Como historiadores, podemos lamentar não ler algo de uma pessoa que afirma ser afro-brasileira (seria uma escolha do jornal, ou do estado de alfabetização dos afro-paulistas?…). Mas esse caso é uma prova que o estudo do futebol e da sua imprensa pode permitir entrar nos problemas históricos da sociedade paulistana.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Yohann Lossouarn

Doutourando na universidade Paris Cité (França).

Como citar

LOSSOUARN, Yohann. Março de 1918, o racismo no futebol paulistano e sua imprensa. Ludopédio, São Paulo, v. 170, n. 28, 2023.
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