104.20

Não fala assim do meu guri

Leandro Marçal 20 de fevereiro de 2018

Me segura, me segura. Tô descontrolado. Não respondo por mim, ninguém fala assim do meu guri. Só eu posso. Aliás, nem eu posso.

Vim pra arquibancada vê-lo ser titular, o 10, o craque, o cara. Briguei e fiz até abaixo-assinado pra derrubar o treinador que ousasse não colocá-lo em campo logo de cara.

É seu direito ser o melhor em campo. A obrigação de vocês é reverenciá-lo o tempo todo. Mesmo quando ele dá uma canelada no zagueiro, xinga a torcida e é expulso por dar uma cotovelada no brucutu marcador. E nem foi culpa dele: na verdade ele recebeu uma bocada no cotovelo, é só olhar o replay.

Gente, pelo amor de Deus. Ele é só um menino, uma criança. Quem nunca aprontou nessa idade? Vai me dizer que algum de vocês é santo? Façam-me o favor!

Meu guri é o melhor do mundo desde os 9 anos. Tá me ouvindo? Ele é o melhor de toda a história da galáxia desde sempre. Nunca errou, nem vai errar, qualquer crítico de qualidade sabe isso.

Crítico de verdade, não esses caçadores de carniça torcendo contra. Porque basta um pouquinho de sucesso pra vir um bando de invejosos. É obrigação do mundo lamber sua chuteira, aprovar tudo o que ele faz, curtir e comentar e compartilhar e noticiar suas fotos no Instagram. Meu guri pode tudo, oras. Pensam que é fácil chegar onde ele chegou?

guri
Deixem o meu guri! Foto: Rogerio Bromfman (CC BY-NC-SA 2.0).

Ai de quem não aplaudir suas risadinhas sem graça e amarelas nas entrevistas. Qual o problema de não falar nada de interessante com os microfones entulhados à sua frente? Meu guri vende muito, seu extracampo rende muitos cliques nos portais de fofocas. O resto é balela dessa imprensa que só sabe falar mal.

Tão pensando o quê? Só falta exigir discernimento, senso crítico, ouvir opiniões contrárias, declarar impostos corretamente como um cidadão comum… Dá licença, meu guri é o reizinho do mundo, pode tudo.

Não vou admitir uma única palavra contrária. Na dúvida, coloco meus milhões à disposição dos melhores advogados, pressiono chefes, vou pra mídia, grito, berro, chamo o papa. Porque odeio quem contrarie meu guri, odeio mesmo.

Sou eu quem falo, deixa ele jogar videogame enquanto essa polêmica não passa. Aliás, o guri é meu e de mais ninguém. Meu menino, minha criança, meu bibelô. Tudo que sai de sua boca foi exaustivamente treinado, mas ele não é um robô.

Poxa, vamos ter compreensão. Meu guri tem sentimentos, é frágil, passa por tantos problemas. Sabem como é ter dúvidas na hora de escolher um iate novo, um carrão do ano, contar números com mais de seis dígitos? Empatia, vocês precisam ter um pouquinho de empatia.

Me segura, me segura! E não me solta, pra eu dar meu show e repercutir, desviar o foco. Claro que não vou brigar, esses dois seguranças brutamontes tão aqui pra isso. Mas, me segura, vai me segura!

E tenho dito.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Não fala assim do meu guri. Ludopédio, São Paulo, v. 104, n. 20, 2018.
Leia também:
  • 154.1

    O clássico (da vez) da imprensa clubista

    Leandro Marçal
  • 135.69

    Donos da banca

    Leandro Marçal
  • 135.54

    Deixem o Cleber em paz

    Leandro Marçal