158.30

Munique’72: os jogos olímpicos por um anuário alemão de época

Wagner Xavier de Camargo 28 de agosto de 2022

Numa das recentes arrumações no pequeno quarto de minha casa que chamo de biblioteca encontro, totalmente ao acaso, um anuário sobre os Jogos Olímpicos de Munique, encoberto por uma pilha de outros livros. Esses Jogos ocorreram entre 26 de agosto e 11 de setembro de 1972, há exatos cinquenta anos, ainda no século XX e dois anos antes de meu próprio nascimento.

Pouca gente sabe, mas a competição foi realizada em outra cidade além de Munique. Kiel, no norte germânico, foi a sede das provas de vela, que necessitavam do mar e de vento para ocorrerem. A grande maioria dos esportes aconteceu em Munique, sudeste da Alemanha.

O livro grosso e empoeirado me chama atenção por ter vindo junto com outras obras que trouxe da Alemanha, onde morei por alguns anos. Nem me lembrava dele, na verdade. Curioso foi folhá-lo justamente neste cinquentenário que completam os Jogos e perceber que o mundo do esporte está bem diferente do que era naquela época.

Ele tem uma capa rígida azul clara, com as argolas olímpicas e os símbolos dos Jogos grafados em prata e os nomes das cidades-sede (München/Kiel) na parte inferior. No início do compêndio há várias fotos (exclusivas da então empresa Kodak), coloridas e de diferentes tamanhos, com registros folclóricos do que se imagina ser característico da cultura alemã.

Munique
Fonte: Arquivo pessoal

Ainda nas primeiras páginas há o anúncio de que se trata de uma obra financiada graças ao “esforço e alegrias do ideal olímpico”, dos membros da Sociedade Olímpica Alemã (Deutsche Olympische Gesellschaft – DOG), entidade criada no início dos anos 1950.

A obra tem 320 páginas e está basicamente dividida em duas partes. A primeira traz apreciações diversas de autores sobre a competição esportiva como um todo. Vários jornalistas esportivos registram suas impressões, bem como o fazem também ex-atletas, a exemplo de Martin Lauer, ex-corredor de 110 m com barreiras, que foi campeão olímpico do revezamento 4 x 100 m pela ex-Alemanha Ocidental, nos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960.

A segunda parte está alocada em aproximadamente 80 páginas, no final do livro, e é chamada de “Os Jogos em Números” (Die Spiele in Zahlen). Nela vários autores comentam as modalidades a partir dos índices, recordes, marcas auferidas, atletas favoritas(os) e desfechos. Curioso observar que os textos são escritos, na maioria esmagadora, por homens e há apenas três autoras mulheres.

Grandes destaques são dados às/aos atletas mais rápidos do mundo naquele momento. Renate Stecher, da ex-Alemanha Oriental, foi a primeira mulher a fazer uma marca abaixo de 11 segundos nos 100 metros rasos e obteve duas medalhas de ouro (100 e 200 m) e uma de prata no revezamento.

E Valeriy Borzov, um atleta ucraniano que competiu pela então União Soviética, considerado um dos melhores velocistas europeus dos anos 1970. Ele ganhou ouro nos 100 m (com 10”07) e o 200 m (com 20”00) em Munique-1972.

Mas a estrela dos Jogos foi o nadador estadunidense Mark Spitz, que seguia o lema “nadar não é tudo, vencer é tudo”, segundo seu pai. Ele ganhou 7 medalhas de ouro em Munique, uma marca impressionante para qualquer atleta e um feito até hoje não equiparado.

As fotografias da Kodak são variadas e muito impressionantes. Há registros de atletas de outras etnias (principalmente negros), de jornalistas trabalhando, do público geral, de participações culturais e de provas de mulheres.

Munique
Fonte: Arquivo pessoal
Munique
Fonte: Arquivo pessoal

Aliás, depois de 52 anos de ausência em campeonatos olímpicos, a modalidade tiro com arco reaparece em Munique-1972, nas categorias masculina e feminina. O destaque é das mulheres: uma dona de casa (Dorren Wilber, de 42 anos) foi a vencedora individual, seguida pela polonesa Irena Szydlowska (2º lugar) e pela soviética Emona Gaptchenko (3º lugar).

Munique
Fonte: Arquivo pessoal

Contudo, os Jogos de Munique ainda seriam lembrados pelo atentado realizado pelo grupo palestino Setembro Negro. Isso está registrado em várias páginas do compêndio sob o título “O trágico revés” (Die tragische Zäsur). Há autores que consideram que o chamado “terrorismo moderno”, iniciado com o assassinado do arquiduque Francisco Ferdinand e que foi estopim da Primeira Guerra Mundial, intensificou a partir deste evento de 1972.

Os palestinos tomaram de assalto o alojamento israelense. Neste ato, dois judeus que reagiram foram mortos à bala. Nove atletas foram feitos reféns e a exigência do grupo era que 234 guerrilheiros presos em Israel fossem libertados.

Como o governo de Israel não aceitou a proposta, sequestradores e reféns então seguiriam para a base aérea de Fürstenfelbruck, de onde um avião os levaria a Líbia ou Tunísia. Foi nessa base que verdadeiro massacre ocorreu, pois a polícia abriu fogo contra os sequestradores, que por sua vez também detonaram granadas. O resultado foi uma tragédia inimaginável no meio de um evento esportivo: nove atletas (mais dois do alojamento), cinco sequestradores e dois policiais mortos.

O polêmico presidente do COI, Avery Brundage, que já acumulava protestos contra seu nome (segundo o jornalista Fábio Piperno, 2016), realizou uma cerimônia fúnebre no dia seguinte e disse que os jogos deveriam continuar (‘the games must go on’).

Uma surpresa foi ter encontrado este livro com todos esses fatos e algumas reviravoltas na história do esporte. É sempre bom revisitar documentos antigos, particularmente porque nos oferecem a chance de olhar melhor para acontecimentos do passado.

Para quem se interessar:

Deutsche Olympische Gesellschaft – DOG. Disponível em <https://dog-bewegt.de/>

Die Spiele der XX. Olympiade München-Kiel 1972. Sttutgart: Olympischer Sport-Verlag, 1972.

Munique (filme). Direção Steven Spielberg. Ano 2006.

PIPERNO, Fábio. Jogadas políticas no esporte. São Paulo: SESI editora, 2016.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Munique’72: os jogos olímpicos por um anuário alemão de época. Ludopédio, São Paulo, v. 158, n. 30, 2022.
Leia também:
  • 173.17

    Neoliberalismo, esporte e elitismo descarado

    Gabriela Seta Alvarenga
  • 150.4

    Breaking, b-boy Perninha e Olimpíadas de 2024

    Gabriela Alvarenga
  • 148.26

    A história centenária do Vasco em Jogos Olímpicos (1920 – 2021) – Parte 4

    Gustavo Dias