105.7

Meio século de amizade em preto e branco

Plínio Labriola Negreiros 7 de março de 2018

De certa forma, retomo a discussão presente no artigo Os tempos do futebol, no qual apresentei como, nas minhas condições históricas, em minha primeira década de vida, eu acompanhava o futebol profissional. Hora em dos estádios da cidade – do Pacaembu, do Parque São Jorge, do Morumbi, do Canindé, do Parque Antártica -, hora pelo rádio e televisão.

No dia 1º. de setembro de 2010, uma quarta-feira, alguns atos comemorativos do centenário do Sport Club Corinthians Paulista. Efetivamente, muita festa dos corinthianos pela cidade de São Paulo, local da fundação do clube. Entre as principais celebrações, uma se realizou no marco de fundação, revitalizado para a ocasião, localizado no bairro do Bom Retiro, na esquina das ruas Cônego Martins e José Paulino, no bairro do Bom Retiro. As mãos de Joaquim Ambrósio, Antonio Pereira, Rafael Perrone, Anselmo Correia e Carlos Silva faziam nascer mais um clube esportivo na capital paulista.

Nesse dia, uma grande multidão se reuniu para a comemoração. Em especial, os Gaviões da Fiel, torcida com sede também no Bom Retiro. Assim, ao final da tarde, reuniram-se em sua quadra e se dirigiam para o local da celebração.

Já no início da noite, falo com meu irmão – corinthiano – pelo telefone e combinamos uma passada pelo marco de fundação. Queríamos fazer parte da festa. Imediatamente, lembramos que de fazer o convite para outro corinthiano, este morador do Bom Retiro, o amigo Paulo e Paulinho desde sempre. Com o marco de fundação completamente vazio – os torcedores haviam se dirigido para o vale do Anhangabaú para continuar a festa – nós três, diante do marco, brindamos (água e/ou cerveja?) o centenário do clube que acompanhamos há muito tempo. Em meio ao brinde, talvez com essas palavras, o Paulinho me diz: “O Corinthians nos fez amigos até hoje”.

Essa amizade, amalgamada pelo amor ao Corinthians Paulista, começou há exatos 50 anos. Em uma tarde de sexta-feira, 1º de março de 1968, nos encontramos no Instituto Dom Bosco, uma escola de religiosos salesianos, no Bom Retiro. Ingressamos na Pré-Escola. Tínhamos 6 anos. Daquele dia, tenho duas lembranças: chegar à escola levado pela minha mãe e ver um menino chorando muito, agarrado, literalmente, na saia da sua mãe, pois não queria ficar na escola. Interessante que esse menino foi nosso colega por apenas um dia. No dia seguinte de aula, ele não estava mais lá. Quase sem exceção, todos os outros ficaram por todo o antigo Primário, que durava até o 4º Ano. Em 1971, houve uma reforma na Educação e foram criados os 1º e 2º. Graus. Dessa forma, fiz parte da primeira turma que não recebeu o diploma de Primário. Ao invés de ingressar na 1ª Série Ginasial, ingressei, com meus colegas, na 5ª. Série do 1º. Grau. Revelo que fiquei triste pela ausência do diploma. Por outro lado, um alívio: a minha geração não precisou fazer o assustador Exame de Admissão, funil que excluía parte das crianças da escola e as empurrava, precocemente, para o mundo do trabalho.

Essa imagem, de 1969, mostra a minha sala de 1º Ano. O Paulinho é o da primeira fileira, o segundo da esquerda para a direita. Eu estou escondido na fileira de trás. A nossa professora era a dona Virgínia.
Essa imagem, de 1969, mostra a minha sala de 1º Ano. O Paulinho é o da primeira fileira, o segundo da esquerda para a direita. Eu estou escondido na fileira de trás. A nossa professora era a dona Virgínia.

No Pré-Primário, fomos alfabetizados pela nossa professora, a dona Maria Helena. Desde esse momento, o Paulinho se mostrava um aluno muito dedicado. Era muito cuidadoso em todas as atividades escolares. Um cuidado me chamava a atenção: usava uma chapa de raio X (isto porque seu pai, também Paulo, trabalhava como técnico de raio X em um hospital da Prefeitura) cortada na medida do caderno para não marcar a folha seguinte. Além disso, ele tinha uma caligrafia muito bonita, o que nunca aconteceu comigo. E nós gostávamos da nossa professora muito dela. Pena que, no ano seguinte, foi morar em Ilha Solteira para acompanhar o marido, atuante na construção da usina hidrelétrica no rio Tietê. Muitos anos depois, fiquei feliz em conhecer uma pessoa de Ilha Soleira que havia sido aluna da dona Maria Helena no interior paulista.

A escola era um espaço prazeroso. Lembro que dormíamos depois do recreio, acho que por meia hora. Depois, copiávamos a lição de casa. E no recreio, algo chamava muito a minha atenção: a maior parte do terreno da escola era de campos de futebol, que mais tarde apelidou-se de terrão. Era um campo central e dois campos laterais. Todos no mesmo terreno. Os campos laterais tinham traves menores, para o jogo das crianças menores. Evidentemente que aquilo nos fascinou. Não tenho certeza se já gostava e jogada futebol. Sei que era muito bom jogar futebol naqueles campos. O Paulinho também gostava de jogar e, para a minha alegria, ainda descobri que era corinthiano, mas por influência materna.

Fora do horário escolar, havia o Oratório Festivo, para alunos ou não da escola. A ideia básica dos padres era reunir crianças e jovens, atraídos pelo futebol ou outra atividade lúdica, caso do pebolim ou do ping-pong, objetivando a formação religiosa. Obviamente, íamos para jogar futebol. E desde sempre, o Paulinho e eu, queríamos jogar no mesmo time e descobrimos como isso era possível. O padre Martini, responsável pelas atividades esportivas, pedia para que todos que fossem jogar futebol, ficassem em uma única fila. Assim, ele montava os dois times, que podia ter quase 20 jogadores de cada lado, alternando a escolha segundo a ordem da fila. Dessa forma, com um excelente uso da lógica, percebemos que se ficássemos separados por uma outra criança, jogaríamos no mesmo time. O prazer se completava com o uso de camisa de futebol, muitas vezes de muitas cores diferentes, e com o uso de bola de couro, que chamávamos de capotão. Fora da escola, nossas bolas, objeto relativamente raro, eram de plástico. Algumas muito boas, como as bolas Pelé e Rivelino; esta, obviamente tinha gomos preto e branco. A outra era marrom.

Nessas partidas, por um bom tempo, a tática utilizada era simples: todos corriam em direção à bola. De qualquer forma, nós – o Paulinho e eu -, sabíamos jogar futebol. Fosse na escola ou entre os amigos de rua, erámos reconhecidos como bons jogadores. Vale ressaltar que o futebol do Paulinho era mais refinado, pois desenvolveu a capacidade de tocar bem na bola e de se colocar em campo. Ele era, segundo as referências do fim dos anos 1960 e início da década seguinte, um meia-direita, sempre jogando mais à frente; um camisa 8. Chutava e passava bem. Eu gostava de fazer gols. Ganhei noção de como um lance poderia se desenrolar. Era um goleador oportunista. E como gostava muito do Rivellino, sempre quis muito saber jogar também com a perna esquerda. Treinei muito isso e até ganhei uma certa habilidade nesse quesito.

Assim, estudando no curso Primário do Instituto Dom Bosco e frequentando o Oratório Festivo, chegamos até 1972. (Passamos por outras professoras: dona Virgínia, dona Maria Aparecida e dona Deusdete, esta sempre muito bem-humorada; pena que tenha morrido tão cedo.). Sempre jogando futebol. No ano seguinte, veio a 5ª Série e novidades na direção da escola, que reorganizou o Oratório Festivo. Entre as novidades, para jogar futebol aos domingos precisava assistir à missa. Era o que fazíamos. Mas isso não durou muito tempo e eu deixei de frequentar aquele espaço. O Paulinho ficou mais algum tempo. Portanto, restou jogar nos campeonatos do colégio. Nessa época, não tínhamos mais como jogar no mesmo time e talvez, entre 1973 e 1976, sempre estivermos em times diferentes. Mas sempre apaixonados pelo futebol e pelo Corinthians. Em sala de aula, deixei de ser um bom aluno. Gostava apenas de Matemática. O Paulinho continuo sendo um excelente aluno. Eu passei por quase reprovações e ele sempre passava sem recuperações, então chamadas de Segunda Época.

Imagem da minha sala de 4º Ano, em 1972. Na primeira fileira, do lado contrário da parede, o Paulinho. E estou sentado na terceira fileira, o segundo da esquerda para a direita. Em pé, a nossa querida professora Deusdete Mantovani.
Imagem da minha sala de 4º Ano, em 1972. Na primeira fileira, do lado contrário da parede, o Paulinho. E estou sentado na terceira fileira, o segundo da esquerda para a direita. Em pé, a nossa querida professora Deusdete Mantovani.

Em 1975, em meio alguma tristeza pela derrota corinthiana na final do campeonato paulista do ano anterior, resolvemos montar um time de futebol de salão, o Cruzeiro. A camisa era a preta listrada de branco do Corinthians, o distintivo, bordado, era do Botafogo do Rio. Essa mistura intencionava receber outros jogadores que não fossem corinthianos. Erámos 5 ou 6 jogadores. Como o Paulinho me lembrou há pouco tempo, a estreia do Cruzeiro foi contra meninos na nossa idade do Colégio Renascença, instituição judaica do Bom Retiro. Em um final de tarde, fomos ao campo adversário e perdemos por um placar elástico: 10 a 1! Na lembrança do meu amigo, um certo consolo para mim: eu fiz o gol de honra. Deste dia, uma lembrança especial. O porteiro do Renascença avaliava com um dos alunos da escola uma recente contratação do Corinthians, que havia meses antes vendido seu mais importante atleta, Rivellino, para o Fluminense. Para o trabalhador da escola, a contratação do meia-atacante Basílio seria um fiasco. Pouco mais de 2 anos depois, esse jogador fez o gol do título de 1977.

Ainda no primeiro semestre de 1975, ordens médicas me proibiram de atividades físicas por um semestre. O Cruzeiro foi adiante, sem a minha presença.

Sempre muito corinthianos, o Paulinho e eu, tínhamos o prazer de ver o time ao vivo quando meu pai se disponha a nos levar ao estádio. Não foram muitas vezes. Aliás, que eu me lembre, meu pai era um dos poucos, senão o único, que ia a jogos de futebol.

Em 1976, ano da Invasão Corinthiana, nos formamos no 1º Grau. Seguimos caminhos diferentes. Ele ingressou no concorrido Liceu de Artes e Ofícios, na Luz, para cursar o técnico em edificações e eu entrei em uma tradicional escola pública no bairro de Santana, o Cedom, para cursar o 2º grau na área de Exatas. Enquanto ele se profissionalizou na área de formação, eu precisei da formação em História para me tornar professor.

Mesmo sem muita proximidade, continuamos amigos e sempre com notícias trocadas. A aproximação voltou, é claro, por causa do futebol e do Corinthians. Como ex-alunos do Dom Bosco, voltamos à escola para jogar futebol. Até o final dos anos 1980, o nosso terrão ainda estava lá. Jogamos algumas vezes. Mas, efetivamente, passamos a jogar futebol de salão. E foi com muita tristeza que soubemos do fim do terrão: foi todo cimentado e virou um imenso estacionamento. O nosso campo, de tantas histórias, agora está na memória e em algumas fotografias. (Esse registro é importante: o Paulinho e seu irmão, encontraram algumas caixas com mais de 2 mil fotografias do Dom Bosco. Com a permissão do diretor da escola, com um pequeno scanner, digitalizaram e classificaram todas essas imagens.)

Paulinho, de camisa preta, e eu, de boné do Corinthians, em uma partida no Pacaembu. Não sei precisar o tempo, mas foi no século 21.
Paulinho, de camisa preta, e eu, de boné do Corinthians, em uma partida no Pacaembu. Não sei precisar o tempo, mas foi no século 21.

Não é incomum irmos ver o Timão jogar. Não é incomum trocarmos informações ou presentes relativos ao Corinthians. São livros, artigos, camisas, entre tantas referências ao que nos permitiu estar próximos nesse meio século. Assim, há uma fusão de tempos: hoje, o comentário sobre uma recente vitória contra o nosso principal rival mistura-se com o primeiro dia de setembro de 2010, no qual celebramos o centenário da nossa paixão e se amarra ao 1º de março de 1968, quando nos encontramos pela primeira vez. De fato, a vida e o Corinthians, nos fez amigos desde sempre.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Plinio Labriola Negreiros

Professor de HistóriaEstudo a História do Corinthians Paulista e do Futebol

Como citar

NEGREIROS, Plínio Labriola. Meio século de amizade em preto e branco. Ludopédio, São Paulo, v. 105, n. 7, 2018.
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