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Militância de gênero em Olimpíadas

Wagner Xavier de Camargo 17 de novembro de 2019

Os Jogos Olímpicos Rio-2016 terminaram aclamados por jornalistas como a “Olimpíada mais gay da história”[1]. Tais jogos foram recheados por situações de visibilidade de sexualidades dissidentes e corpos que não se alinhavam à lógica heteronormativa, cuja heterossexualidade é tomada como norma. Lésbicas, gays, bissexuais se mostraram, saíram do “armário da sexualidade”, e se colocaram em pistas, quadras, piscinas e noutros espaços do esporte. Demonstraram que pessoas representativas da sigla LGBTI+ podem estar presentes também em megaeventos esportivos de alcance mundial. Em que pese minha crítica a então “Olimpíada mais gay da história”[2], um fato sintomático é que temos um fenômeno interessante em gestação.

Ao todo, cinco dos ciclistas que puxaram as delegações dos países eram transexuais, algo até então inédito, incluindo a modelo Lea T. Foto: Reprodução/Twitter.

Estamos há menos de um ano para os Jogos Olímpicos/Paralímpicos de Tokyo-2020 e para os mais progressistas haverá uma explosão de atletas fora do armário, inclusive entre as pessoas com deficiência. Difícil supor um número exato (os Jogos Olímpicos de verão do Rio começaram com poucos/as autodeclarados/as não heterossexuais e acabaram com um total de 53, na época) e tecer qualquer previsão seria, no mínimo, fazer “futurologia” – algo sem crédito ou fundamento sério. O Japão é um país moderno e tecnológico, onde a homossexualidade é aceita desde o século XIX. Por isso, provavelmente, tenderá a ser uma vitrine bastante útil de plataforma política para atos de militância política, algo que funcionará como a tessitura de uma crítica a um sistema esportivo obsoleto no que dita às questões de gênero.

O fato é que, frente a uma onda de conservadorismo mundial, que atinge desde partidos políticos a grupos empresariais (e, certamente, atletas e seus mundos esportivos), clubes, associações e federações esportivas serão alvo de protestos de “militantes de gênero”, se posso assim chamá-los/as. Uma agenda extremamente positiva, diga-se de passagem, que resgata valores políticos de visibilidades atreladas a identidades – semelhante ao que ocorreu em fins dos anos 1960 nas chamadas “revoluções sexuais” da época.

Vale lembrar que o ativismo e a militância dentro de locais de competição esportiva não é exatamente uma novidade, haja vista casos famosos de protestos em âmbitos olímpicos, como a presença do negro Jesse Owens em Berlim-36, de Tommy Smith e João Carlos com o black power no México-68, do tenebroso grupo terrorista Setembro Negro em Munique-72, ou ainda de Cathy Freemann e a questão dos aborígenes, em Sydney-00. Porém, e se eu estiver certo nos prognósticos, veremos a partir das próximas edições o que se poderá definir como militância de gênero. Ou seja, atletas que, ou tendo deixado o “armário da sexualidade” ou não necessariamente (como os saltadores Matthew Mitcham e Ian Mattos, que quando convocados, já participaram como “gays” assumidos em seus respectivos eventos), defendem a presença política de sexualidades dissidentes da heteronormativa.

Tom Daley é uma estrela do salto ornamental e assumidamente gay desde 2013. Foto: Reprodução/Twitter.

E, apesar do exemplo de dois atletas homens, penso que, a partir de Tokyo-2020, a militância continuará sendo encabeçada por mulheres bissexuais e lésbicas. No Rio, em 2016, elas lideraram a lista do historiador inglês Tony Sculpham-Bilton, que tem se empenhado em procurar os casos de atletas não heterocentrados na história contemporânea do esporte olímpico.

A princípio, a militância vai crescendo como forma de resistência dentro do esporte, uma das principais instituições segregadoras de gênero das culturas ocidentais[3]. Ao contrário do que vivemos em alguns períodos do século XX, em que corpos atléticos eram manipulados por uma guerra tecnológica em prol de sistemas políticos que controlavam os resultados (por interesses econômicos e ideológicos), esta segunda década do século XXI mostra-se distinta nestas questões. Além de não se contentarem com a condição de docilidade que o esporte os trata, tais corpos parecem requerer reconhecimento de suas existências via identidades sexuais e de gênero. Se talvez isso será um processo mais “fácil” para mulheres bissexuais ou lésbicas e homens gays (aspas aqui porque o estar dentro/fora do armário da sexualidade nesta sociedade sempre traz sofrimentos e perdas), o mesmo não se pode dizer dos/as pessoas transgênero.

A militância de gênero será, portanto, difusa. Explico melhor: tanto teremos uma militância identificável, como a que aconteceu com o casal lésbico Marjorie Enya e Isadora Cerullo (em cena memorável de pedido de casamento no início dos Jogos do Rio-2016), como haverá a simples presença de um ou uma atleta transgênero em espaços esportivos. Esse/Essa possivelmente não anunciará a condição que ocupa (por inúmeras razões), porém seu corpo resgatará uma “divergência” de gênero, digamos assim. Um corpo transgênero pode até ser forçado a se encaixar em categorias binárias de que se vale o esporte pela igualdade de chances (categorias masculina e feminina), mas mostra um corpo que as embaralha, confunde e mesmo as mistura. Ser atleta com pênis e seios, por exemplo, ou ainda, ser um corpo que hibridiza elementos dados como masculinos e femininos, são expressões de uma militância distinta, silenciosa porém potente.

Marjorie Enya (esq.) e Isadora Cerullo (dir.) beijaram-se logo após a cerimônia de entrega de medalhas na Rio-16 e o pedido de casamento feito por Marjorie. Foto: Reprodução/Twitter.

Ao contrário do que certa vez me respondeu uma importante historiadora brasileira dos esportes em plenária acerca dos Jogos Olímpicos e seu formato, eu acredito em uma mudança em curso. Pelo que tenho pesquisado na área de estudos de gênero no esporte, as prerrogativas postadas por corpos não binários trazem uma hibridização de elementos que potencializam o debate para questionar e problematizar o(s) lugar(es) que o esporte aloca tais corpos em seus espaços. Tomar tais exemplos como paradigmáticos justamente para reelaborar questões inerentes ao esporte é uma tarefa nossa, para um futuro próximo. Observar e entender esta militância de gênero pode ser interessante, sobretudo, para mudar nossa visão de mundo.

Notas de rodapé

[1] Um dos primeiros sites a fazer tal chamada foi o El país online. Matéria ainda está disponível: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/09/deportes/1470774769_409560.html

[2] “Gênero e sexualidade na Olimpíada Rio-2016”. Jornal da USP, São Paulo, v. 1, p. 1 – 5, 24 ago. 2016. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/genero-e-sexualidade-na-olimpiada-rio-2016/

[3] Como bem nos lembra Eric Anderson, no livro In the game: gay athletes and the cult of masculinity (2005).

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Militância de gênero em Olimpíadas. Ludopédio, São Paulo, v. 125, n. 23, 2019.
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