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Mulheres e Torcida: um recorte de gênero nos jogos de punição do Sport Club do Recife

Soraya Barreto Januário 3 de fevereiro de 2024

O futebol, como fenômeno social e cultural, tem sido objeto de estudo em diversas áreas acadêmicas, dentre eles a antropologia. Apesar do meu lugar de pesquisa ser a Comunicação, me aventuro nesse texto a dialogar numa perspectiva antropológica do futebol partindo de um lugar específico, o meu lugar de mulher e torcedora, a partir de um prisma mais macro, ao observar a presença feminina na arquibancada. As mulheres enquanto torcedoras têm sido um tema de destaque nos últimos anos, bem como um ponto de análise relevante para compreender não apenas a dinâmica das torcidas, mas também a evolução das representações de gênero em contextos esportivos. Dessa forma, empreendi uma observação participante tentando compreender as práticas torcedoras e a disposição do ambiente clubístico, e é nesse segundo ponto que irei me aprofundar neste texto. Informações mais detalhadas e amplas da etnografia, observação participante e das entrevistas que foram realizadas com as torcedoras, poderão ser lidas na pesquisa a ser publicada, em parceria com Paloma de Castro, em periódico científico (Barreto Januário, De Castro, no prelo).

A participação ativa das mulheres em estádios de futebol remonta a diferentes períodos históricos e realidades culturais (Bomfim, 2019), mas é fato que o termo, que na língua portuguesa serve para designar a massa que torce e segue um clube de futebol, veio das primeiras mulheres que acompanhavam as partidas (Barreto Januário, 2019). Ao torcer os lenços e as luvas em momentos emocionantes dos jogos, elas viriam a ser responsáveis por esse substantivo tão significativo. Todavia, é fato que o espaço clubístico e o universo do futebol foram forjados no e pelo masculino (Goellner, 2005) e, portanto, com dinâmicas, discursos e práticas que, em sua maioria, acabam sendo repelentes não-naturais da participação feminina, seja pela misogenia, violência nos estádios, assédio sexual recorrentemente sofrido ou pela naturalização desse espaço como puramente masculino.

 Cabe ressaltar que as impressões divididas no presente texto dialogam com uma experiência temporal e espacial específica: os jogos que contaram apenas com torcida de mulheres, crianças e pessoas com deficiência (PCDs), no Estádio Adelmar da Costa Carvalho, na Ilha do Retiro. A restrição de público foi decorrente de uma punição imposta pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) ao Sport Club do Recife, motivada pela violenta invasão de campo, protagonizada pela torcida do Sport, no Campeonato Brasileiro de 2022. O Sport teve três jogos de suspensão sem público amplo, que foram realizados respectivamente contra o Botafogo-SP, ABC-RN e Avaí-SC pelo Campeonato Brasileiro da Série B de 2023. O mesmo ocorreu com Athletico-PR, Coritiba e Ceará, que cumpriram punições semelhantes em 2023 e, para surpresa de alguns, lotaram os estádios. 

​​É fato que a presença das mulheres nas arquibancadas e enquanto maioria nos “jogos de punição”, não apenas influenciaram a dinâmica do ambiente, mas também tiveram repercussões sociais significativas e mandaram recados importantes. Cabe dizer que o termo “jogos de punição”, atrelado à presença de mulheres nos estádios, me incomoda profundamente, mas este é outro debate. Todavia, vale destacar que o espanto social com as arquibancadas lotadas nesses jogos nos oferece matéria para pensar especialmente que, enquanto efetivamente temos várias conquistas a celebrar fora e dentro de campo, ainda é forte no imaginário popular e social que o clube de futebol segue sendo um espaço compreendido como puramente masculino e masculinista. E ainda, também é reforçada a premissa de que a mulher seria, na maioria das vezes, “acompanhante” dos homens em partidas, fato que em pesquisa anterior já comprovei ser uma falácia (Barreto Januário, 2019).  Sobre isso, Carol Vimieiro e Natália Souza, ao empreenderem uma análise sobre os estudos que abarcam as representações das mulheres torcedoras, indicam modelos hegemônicos no qual elas são representadas como: “[…] as embelezadoras de estádio, as marias-chuteira, a figura maternal, a apaziguadora e a masculinizada” (Vimieiro; Souza, 2022, p. 6).

Com efeito, me chamou especial atenção o discurso fortemente veiculado pela mídia pernambucana sobre os jogos, apesar dos títulos e chamadas das matérias e reportagens sempre referirem crianças e pessoas PCD’s – além das mulheres – visualmente e enquanto fontes e entrevistadas, a temática mais evidenciada pela mídia esportiva local era de que se tratava de jogos especialmente para as torcedoras mulheres. Imagens de torcedoras, com uma clara e clássica predileção por mulheres jovens – as embelezadoras de estádio (Vimieiro, Souza, 2022) – foram explícitas, todavia foi possível notar alguma pluralidade de gerações e raças, seja nos jornais impressos e portais de notícias esportivas, seja nas emissoras de TV aberta. Apesar da narrativa visual e discursiva ter sido majoritariamente construída no âmbito da torcida feminina, a abordagem do clube foi outra: imperou a mulher na figura maternal (Vimieiro, Souza, 2022) e o protagonismo infantil, dada a presença surpreendentemente superior de atividades e ativações de marcas voltadas para as crianças.

Ao observar um ambiente tão distinto daquele que sempre encontrei em jogos de ampla torcida na sede do clube, ecoou quase que instantaneamente o reforço da tradição futebolística fortemente atrelada ao masculino (Pope, 2011), o da mulher no papel de cuidadora (Gilligan, 2013) e doméstica (Okin, 2008), discussão tão atual e pertinente que foi, inclusive, a temática da redação do ENEM deste ano. Foi evidente o fortalecimento da ideia de que sendo ou não participante habitual do espetáculo futebolístico, é mais uma vez a mulher a responsável pelo cuidado dos filhos, de levar e cuidar nos jogos, reforçando o espaço clubístico como lugar de lazer do homem, enquanto para a mulher, o papel é outro. 

Dessa forma, ao meu ver, ficou evidente a visão do clube sobre um “jogo de punição”, ao observar que as mulheres foram cerceadas da diversão habitual ofertada no ambiente clubístico  pré-jogo, numa clara posição de controle dos corpos e vivências da mulher torcedora, observados pela divisão social do trabalho (Okin, 2008), que confere papéis e atividades sociais específicas para cada gênero. Esse sentimento advém especialmente pelo fato de que, no primeiro jogo, para minha revolta e de muitas mulheres que estavam no campo, a cerveja acabou ainda na primeira hora após abertura dos portões. O pagode tradicional, que ocorre antes de todos os  jogos do Leão de ampla torcida, não aconteceu e a entrada da ilha estava tomada por recreadores, ativações de marcas de produtos infantis com infláveis gigantes e distribuição de biscoitos e pipocas. E ainda, marcas de tintas com promotores realizando pintura facial nos rostos das crianças. Para completar a narrativa, da mulher no lugar de domesticidade, cito como exemplo a ativação de uma marca de commodity alimentar, a Turquesa, que comercializa grãos como feijão e arroz. Apesar da intenção da ativação com a distribuição de caldinho de feijão para a torcida ser interessante e assertiva, todavia as barracas de cerveja, que tradicionalmente ocupam o mesmo espaço, estavam fechadas o que nos confere uma leitura atravessada por questões de gênero.

É interessante notar a ativação ocorrer em um jogo com maioria de mulheres, num claro cerceamento e direcionamento em torno das vivências das mulheres em campo, além de um desrespeito com o ritual futebolístico que faz a experiência de campo ser tão única. Vale pontuar que as melhorias na organização dos pré-jogos que se seguiram a primeira experiência de um jogo de maioria feminina, tais como: a ampliação da venda cerveja e a volta do pagode, se deram após as reclamações e a carta aberta publicada pela torcida e movimento de mulheres, como é exemplo o “Elas e o Sport”[1]. Isto é, nada é naturalmente dado às mulheres, tudo precisa ser uma luta constante.

Futebol mulheres
Fonte: acervo da autora
Mulheres torcida
Infláveis e ações de pintura no rosto e distribuição de caldinho. Fonte: acervo da autora

É simbólico a cerveja ter acabado num jogo de futebol e ter sido excluído do ritual pré-jogo um espaço de diversão, música e dança como elemento de entretenimento e socialização da torcida. Houve explicitamente uma lógica de gênero que dialogava com as práticas do cuidado (Gilligan, 2013) e dos ditos papéis de gênero. Como se as mulheres não pudessem estar ali para o seu próprio entretenimento e diversão, mas sim para cuidar das crianças. Vale pontuar também que apenas na terceira partida foi possível ver uma marca publicizando produtos de higiene íntima feminina, a marca já havia publicizado, no segundo jogo, um produto de higiene de bebês. Bem sugestivo, não acham?

É pertinente destacar que apesar dessa bola fora do clube e das permanências que o patriarcado encontra com grande facilidade na gestão esportiva brasileira e mundial, foi possível ver um show das torcedoras, na multiplicidade e diversidade de mulheres que ali estavam. Torcedoras de todos os tipos. Mulheres diversas e únicas, unidas, em sua maioria, pela paixão, pelo espetáculo e pelo futebol. Dessa forma, foi evidente notar três agrupamentos principais entre as torcedoras: 1. Mulheres torcedoras experientes em campo, sejam partícipes de torcidas organizadas e/ou movimentos de mulheres como o Elas e o Sport, Bravas da Ilha e a ala feminina da torcida jovem ou ainda, mulheres torcedoras sem agrupamento específico, porém consumidoras assíduas do clube. Ambas com ou sem filhos; 2. As torcedoras eventuais que vão ao estádio de forma mais espaçada, mas com alguma frequência, também com ou sem filhos; 3. As mulheres que tinham pouca ou nenhuma experiência em campo, motivadas pela ideia de que seria um jogo com menores índices de violência, assédio e truculência com a exclusão da torcida masculina e sim, muitas delas no papel de acompanhantes e cuidadoras dos filhos e de outras mulheres, nesse caso. Saliento ainda, o que corrobora Gustavo Andrade (2010, p. 349) ao observar que a violência enquanto uma das formas de socialização das masculinidades e do futebol, é parte evidente das práticas torcedoras dos homens associadas a uma ideia de virilidade.

torcedoras sport
Fonte: acervo da autora
torcedoras sport
Tradicional encontro de torcidas e torcedoras na sede do clube pré-jogo. Fonte: acervo da autora

Nesse âmbito, é oportuno dizer que essa multiplicidade de perfis citada, ocorre igualmente na torcida masculina. Todavia, é na falta de senso crítico e visão – inclusive de mercado – desse futebol gerido de forma conservadora e misógina, que exclui, invisibiliza e inferioriza significativa parte da torcida, que está boa parte do problema. Vale lembrar que a pesquisa Datafolha[2] (2019) demonstrou, por exemplo, que a torcida do Sport tem maioria feminina, perfazendo 52,4% de mulheres, contra 47,6 % de homens. Por fim, aproveito esse texto, em forma de desabafo, para chamar, uma vez mais, a atenção do Sport Club do Recife, time do qual sou uma torcedora apaixonada, vale pontuar, e aos demais clubes do futebol nacional: parem com a misoginia, que está feio! É cafona e criminoso. Lugar de mulher é onde ela quiser, e sim, é na torcida, gritando, sambando e/ou tomando uma cerveja com as amigas, com ou sem filhos. Inclusive, gerindo de forma vitoriosa clubes de futebol.

 

Referências:

BONFIM, Aira Fernandes. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). 2019. Dissertação (Mestrado em História, Política e Bens Culturais) – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2019.

BARRETO JANUÁRIO, Soraya. Mulheres no Campo: O ethos da torcedora pernambucana. São Paulo: Fontenele Publicações, 2019.

BARRETO JANUÁRIO, Soraya, MELO, Paloma Souza de Castro. Notas Etnográficas de duas pesquisadoras-torcedoras: práticas do torcer e consumir futebol das mulheres do Sport Club do Recife. Revista Vivência, no prelo. 

GILLIGAN, Carol. La ética del cuidado. Barcelona: Fundació Víctor Grífols i Lucas, 2013.

GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidadesRevista brasileira de educação física e esporte, v. 19, n. 2, p. 143-151, 2005.

OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Revista estudos feministas, v. 16, p. 305-332, 2008.

POPE, Stacey. ‘Like pulling down Durham Cathedral and building a brothel’: Women as ‘new consumer’fans?. International Review for the Sociology of Sport, v. 46, n. 4, p. 471-487, 2011.

VIMIEIRO, Ana Carolina; SOUZA, Natália Oliveira. Representações das mulheres do futebol em telenovelas: uma análise da personagem Suelen de Avenida Brasil. In: 45º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – INTERCOM, 2022, João Pessoa. Anais eletrônicos […] João Pessoa: UFPB, 2022. Disponível em: https://www.portalintercom.org.br/anais/nacional2022/resumo/0720202217165362d862b5d2b2b. Acesso em: 11 jul. 2023.


[1] Disponível aqui. Acesso 10 Nov. 2023

[2] Disponível aqui. Acesso em 20 Nov. 2022

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Soraya Maria Bernardino Barreto Januário

Professora Doutora do Departamento de Comunicação Social - Universidade Federal de Pernambuco e do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos/UFPE.

Como citar

JANUáRIO, Soraya Barreto. Mulheres e Torcida: um recorte de gênero nos jogos de punição do Sport Club do Recife. Ludopédio, São Paulo, v. 176, n. 3, 2024.
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