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Muito mais que gols: o que Richarlison tem a nos ensinar

Maurício Rodrigues Pinto 9 de dezembro de 2022

“Muitos comentaristas e jornalistas pedem para os jogadores aparecerem mais nas redes sociais, que participem de causas sociais. Mas é por isso que a gente às vezes não aparece. A gente vai brincar e aí ficam cobrando. Os torcedores criam ódio e eu dei uma sumida das redes sociais, porque foi muito torcedor brasileiro me atacando e eu fico sem entender nada. É por isso que muitos jogadores não falam nada, não entram em causas sociais e políticas porque tem muitas pessoas maldosas”[1]

Essa foi uma fala de Richarlison, em 30/05/2022, durante uma entrevista coletiva em um dos amistosos de preparação da seleção masculina para a Copa do Mundo. O jogador, autor dos dois gols anotados pela seleção brasileira diante da Sérvia na abertura da Copa do Mundo e principal artilheiro do time no torneio, sempre se mostrou muito engajado em suas redes sociais, tendo chamado a atenção por se posicionar de forma bem articulada em pautas que usualmente atletas brasileires, em especial futebolistas, não costumam se envolver[2]. Como exemplo, já se posicionou contra reiterados episódios de racismo, os absurdos da crise energética no norte do país e das queimadas no Pantanal. Colocou-se também como aliado de campanhas contra o assédio sexual e, em meio a um contexto de marcado pelo negacionismo e a desinformação disseminados pelo próprio governo federal, Richarlison apoiou as campanhas de vacinação para combate da Covid no Brasil e o trabalho realizado por laboratórios e institutos de pesquisa brasileiros[3].

Além disso, Richarlison se destaca por ser uma pessoa carismática, bem humorada e espontânea, com vários episódios considerados “engraçados”, “irreverentes”, o que faz com que seja um dos favoritos da mídia entre os jogadores dessa atual seleção, ao mesmo tempo que parece ter de responder sempre sobre os mesmos assuntos: imitação de pombo, falas engraçadas, gracejos (geralmente maldosos e preconceituosos) sobre o modo como se comunica em inglês e o imperativo de se posicionar politicamente… Muitas vezes a sua qualidade e características sobre jogador e até como pessoa ficam colocadas em segundo plano, em especial quando o olhar se foca na imagem exaustivamente explorada pelas mídias. E imagino o quanto isso cansa, tira o prazer no exercício cotidiano de atividades e adoece. Foi esse descontentamento que Richarlison expressou durante a coletiva mencionada, destoando do tom habitualmente descontraído de suas entrevistas e declarações públicas.

Nos últimos amistosos preparatórios para a Copa, contra as seleções de Gana e Tunísia, Richarlison novamente falou com jornalistas brasileiros, em tom de desabafo, questionando a pouca confiança que percebia por parte da opinião pública (e da mídia especializada) brasileira:

“Venho aqui, faço meu trabalho, calado e aproveito cada oportunidade que o professor tem me dado. É continuar. Espero que o povo brasileiro acredite mais em mim também, porque sou um cara que quando chego aqui na seleção, faço bastante gol. Estou vestindo a camisa 9 hoje e toda vez que visto ela, estou metendo gol. E espero continuar assim”.[4]

Golaço Richarlison
Richarlison faz o segundo gol dele e do Brasil na vitória por 2 a 0 contra a Sérvia na estreia da Copa de 2022. Foto: Lucas Figueiredo/CBF.

É curioso pensar que comparado a outros jogadores da seleção, como Vini Jr. e o próprio Neymar, a imagem de Richarlison, um jovem negro de pele clara, assumidamente identificado com a cultura periférica, não seja tão vista em propagandas, tampouco tenha alcançado o mesmo apelo midiático de associação a marcas. Mesmo tendo sido protagonista da conquista de um título da seleção (os Jogos Olímpicos de Tóquio), o segundo artilheiro do time neste ciclo de preparação para a Copa e se constituído em um dos jogadores de confiança do técnico Tite. Essa complexidade reivindicada por Richarlison, a negação de imagens de controle (COLLINS, 2019)[5] desumanizadoras, se traz benesses e possibilita amadurecimento, também tem potencial para trazer dores, cobranças desproporcionais e prejuízos materiais.

Mesmo bastante jovem (tem 25 anos de idade), pelas declarações dadas em maio e pela postura séria, focada, “sem sorrisinho” que tem demonstrado durante a preparação para esta Copa, Richarlison, alçado à posição de ídolo nacional, demonstra que entende como são as dinâmicas da fortuna de ser um jogador de futebol e uma figura pública que nega enquadramentos desumanizantes, ainda mais quando se está fora de normas e padrões estabelecidos pela sociedade brasileira. Muito além de uma figura carismática, engraçada ou de um ativista político-jogador de futebol, é um ser no mundo que recusa rótulos simplistas e imagens de controle que tentam impor narrativas únicas sobre ele, um tipo de consciência que não é fácil, ainda mais tendo alcançado o lugar que ele chegou.

Reconhecido nacionalmente pelo grande público – das pessoas que acompanham futebol regularmente àquelas mais leigas, que se interessam pelo futebol e a seleção durante os períodos de Copa –, e quase que alçado à posição de unanimidade nacional em uma sociedade que se defronta com disputas narrativas e tensões bastante evidentes, que Richarlison possa também ter o direito de ser reconhecido como um sujeito complexo e, por vezes, também contraditório. Por mais que os enquadramentos sejam tentadores, que ele seja visto como um ser humano na sua plenitude e possa contar com a torcida e a admiração que realmente merece, independente de anotar ou não gols decisivos (afinal, é sabido que vida de centroavante é feita não só de períodos de fartura, mas de fases de estiagens). Agora se ele puder fazê-los no decorrer desta Copa e ao longo de sua carreira, será muito melhor não só para ele, mas também para uma legião de pessoas que vai poder se alegrar com essa já cativante e fascinante personalidade, que além de bom de bola e dedicado, mostra-se fundamental, neste momento, para a complexificação das narrativas sobre o futebol e as profundas relações que este jogo tem com a sociedade brasileira.

Notas

[1] Fala extraída: CASUCCI, Bruno; ZARKO, Raphael. Richarlison lembra críticas recebidas e desabafa: “Por isso muitos jogadores não entram em causas sociais e políticas”. In GE.com, 30/05/2022. Disponível em: <https://ge.globo.com/futebol/selecao-brasileira/noticia/2022/05/30/richarlison-selecao-everton-criticas-desabafa-por-isso-muitos-jogadores-nao-entram-em-causas-sociais-politicas.ghtml>. Acesso em 25/11/2022.

[2] DEDO na ferida: oito vezes em que Richarlison se posicionou sobre polêmicas. In: UOL Esportes, 18/11/2020. Disponível em: <https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2020/11/18/dedo-na-ferida-oito-vezes-em-que-richarlison-se-posicionou-sobre-polemicas.htm>. Acesso em 25/11/2022.

[3] ANDRADE, Richarlison. Por Favor, Não Deixe de Tomar Sua Vacina. In The Players Tribune, 04/11/2021. Disponível em: <https://www.theplayerstribune.com/br/posts/carta-richarlison-tome-sua-vacina>. Acesso em 25/11/2022.

[4] RICHARLISON vibra com dois gols e diz: ”Espero que o povo brasileiro acredite mais em mim”. In GE.com, 23/09/2022. Disponível em: <https://ge.globo.com/futebol/selecao-brasileira/noticia/2022/09/23/richarlison-vibra-com-dois-gols-e-diz-espero-que-o-povo-brasileiro-acredite-mais-em-mim.ghtml>. Acesso em 25/11/2022.

[5] Categoria formulada por Patricia Hill Collins, intelectual estadunidense e teórica do feminismo negro, para pensar a função de estereótipos racistas e machistas atribuídos a mulheres negras estadunidenses. Em Pensamento feminista negro, Collins fala sobre as imagens controle: “Dado que a autoridade para definir valores sociais é um importante instrumento de poder, grupos de elite no exercício do poder manipulam ideias sobre a condição de mulher negra. Para tal, exploram símbolos já existentes, ou criam novos. Hazel Carby (1987, p. 22) sugere que o objetivo dos estereótipos não é ‘refletir ou representar uma realidade, mas funcionar como um disfarce ou mistificação de relações sociais objetivas’. Essas imagens de controle são traçadas para fazer com que o racismo, o sexismo, a pobreza e outras formas de injustiça social pareçam naturais, normais e inevitáveis na vida cotidiana” (2019, p. 175-176).

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Rodrigues Pinto

Bacharel em História, pela Universidade de São Paulo (USP, com especialização em Sociopsicologia, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e mestre pelo programa interdisciplinar Mudança Social e Participação Política, da USP. Corinthiano, no seu mestrado pesquisou masculinidades e a atuação de movimentos de torcedorxs contrários à homofobia e ao machismo no futebol brasileiro. Integrou o coletivo HLGBT (Histórias de Vida LGBT) e participou do projeto que resultou no livro “Histórias de Todas as Cores: Memórias Ilustradas LGBT”, projeto selecionado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo (ProaC), no edital de Promoção das Manifestações Culturais com Temática LGBT.

Como citar

PINTO, Maurício Rodrigues. Muito mais que gols: o que Richarlison tem a nos ensinar. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 8, 2022.
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