149.19

Nossos passos vieram de longe

Natália Silva 16 de novembro de 2021

Se tem uma coisa que une o brasileiro, é a satisfação em dizer o quanto somos diferenciados. Sambamos, cantamos, jogamos futebol como nenhum outro povo. Popularmente, dizem que é o tal do gingado que fez o Brasil se tornar o país do futebol. Ao mesmo tempo tem toda aquela história, com raízes “levemente” racistas, de que possuímos um complexo de vira-lata, uma falta de autoestima nacional definida por Nelson Rodrigues (1993), um negócio de que na hora da decisão o brasileiro tende a falhar porque nos achamos inferiores aos adversários. Parece contraditório, não é? Mas deixa de ser quando pensamos em quais situações a chave do discurso vira.

Quando o Palmeiras perdeu para o Al Ahly, do Egito, na disputa do terceiro lugar, no Mundial de Clubes 2020, a internet ficou em polvorosa no Brasil, achando aquilo um absurdo. Como pode o campeão da Libertadores da América perder para o vencedor da Liga dos Campeões da África? Foi o que muitos questionaram, embasados em argumentos que demonstravam tanto conhecimento sobre os países africanos, quanto o que foi demonstrado pelo ex-governador do Ceará, Ciro Gomes, ao dizer que o Brasil não pode ser comparado a um país africano que seria “desorganizado, com bases tribais, com geografia de deserto”. Ele não especificou qual país africano seria esse, mas com certeza as duas situações geram um retrato claro do quanto há racismo e xenofobia em uma população que, em boa parte do tempo, trata a África como um país e não como um continente com mais de 50 países. Ainda sobre o Al Ahly, um detalhe bem interessante sobre o time egípcio, é que ele é só o maior campeão da história da Liga dos Campeões da África.

Podemos debater sobre o alto investimento do Palmeiras e sobre vários outros aspectos, mas considerar o time fraco por ser africano, tanto quanto considerar que a África é um grande deserto, é só racismo e xenofobia, mesmo. Não reclame, melhore. Um dia desses, vi um meme com um exercício bem interessante: pare agora e cite 10 países do continente africano. Conseguiu? Se não, a situação é ainda pior. De todo modo, você sempre pode acompanhar o Ponta de Lança e não ser pego desprevenido, ao não saber nada que relacione futebol e África, e acabar falando merda.

Por outro lado, quando o assunto é Europa, chega a (quase) me dar diabetes por conta do mel que escorre da boca de alguns comentaristas esportivos. Sério, pelo que falam, aquele lugar é Nárnia. Em situações completamente aleatórias, surge um: se fosse no Brasil seria assim, no Brasil seria assado. O Brasil tá longe de ser um lugar perfeito, mas pera lá, não é como se times europeus não vivessem aqui bebendo do nosso futebol. Assistindo a alguns jogos de competições da Europa, parece que por lá não existem problemas, nada de erros de arbitragem, nenhum jogador simulou uma única falta na vida, dirigentes corruptos? jamais, o fair play financeiro é que o diga. Risos. Tem, também, aquele negócio de que todas as partidas, de todas as competições europeias, são mais emocionantes e competitivas. Falam mal de um Brasil versus Bolívia, como se na Europa não tivessem um França versus Cazaquistão. Quer falar mal? Tem muitos motivos. Mas use argumentos plausíveis porque se não fica parecendo, realmente, um complexo de vira-latas na sua interpretação mais superficial.

Falando na Europa, nos últimos dias uma coisa que apareceu bastante na minha bolha do twitter, foi comentários  a respeito de uma reportagem do jornal português Diário de Notícias, sobre crianças portuguesas estarem falando brasileiro por assistirem muitos vídeos de youtubers do Brasil. Nos posts e debates de qual seria a verdadeira língua portuguesa, sobrou um suco de xenofobia acompanhado de publicações sobre como modificamos tudo que chegou por aqui. Xenofobia à parte, a gente modificou mesmo. 

Lélia Gonzalez (2020) diz ser uma resistência passiva. Isto porque além das diversas revoltas e rebeliões, os negros trazidos da África e escravizados pela colonização portuguesa, se organizaram em outras formas de luta. Passando sua cultura e seus conhecimentos ancestrais para os que nasciam aqui como uma forma de resistência. Além disso, boa parte das crianças brancas também eram criadas pelas figuras das mães pretas, como, aliás, ainda é comum nos dias atuais. E aqui eu só não uso o “maioria” por falta de dados científicos, registrados, porque saber a gente sabe a cor e a classe da maioria das babás brasileiras antes e depois da escravidão institucionalizada. Essas mães pretas ensinavam seus filhos e os filhos das sinhás a falarem um português cheio de influências africanas. O que alguns portugueses chamam de dialeto brasileiro, Lélia Gonzalez (2020) chamou de Pretuguês.

“Conscientemente ou não, passaram para o brasileiro “branco” as categorias das culturas africanas de que eram representantes. Mais precisamente, coube à mãe preta, enquanto sujeito suposto saber, a africanização do português falado no Brasil (o “pretuguês”, como dizem os africanos lusófonos) e, consequentemente, a própria africanização da cultura brasileira.” (GONZALEZ, 2020, p. 54)

A influência e importância da cultura africana no que se transformou na cultura brasileira é inquestionável, em diversas frentes, como na música, na cultura, nos modo de preparar os alimentos, no modo de encarar futebol. Mas a branquitude do país parece não entender, vide o debate infrutífero em torno do acarajé que Wagner Moura comeu no acampamento MST. A outra hipótese é mau caratismo, mesmo. Deixo para você definir.

Gondwana F&C
Foto: Gondwana F&C/Divulgação

“A cultura brasileira de uma maneira geral bebeu muito sobre aquilo que é a África na sua essência, do seu povo, dos seus ritos, dos seus mitos”, ressalta o Guineense Vensam Yala, idealizador de Visto África e um dos participantes do curta-metragem Gondwana – A Bola Conecta. O filme, que busca retratar as conexões entre as culturas africanas e a brasileira, foi produzido pelo olhar da jornalista e fotógrafa brasileira, Mônica da Silva, e do empreendedor e facilitador esportivo chileno Sebastián Acevedo. O curta é uma produção independente, de 23 minutos, gravado de câmera celular e profissional, com edição e montagem do documentarista Cristiano Fukuyama. 

Segundo Mônica da Silva, Gondwana – A Bola Conecta

“nasce para contar a história da África no Brasil, através da temática futebol. E por que esse esporte? Porque no Brasil está em todos os lugares, está inserido na cultura, é só repararmos em nosso cotidiano. Nos vídeos apresentamos relatos de vida, arte, música, gastronomia, sociedade e o futebol como tema central. O objetivo é chegar na área da educação, mostrar para crianças e adolescentes conteúdos da nossa história através de algo que tanto gostam, jogar com a bola.”

Gondwana F&C
Foto: Gondwana F&C/Divulgação

Os produtores se conheceram na cidade de São Paulo, no Museu do Futebol e descobriram um sonho em comum: viajar pelo mundo usando o poder transformador da bola e a magia da câmera para conhecer, integrar e empoderar culturas. Por isso planejaram, por mais de um ano, um projeto que servirá de ponto de partida para converter seus conteúdos em uma série a partir de 2022.

Sebastián não é brasileiro e sabe muito bem o potencial agregador que tem o futebol:

“Foi a minha primeira vez na Bahia e Pernambuco. E como chileno, percebi o quanto a bola nos aproxima sem falarmos o mesmo idioma. Joguei com diversas pessoas muito talentosas, nas quadras, nas ruas, de pés descalços nas praias e campos de terra. Foi então que eu percebi o que faz do futebol brasileiro ser tão único, é por conta dessa mistura cultural”.

Gondwana F&C
Foto: Gondwana F&C/Divulgação

A equipe Gondwana F&C está em busca de apoiadores, parceiros e patrocinadores para que possam avançar com o projeto e gerar impacto social, econômico e cultural. Entre os objetivos, fazer um fotolivro, produzir uma Série no Brasil em 2022 e na sequência por países da América Latina e África. Além de oferecerem oficinas de fotos e futebol que permitam desenvolver pensamento crítico e outras habilidades. O curta-metragem “Gondwana, A Bola Conecta” estreia no dia 20 de novembro, às 20h, no canal do Youtube Gondwana F&C (Futebol e Cultura). A exibição ficará mais três dias no ar, 21, 27 e 28/11 como mais um ato cultural e histórico ao Mês da Consciência Negra. A Revista Gambiarra, onde sou editora de Esporte, também transmitirá o curta nos dois últimos dias de exibição. 

A título de informação, Gondwana foi um supercontinente que existiu ao sul da linha do Equador, por volta de 200 milhões de anos, durante o período triássico, que inclua a junção de terras dos atuais continentes da Antártida, América do Sul, África, Índia, Austrália, Nova Zelândia, Madagascar, Nova Guiné, Nova Caledônia, além das Ilhas Seicheles.

Gondwana F&C
Foto: Gondwana F&C/Divulgação

É importante sempre lembrar que, antes de dizer o que não se sabe sobre a África, é melhor pesquisar. Como eu disse anteriormente, siga o Ponta de Lança (@pontalancapdl), apoie o trabalho da galera, e conheça bastante sobre o futebol africano. É meio constrangedor, em pleno século XIX, ficar ouvindo/lendo as frases feitas, racistas e xenofóbicas que insistem em repetir por aí e chamarem de informação. No mais, aproveite para seguir o @gondwana.fc, a @revistagambiarra e, claro, o @coletivoreneme. Não custa nada e você apoia um monte de projeto legal. 

Consciência negra é mais que uma data ou mês do ano, é mais do que um punho cerrado, e é mais, muito mais, do que se dizer antirracista e aliado dos negros. É entender de quão longe vieram os nossos passos, por quais estradas nós e os nossos antepassados tiveram que caminhar, é perceber o quanto de nossa cultura  você chama de sua, mesmo quando nega o quão rico o continente africano é e o quanto de África o Brasil possui. 

* Natália Silva com informações de Godwana F&C

Gondwana F&C
Foto: Gondwana F&C/Divulgação

Referências

GOMES, Ciro. O Brasil é o país que mais produz comida no mundo. O que justifica tanta gente passando fome na rua?. Fortaleza, 13 de novembro de 2021. Twitter: @cirogomes. 

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. 375 p.

LUZ, Paula Sofia. “Há crianças portuguesas que só falam ‘brasileiro'”. Diário de Notícias, 2021. Disponível em: . Acesso em: 14 de novembro de 2021.

RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 220 p.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Natália Silva

Jornalista, é doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal), estudando o jornalismo esportivo e a interseccionalidade raça-gênero, através da história oral de jornalistas negras. É membro do grupo de pesquisa Jornalismo Esportivo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Rede Nordestina de Estudos em Mídias e Esportes (ReNEme). Idealizou e produziu o projeto A Negra no Futebol Brasileiro, que fez parte das ações globais Black Lives Matter Football, #FootballPeople e Football v Homophobia, da Fare Network (Inglaterra). Atualmente, é parte do programa Mudjeris di li i di lá (programa de intercâmbio Brasil - Cabo Verde).

Como citar

SILVA, Natália. Nossos passos vieram de longe. Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 19, 2021.
Leia também:
  • 178.17

    Onde estão os negros no futebol brasileiro?

    Ana Beatriz Santos da Silva
  • 178.15

    Racismo no Futebol: o golaço do combate ao racismo pode partir do futebol

    Camila Valente de Souza
  • 178.14

    Racismo: Vinícius Jr. e a nova fronteira do preconceito no esporte

    José Paulo Florenzano