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“Não vai entrar, não! Volta!”: torcedores de futebol, cidade e (anti)fascismo

No último domingo de fevereiro de 2024, segmentos antifascistas das torcidas de futebol voltaram a despertar a atenção pública. Circularam nas redes sociais digitais e em alguns veículos de comunicação (principalmente de esquerda) vídeos de corintianos e santistas que se deslocavam em direção à Itaquera e ao Morumbi e que, no caminho, encontraram (e enfrentaram) apoiadores de Jair Bolsonaro, que participariam (ou haviam participado) de uma grande manifestação na Avenida Paulista, que reuniu em torno de 185 mil pessoas em apoio ao ex-presidente. Em uma dessas cenas, registrada no metrô Itaquera, próxima ao estádio corintiano, membros dos Gaviões da Fiel, maior organizada corintiana, bloquearam a porta de um dos vagões aos gritos de “Não vai entrar, não! Volta!”, a fim de impedir a entrada dos bolsonaristas.

Gaviões da Fiel
Fonte: Reprodução/Redes sociais

Esse episódio nos remete a dois outros, que também ganharam os noticiários tempos atrás. O primeiro ficou conhecido como “A primavera das torcidas antifascistas”, ocorrida em março e junho de 2020, quando o Brasil enfrentava o auge da epidemia de Covid-19 e assistia, semanalmente, a manifestações antidemocráticas nas ruas do país, que reivindicavam pautas como a volta do regime militar (1964-1985). Naquele momento, membros de torcidas organizadas e de coletivos ativistas de torcedores saíram às ruas do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte, de Brasília e, principalmente, de São Paulo para enfrentar a extrema direita.

O segundo episódio ficou conhecido como os “desbloqueios das estradas”. Inconformados com a derrota de Bolsonaro para Luís Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2022, em tal episódio, militantes bolsonaristas resolveram fechar várias rodovias brasileiras. Assim, diante da inércia das autoridades policiais em desobstruí-las e do caos instalado, torcedores organizados de clubes como o Corinthians, o Atlético-MG e o Coritiba enfrentaram esses militantes, desbloqueando as estradas com as “próprias mãos” e seguindo viagem para acompanhar seus clubes no Campeonato Brasileiro daquele ano.

Gaviões da Fiel
Fonte: Reprodução/Twitter

Certamente, esses episódios contribuem para desfazer o mito de que futebol e política não se misturam, além de ajudar a desconstruir o discurso de que o futebol pode ser interpretado como uma variante do “ópio do povo”. Mais exatamente, indicam que, em contextos específicos, ele pode estar a serviço da luta antifascista. No contexto sob análise, pode-se afirmar que os torcedores de futebol serviram a essa luta de três maneiras, a saber.

 Em primeiro lugar, mostrando seu rechaço a um governo que pode ser caracterizado como neofascista. Embora essa caracterização seja polêmica, penso, seguindo as reflexões de Löwy (2020), que ela é adequada, pois tal governo possui pontos de contato com o fascismo clássico dos anos 1930. Esses pontos, no entanto, não devem nos cegar para suas diferenças em relação a ele, assim como para suas diferenças em relação a outros governos e movimentos neofascistas. Por exemplo, diferentemente do neofascismo europeu, o governo bolsonarista não estabeleceu uma conexão direta com as organizações nazifascistas tradicionais, mas, sim, com igrejas neopentecostais ultrarreacionárias. Ademais, adotou um plano econômico neoliberal, ao invés de denunciar a globalização econômica e seus efeitos. Outra diferença é que ele não fez do racismo sua principal bandeira, mas a (suposta) luta contra a corrupção e o ódio contra a esquerda. Em comum com a extrema direita europeia, podemos dizer que cultuou a violência policial e adotou um discurso de intolerância contra as minorias sexuais.

Em segundo lugar, criando obstáculos para a manifestação (pública) da extrema direita. Aqui, é preciso recordar que, historicamente, os movimentos antifascistas têm optado pela ação direta, empregando as mais diversas estratégias para silenciar os indivíduos e as organizações nazifascistas. Entre outras práticas, eles têm buscado infiltrar-se nessas organizações para semear a discórdia, impedir fisicamente suas manifestações, abafar os discursos de suas lideranças e destruir suas pretensões de anonimato (BRAY, 2017). Talvez, a principal diferença dos torcedores analisados em relação a esses movimentos seja o fato de que a maior parte deles não tenha optado pelo anonimato – nos vídeos que circularam na internet, é possível identificar seus rostos, por exemplo. De qualquer modo, a opção pela ação direta indica que, assim como a militância antifascista, eles desconfiam da capacidade das instituições governamentais da democracia parlamentar de controlar a violência da extrema direita. Também indica que suspeitam que o debate racional de ideias não seja tão útil assim para neutralizar as ideias fascistas.

Em terceiro lugar, desafiando a lógica capitalista de apropriação do espaço urbano, que o reduz a uma mera mercadoria – recordemos, aqui, que, hoje em dia, até os nomes das estações de metrô possuem valor de troca (naming rights). Desafio que é ensejado pelo próprio significado de se manifestar politicamente em espaços que não são projetados para isso, mas para que o capital possa se valorizar e se multiplicar. Mas por que esse desafio pode ser lido como uma prática antifascista? Porque, seguindo o que defendem, há décadas, os teóricos marxistas e anarquistas, considero que, se quiser atacar as raízes profundas do fascismo, a luta antifascista não pode se desvincular da luta anticapitalista. Afinal, a história nos ensina que, sempre que sentirem que seus interesses e privilégios estão ameaçados, os donos do poder (ou, mais exatamente, do capital) irão recorrer e apoiar regimes autoritários com características fascistas, ainda que, eventualmente, a contragosto.

Referências

 BRAY, Mark. Antifa: el manual antifascista. Madrid: Capitán Swing, 2017.

LÖWY, Michael. “Extrema direita e neofascismo: um fenômeno planetário: o caso Bolsonaro”. In: FARIA, Fabiano Godinho; MARQUES, Mauro Luiz Barbosa (Orgs.). Giros à direita: análises e perspectivas sobre o campo libelo-conservador. Sobral: Sertão Cult, 2020, p. 13-19.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Felipe Tavares Paes Lopes

Graduado em Comunicação Social (ESPM) e em Filosofia (USP). Mestre (PUC-SP) e doutor (USP) em Psicologia Social. Pós-doutor em Sociologia do Esporte (Unicamp). Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Uniso e pós-dourando no CPDOC-FGV. Realiza pesquisa sobre o movimento de resistência ao "futebol moderno" com auxilio da Fapesp.

Como citar

LOPES, Felipe Tavares Paes. “Não vai entrar, não! Volta!”: torcedores de futebol, cidade e (anti)fascismo. Ludopédio, São Paulo, v. 177, n. 13, 2024.
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