100.17

Meu amigo argentino

Leandro Marçal 17 de outubro de 2017
Capa do jornal Página 12 no dia seguinte à atuação épica de La Pulga.
Capa do jornal Página 12 no dia seguinte à atuação épica de La Pulga.

Nem o mais insensível dos seres humanos seria capaz de ficar indiferente ao drama argentino nas Eliminatórias. Mesmo quem não abre a janela para ver o mundo lá fora estava ansioso para saber o destino de Messi y sus amigos. Até mesmo a senhorinha carola voltou correndo da missa de Santo Antônio, queria ver se a orações portenhas seriam atendidas.

Mi hermano Leonardo sequer foi trabalhar. Temos uma amizade de mais de vinte anos e vi o bullying que ele sofreu na escola por torcer pela seleção albiceleste, enquanto todos nós pintávamos as ruas de verde e amarelo a cada quatro anos. Sua família se estabeleceu por aqui há muito tempo, mas ele é o único a penar religiosamente por nunca ter visto um título de sua seleção, na seca desde 1993.

Ele se irritava profundamente quando escrevíamos Léozito na lousa velha da classe, de forma pejorativa.

No hay zeta antes de la “e” y de la “i”. Me llamen Leocito, ¡por favor! – repetia, enquanto a sala inteira ria. Nos momentos de raiva, era impossível vê-lo falando em português. Era cabrón pra cá, maricón pra lá e uma veia dilatada sobre a testa vermelha em meio a gritos insanos.

Por razões óbvias, hoje ele ama ser chamado apenas de Léo. A correria da vida adulta nos faz ter pouco contato. Mas resolvi ligar antes de começar o jogo.

– Olha Leandro, acho melhor você ligar mais tarde, depois do jogo. E só se a Argentina ganhar. Ele está trancado no quarto e não quer falar com ninguém – disse a voz preocupada do outro lado da linha.

Todos sabem que ele vira Hulk em frente à TV na hora do futebol. Calmo e generoso, diz nem ligar muito para futebol e odiar fanáticos ensandecidos por 22 caras correndo atrás de uma bola. Isso até o momento em que as coisas começam a não dar certo, como no dia em que ele expulsou todos nós de sua casa, enquanto chorava pela Argentina não passar da primeira fase naquela Copa de 2002.

Messi, 1. Messi, 2. Messi, 3. Equador zero. O celular passou a tocar freneticamente com a mesma pergunta: “será que o Léo sobreviveu?”. O medo da linha estar congestionada tomava conta de nós, que combinamos gravar a primeira ligação que fosse completada, já que as centenas de amigos de infância certamente ligariam para ele. Foi a minha a primeira a ser completada. Sabia que ele estaria verde e gigante como o herói da Marvel, mas de felicidade.

¡No aguanto, no aguanto, voy a morir!

– Léo?

¡Léo Messi, Léo Messi! ¡No vi Maradona, pero que los chupen todos!

– Léo, tá vivo cara?

¡Vamos al Mundial, cabrón! Vamos al Mundial, ¡brasileno cabrón!

– Léo, esqueceu que já vi seu RG na escola? Você nasceu num hospital em Santos.

– No quiero saber de Santos, no quiero saber del Brasileño… ¡Messi, te quiero, Messi.

– Léo, tá vestindo a mesma camisa de sempre?

Cabrón, décime que se siente… ver Messi jugando al Mundial…

– Tá bom, Léo, tá bom. Outra hora a gente se fala. Abraço.

– ¡Hasta la Rússia, hasta la Rússia!

Foi difícil aguentar na quarta-feira de manhã seus envios de áudios com todas as narrações dos gols pelas rádios argentinas, as capas de jornais que sequer sabíamos existir, as comemorações nas praças e bares portenhos e a classificação das Eliminatórias de hora em hora, como um sorteio da Tele Sena. Logo ele, que não cansa de compartilhar nas redes sociais seu ódio ao ufanismo barato de Galvão Bueno, esse pendejo, como diz.

Obrigado, Léo. A saúde de outro Léo, (bem) menos conhecido e não menos albiceleste, agradece.

Para o Léo daqui, só há um salvador.
Para o Léo daqui, só há um salvador.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Meu amigo argentino. Ludopédio, São Paulo, v. 100, n. 17, 2017.
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