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Mulheres visibilizam mulheres: a presença do futebol de mulheres no Museu do Grêmio – Hermínio Bittencourt (RS)

Sibelle Barbosa da Silva 13 de setembro de 2023

“Entender as proibições é também compreender a força das resistências e a maneira de contorná-las ou de subvertê-las”.

(Michelle Perrot, 1998, p. 91)

Em maio de 2015 inaugurou no Museu do Futebol, localizado no Estádio do Pacaembu (SP), a exposição “Visibilidade para o Futebol Feminino”, com curadoria de inúmeras colaboradoras do espaço museológico e da pesquisadora e ativista do futebol de mulheres, Silvana Goellner. A mostra se tornou um marco simbólico, pois representava a ação de trazer ao debate público a proibição do futebol para as mulheres durante quarenta anos no Brasil através do decreto-lei n. 3.199 de 1941.

Nessa direção, as consequências da proibição são sentidas até hoje, pois influencia na prática do futebol pelas mulheres, que tem seus projetos muitas vezes descontinuados, mas também sentimos esses efeitos no campo da memória que apagam as mulheres nos museus e outros locais como se elas nunca tivessem praticado futebol. Logo, o Museu do Futebol, ao trazer esses fatos e ao propor um debate em torno do assunto revelou que essas mulheres subverteram essa ordem e nunca deixaram de jogar futebol ao mesmo tempo em que lutavam pela revogação do decreto.

A exposição, fruto de uma extensa pesquisa museológica, foi um projeto liderado pelas mulheres do Museu e tem ressignificado no campo simbólico esse apagamento, tornando a ausência em presença. Nesse sentido, foram emergindo mulheres com suas histórias e as vitrines do museu sendo ocupadas pelos seus objetos após um silêncio de quarenta anos.

formiga
Capa da exposição Visibilidade para o futebol feminino que expõe de forma simbólica a atleta Formiga pedindo mais atenção à prática do futebol pelas mulheres. Fonte: Acervo do Museu do Futebol, doc eletr, 2023.

Nesse contexto, esse episódio nos revela como essa exposição se tornou uma referência importante para uma virada cultural (Soares, 2020) nos museus de clubes de futebol. Conhecidos por serem lugares conservadores apresentando apenas uma narrativa celebratória de um passado glorioso da agremiação (Mitidieri, 2022), aos poucos esses espaços tem se aberto para trazer aos públicos temas antes silenciados, como casos de racismo, homofobia e misoginia no futebol. Portanto, esses lugares museológicos são potentes para o estabelecimento de políticas culturais para a inclusão social de todos e todas, especialmente através do diálogo e ações educativas-patrimoniais com todos os perfis de públicos que se apropriam dessa ferramenta cultural.

Nesse sentido, a nossa intenção é narrar brevemente como temos observado essas mudanças sutis através do estudo de caso do Museu do Grêmio – Hermínio Bittencourt, localizado em Porto Alegre (RS), que tem trazido aos públicos a ressignificação da história do futebol de mulheres a partir da formação de uma coleção específica da modalidade no Grêmio.

Esse relato de experiência parte de um recorte de uma pesquisa maior em nível de Mestrado, que tem como objetivo evidenciar a potência da pesquisa museológica em museus de clubes para visibilizar as pioneiras que fizeram história nas agremiações.

Assim sendo, o Museu do Grêmio foi oficialmente inaugurado em 1984 como Sala de Troféus. A instituição museológica representa através de seus acervos a identidade clubística e a memória do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. A atividade principal da instituição é a produção de estatísticas e efemérides, informações elaboradas pelo setor de documentação e história que seguem para o setor de comunicação para serem compartilhadas nas mídias sociais do Clube. Por isso o maior desafio do espaço é propor e incluir exposições e ações que vão além do culto do passado glorioso da agremiação e iniciar um processo de trazer ao debate, narrativas plurais (Moraes, 2021) que contemplem os problemas do futebol como são os casos de misoginia, racismo, homofobia, xenofobia e gentrificação.

Nesse cenário, a partir de 2017, com o retorno da prática do futebol de mulheres no Grêmio, após o encerramento do departamento há quatorze anos, houve a oportunidade de ressignificar essa história. Entretanto, essa ação não seria possível sem a imposição da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) aos clubes brasileiros para formarem equipes de mulheres nas agremiações profissionais até 2019 (Barreira, Mazzei, Castro, Galatti, 2020). Vale destacar também que esse movimento de trabalhar com a história no Museu e dar visibilidade a esse retorno no setor de comunicação do Clube foi assumido pelas profissionais mulheres, pois são elas que percebem o esquecimento, descaso e os preconceitos ainda vigentes em relação à prática do futebol pelas mulheres.

No caso do Museu do Grêmio, com o retorno da modalidade, a parceria da museóloga com a historiadora foi fundamental para dar início à pesquisa, com a finalidade de investigar o presente e o passado ainda considerado inexistente no Grêmio como também se pensava sobre outros clubes de futebol. Dessa forma, a historiadora Bárbara Lauxen criou o projeto “Narrando Histórias”, que tem o objetivo de evidenciar as memórias pessoais de participantes da história do Grêmio constituindo um acervo de depoimentos através de gravações de entrevistas em áudio e vídeo através da metodologia da História Oral. E foi a partir do depoimento da zagueira Aline de Borba Fermino, que atuou no clube nos fins da década de 1990, início dos anos 2000 e no retorno do departamento em 2017, que descobrimos que esse passado se estendia até os anos da década de 1980. Foi também através dessas entrevistas que entramos em contato com as dificuldades vivenciadas pelas atletas, pois a obrigatoriedade não garantiu contratos com salários dignos, os treinos eram realizados após os expedientes de seus empregos fora do Grêmio e o acesso ao plano de saúde era restrito.

Diante desse cenário foi em 2019 que presenciamos uma situação de certa indiferença em relação a representação das conquistas das mulheres que praticam futebol, durante o processo de inclusão do primeiro objeto que marca esse retorno do futebol de mulheres no Grêmio, que é o Troféu de Campeãs do Campeonato Gaúcho de 2018.

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Troféu do Campeonato Gaúcho de 2018. Fonte: Acervo Museu do Grêmio. Fotografia Luciano Amoretti

Nesse contexto, ao dar entrada no acervo do Museu do Grêmio, a peça recebeu o tratamento técnico e logo entendemos que o objeto seguiria para a exposição de longa duração, porém isso não ocorreu, pois alguns diretores solicitaram a vitrine confeccionada para o troféu das campeãs para a inclusão de mais objetos oriundos da conquista do futebol profissional de homens do título da Libertadores da América em 2017. Porém, após um diálogo e superada essa divergência inicial, conseguimos incluir o troféu na exposição, mas para a equipe do Museu ficou claro que as mulheres além de enfrentarem um descaso constante no seu cotidiano para praticar futebol, também passam por uma tentativa de apagamento histórico de suas conquistas, como se fosse desnecessário ou algo menor.

O silenciamento das memórias das mulheres parte de uma construção naturalizada socialmente e esse problema se estende aos museus (Perrot, 1989) e outros lugares de memória, provocando uma sequência de tentativas de aniquilação simbólica (Goellner, 2021) dessas histórias. Também ficou evidente que se não houvesse mulheres na equipe para questionar essa decisão, talvez o Museu do Grêmio não daria esse passo de incluir esse prêmio na mostra. Portanto é visível que os museus não são lugares neutros, mas de disputas onde o trabalho de historiadoras e museólogas é sobretudo um ato político.

Troféu de Campeãs do Campeonato Gaúcho incluso na exposição de longa duração. Fonte: Acervo do Museu do Grêmio. Fotografia da autora.

Essa ação pode parecer muito simples, mas fez toda a diferença em viabilizar no espaço expositivo do Museu, uma materialidade que simboliza as mulheres atuando no futebol as retirando das sombras da história e as colocando em uma posição de protagonistas. Ao narrar esse acontecimento entendemos a importância de formar uma coleção específica de futebol de mulheres e dar sequência a pesquisa museológica em busca de fontes e materialidades que atestem essa presença constantemente, pois essa ação significa reconhecer as mulheres como sujeitos que tem o direito de ocupar o espaço público.

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Atletas do time Sub-18 do Grêmio visitam o museu. Fonte: Acervo do Museu do Grêmio – Flickr do Grêmio. Fotografia Morgana Schuh.

Atualmente, a coleção de futebol de mulheres do Museu do Grêmio, reúne trinta e três troféus, uma chuteira, uma braçadeira, duas camisetas, duas medalhas e três quadros e continua em expansão conforme o levantamento de lacunas no acervo. O espaço expositivo passou a compor cinco peças disponibilizadas na vitrine destaque chamando a atenção dos nossos públicos. Especialmente nas mediações e os visitantes ao interagirem com essas materialidades questionando-as de diversas formas, transformam esses artefatos em objetos diálogo (Bruno, 1997). Vale ressaltar que esse processo não seria possível sem a escuta dos nossos públicos e a ação colaborativa das atletas que nos tem auxiliado na identificação de outras atletas e premiações do passado do Clube, logo, entendemos que a participação das comunidades para direcionar nossas ações é fundamental para o fazer museológico contemporâneo.

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Vitrine principal da exposição de longa duração contemplando os novos objetos do futebol de mulheres. Fonte: Acervo do Museu do Grêmio. Fotografia da autora.

Como resultado, a pesquisa museológica trouxe à luz a presença de conselheiras, gestoras e atletas de outras modalidades esportivas ampliando a pesquisa e criando o eixo “Mulheres no Grêmio”. Finalmente, essas renovações nos colocam em uma posição de agentes sociais, na medida em que nossas ações metodológicas privilegiam tornar o museu um lugar de escuta e ação, realizado pelas e com as mulheres, conferindo significado de existência e resistência pelo direito à memória de todas e todos.

Referências

BARREIRA, Júlia. MAZZEI, Leandro Carlos. CASTRO, Flavio Denardi de. GALATTI, Larissa Rafaela. Conmebol e o Futebol de Mulheres: uma análise das estratégias de desenvolvimento (in) existentes na América do Sul. In: MARTINS, Mariana Zuaneti. WENETZ, Ileana (Orgs.) Futebol de Mulheres no Brasil: desafios para as políticas públicas. Curitiba: CRV, 2020. p. 29 – 38. 

BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Museus de empresa: princípios, problemas e perspectivas. In: Cadernos de Sociomuseologia, n. 10. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 1997. p. 43 – 46.

GOELLNER, Silvana. Mulheres na REMAM: Diálogo entre Silvana Goellner e Daniela Pavani. Museu da UFRGS. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qfVkIwPFSKw . Acesso em junho de 2021.

MITIDIERI, Maria Cristina de A. A experiência esportiva nos museus: Os museus do esporte e a comunicação celebratória do patrimônio esportivo musealizado. Doutorado (Tese) – Programa de Pós Graduação em Museologia e Patrimônio, UNIRIO/MAST, Rio de Janeiro, 2022: 237p.

MORAES, Julia. Entretecendo conceitos, mirando o horizonte da participação: musealização, comunicação e públicos. In: Museologia & Interdisciplinaridade, Vol. 9, Especial/ Dez de 2020, p. 144-160.

MUSEU DO FUTEBOL. Visibilidade para o Futebol Feminino. Exposição virutal. Outubro de 2015. Disponível em: https://museudofutebol.org.br/exposicoes/visibilidade-para-o-futebol-feminino/ . Acesso em agosto de 2023.

PERROT, Michelle. Práticas da Memória Feminina. In: Revista Traverse nº 40 (Théâtres de la Mémoire), 1989. p. 18 – 27. 

PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: Fundação Editora da Universidade Estadual Paulista, 1998. 160 p.

SOARES, Bruno Brulon. Descolonizar o pensamento museológico: reintegrando a matéria para re-pensar os museus. In: Anais do Museu Paulista, São Paulo, Nova Série, vol. 28, 2020, p. 1-30.

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Sibelle Barbosa da Silva

Museóloga formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Mestra Programa de Pós Graduação em Museologia e Patrimônio (UFRGS). Atualmente é Museóloga do Museu do Grêmio - Hermínio Bittencourt aonde desenvolve a gestão do acervo tridimensional, a curadoria de exposições e projetos de ação educativa. Possui interesse na área de: Patrimônio Cultural Esportivo, Museus de Clubes de Futebol, Democratização do Espaço do Futebol e Futebol de Mulheres.

Como citar

SILVA, Sibelle Barbosa da. Mulheres visibilizam mulheres: a presença do futebol de mulheres no Museu do Grêmio – Hermínio Bittencourt (RS). Ludopédio, São Paulo, v. 171, n. 13, 2023.
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