Uma das experiências visuais mais amargas que vez por outra tenho acontece quando estou diante de uma sequência de fotos de pessoas jovens que morreram. Não dá para desviar o olhar. Quem passa pelo centro da cidade de Montevidéu, capital do Uruguai, vê em paredes de prédios cartazes com o rosto de desaparecidos políticos, um ao lado do outro. Ao que parece, muitos e muitas não chegaram aos 25 anos antes de morrerem em combate com as forças de repressão da ditadura lá vivida entre 1972 e 1985, ou ao serem sequestrados e torturados pelo Estado, sempre ou quase sempre, de forma clandestina. É desconcertante – e não por isso desnecessário, pelo contrário – que na banalidade de um deslocamento urbano emerja com tanta força a evocação por justiça.

Também são jovens, em sua maioria, os combatentes argentinos caídos na Guerra pelas ilhas do Sul do Atlântico, em 1982. Pelo menos essa é a impressão que causa a visita à Praça Malvinas Argentinas, na Cidade de La Plata, capital da província de Buenos Aires. Lá foi sede do 7º Regimento do Exército, de onde centenas de recrutas saíram para as batalhas. Mal treinados, mal equipados, mal alimentados, depois da rendição 46 militares não voltaram, enterrados por lá mesmo ou desaparecidos no fundo do mar. Olhar a foto de cada um, expostas em uma parede do que hoje é um centro cultural, é de uma agonia atroz. São meninos com cara de que estavam por sair para namorar, escutar o rock local ou ir ao estádio de futebol, não para o morticínio promovido pelos ditadores que ocupavam a Casa Rosada, na sua última tentativa de manter o regime de exceção em pé.

Quando uma pessoa morre cedo demais, ela sempre será lembrada pelo que poderia ter chegado a ser, fazer, viver. Ao ver a foto de Gabriela Anelli Marchiano, assassinada por uma briga entre torcedores do Palmeiras e do Flamengo no último sábado, penso nisso. Antes que pudesse entrar no Palestra Itália para a partida que seria disputada entre os dois times, um pedaço de vidro a atingiu no pescoço. Alguém atirou o caco de uma garrafa, e é a polícia e a justiça que têm agora a palavra sobre a responsabilidade do ocorrido. São as digitais do futebol que estão, no entanto, nos restos da garrafa que atingiram a moça, que era torcedora da equipe local. Exemplar é a discussão se a vítima era ou não ligada à Mancha Alviverde, se ela estava ou não na área da torcida adversária. Parece que algo justificaria o ato ou, o que dá na mesma neste caso, a culpa seria da vítima.

Gabriela Anielli
Minuto de silêncio antes da partida entre Palmeiras e São Paulo pela Copa do Brasil de 2023. Foto: thenews2.com/Depositphoto.

Foi também com a foto de um rapaz de 25 anos que integrantes do Grupo Flamengo da Gente fizeram uma homenagem em 31 de março de 2019. Em frente à sede de remo do Clube, foi lembrado um antigo atleta, Stuart Angel Jones, bicampeão carioca no Oito com timoneiro. Ele integrava Movimento Revolucionário 8 de Outubro, e nesse contexto foi preso, torturado e assassinado pela ditadura militar, em 1971. Seu corpo jamais foi encontrado. Não é pouco que torcedores homenageiem uma vítima do estado de exceção, assim como foi marcante, mas em sinal negativo, a reação da direção flamenguista. Ela fora inicialmente citada, de forma equivocada, como promotora do ato[1]:

Em relação à nota publicada nesta segunda-feira na coluna Ancelmo Gois – do jornal O Globo – o Clube de Regatas do Flamengo esclarece que, por ser uma verdadeira Nação, formada por mais de 42 milhões de torcedores das mais diversas crenças e opiniões, não se posiciona sobre assuntos políticos.

A homenagem citada na nota foi realizada diretamente por um grupo de sócios e torcedores do Clube, sem nenhuma participação da instituição – algo que, inclusive, é estatutariamente vedado.

Para os dirigentes, rememorar a eliminação e o desaparecimento de uma pessoa perpetrado por um Estado ditatorial é um posicionamento como seria outro qualquer, por exemplo, o que defendesse um golpe? É uma postura absurda e cínica, já que é como dizer que seria democrático eleger o fim da própria democracia.

“Ei, você aí, o Dener já morreu, só falta o Valdir!”, gritava uma parte da torcida rubro-negra, em um clássico contra o Vasco, em 1994, menos de uma semana depois de o jogador falecer, aos 23 anos, em um acidente automobilístico. Ele e Valdir Bigode faziam a dupla de ataque no então bicampeão carioca que chegaria ao tri naquele mesmo ano. Dener foi um atacante maravilhoso. No início de sua carreira pelos profissionais da Portuguesa de Desportos, dava a impressão de estar sempre com a camiseta grande demais para um corpo que, no entanto, apenas na aparência era frágil. Quem o via em campo, presenciava o jovem craque, que atuou apenas por quatro anos entre os profissionais, enfrentando zagueiros que o tentavam parar a botinadas. Sua arma era o enorme talento traduzido em velocidade, habilidade, técnica e faro de gol, uma alquimia indestrutível que por tão pouco tempo foi posta a serviço do nosso deleite, na Lusa, no Grêmio, no Vasco e na Seleção.

Fôssemos razoáveis, o futebol viveria um momento de luto pela morte da palmeirense. Mas, como disse o organizador dos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, Avery Brundage, logo após o atentado à Vila Olímpica e o assassinato de 11 atletas israelenses, “The show must go on”.  Pensando bem, em um país que não se envergonha dos seus crimes, entre eles a ditadura que nos desgovernou por duas décadas, o que esperar?

Rememoremos pelo menos um pouco tantos mortos tão jovens, entre eles os desaparecidos políticos, os combatentes levados ao matadouro das águas gélidas do Atlântico Sul, Gabriela Anelli Marchiano, Stuart Angel Jones; e também Márcio Gasparin a Silva, 16 anos, cuja vida foi destruída em confronto entre palmeirenses e são-paulinos ao final de uma partida de júniores, em 1995, e Kevin Espada, atingido aos 14 anos por um sinalizador disparado pela torcida do Corinthians, em 2013. Não esqueçamos de todas as pessoas que se foram, violentamente, cedo demais.

[1] Nota do Flamengo sobre homenagem a Stuart Angel causa polêmica nas redes sociais.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Mortes em imagens que amargam (o futebol). Ludopédio, São Paulo, v. 169, n. 15, 2023.
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