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Notas sobre o futebol amador em Buenos Aires

Raphael Rajão Ribeiro 8 de janeiro de 2019

A várzea, em muitos momentos, é tratada como espaço mítico do futebol brasileiro, local de constituição do autêntico estilo nacional de jogo e de descoberta dos jogadores agraciados pelo dom. Em que pese o fascínio que esse circuito esportivo desperta, são poucos os consumidores do futebol espetacularizado que têm contato direto com a prática e compreendem de que forma ela se desenvolve nos dias atuais. Assim como nós, brasileiros, os argentinos tem seu “celeiro de craques”, o “potrero”, espaço onde talentos como Diego Maradona teriam se forjado.

Se, no Brasil, desconhecemos a organização do jogo em seu formato varzeano, o que dizer das configurações que essa prática assume em outras nações do mundo? Ainda que estejamos falando de países vizinhos, são poucas as informações e as oportunidades de acesso às maneiras como outros futebóis se desenvolvem pela América Latina.

Aqui, pretende-se apresentar algumas notas sobre o “fútbol de potrero” na capital argentina Buenos Aires, fruto de leituras sobre o tema e de visita, realizada em novembro de 2018, a um dos espaços onde essa prática se desenvolve. Uma forma de compartilhar o pouco ao que temos acesso sobre o desenvolvimento de outros futebóis no país vizinho.

Basta um breve panorama digital, a partir de imagens de satélite, sobre a grande Buenos Aires para percebermos como a configuração espacial do futebol na capital argentina é bem diversa da que observamos nas cidades brasileiras. Talvez o que num primeiro momento chame nossa atenção é o grande número de estádios daquela que é considerada a primeira no mundo em quantidade desses equipamentos esportivos. São 36 estádios para mais de 10.000 espectadores.

Por outro lado, a ausência de campos gramados ou de terra, destituídos de uma estrutura mais robusta de arquibancadas, nossos chamados campos de várzea, surpreenderá aqueles que estão acostumados a essa presença, facilmente notada, em iguais panoramas sobre algumas grandes cidades brasileiras. Os mais insistentes identificarão, finalmente, grandes complexos de campos em bairros como Flores ou Parque Avellaneda, ou ainda em municípios vizinhos, a exemplo de Lomas de Zamora. A ocorrência desses espaços articula-se com a trajetória da conformação urbana de Buenos Aires e orienta a maneira como a prática se organiza ali.

Campos do Independiente e Racing, clubes que fazem o “clássico de Avellaneda”. Foto: Roger Schultz.

Um pouco da dinâmica de conformação desses campos e das comunidades que os cercam foi investigada pelo historiador Jorge Ossona que, no livro “Punteros, Malandras y Porongas”[1], examina a constituição de comunidades na periferia da capital argentina, em Campo Unamuno, na divisa com os municípios de Lomas de Zamora e Lanús, entre as décadas de 1980 e 2000. Mesclando história oral e etnografia, ele reconstitui uma intrincada rede que se configurou ao longo de mais de vinte anos para a ocupação de áreas antes pertencentes a um aterro. Nesse processo, o futebol amador, também chamado “fútbol de potrero”, ocupa espaço importante de afirmação de prestígios comunitários, mediação de conflitos locais e estabelecimento de relações políticas com dirigentes locais.

O caso do “Club Los Gauchitos”, investigado por Ossona, é revelador das formas como esses complexos esportivos foram conquistados pelas comunidades locais, assim como dos conflitos envolvidos na sua manutenção. Impulsionados pelo fenômeno “Maradona”, que fora revelado em uma “villa” próxima, futebolistas locais se mobilizaram para, em meio ao processo de ocupação da região, garantir espaços de jogos vinculados à agremiação. Em seu estudo, o historiador ajuda a elucidar as formas básicas de organização do futebol amador na capital argentina.

Muito do que é narrado por Jorge Ossona pôde ser notado em breve incursão que realizei por outro complexo de campos, dessa vez no bairro de Flores. Em companhia do antropólogo Francisco Farina – que atualmente investiga as ligas bolivianas de futebol na cidade de Belén de Escobar, parte da Grande Buenos Aires – estive no Club Pintita, que abriga quatro espaços de jogo.

A região de Flores, até o final do século XIX, compunha a área rural da capital argentina. Uma parte de suas terras foi, na primeira metade do século XX, utilizada como aterro, a exemplo com o que se passou em Campo Unamuno. Com a desativação do depositório de resíduos, o espaço se converteu em área de parques e, aos poucos, foi sendo adquirida por clubes esportivos para sediar suas instalações. O Club Pintita foi fundado em 1957 e, desde então, estaria no local, que hoje lhe pertence.

Vista da região de Flores, onde se concentram vários complexos de campos, em destaque o Club Pintita, com quatro canchas. Fonte: Google Earth.

Dividindo o muro com as instalações do Pintita está o complexo “La Quemita” pertencente ao Huracan. Um complexo mais vasto, onde acontecem partidas de suas categorias de base. Em frente, do outro lado da rua, mais um complexo de campos que, segundo informantes, é de propriedade de um grupo de japoneses e que tem pouca abertura para equipes locais. Na ocasião de nossa visita, aconteciam ali apenas partidas de categorias de base.

O complexo do Club Pintita está situado em uma área cercada de um lado por uma “Villa”, como se denominam as ocupações irregulares semelhantes às nossas favelas e de outro por um bairro residencial, de classe baixa. A periferia de Buenos Aires é cortada por diversas pistas de trânsito rápido e elevados, um cenário pouco convidativo para a circulação a pé.

Apesar do cenário de degradação no entorno, o complexo tem um aspecto bem cuidado. Seus campos são predominantemente cobertos por grama natural. Mesmo com o intenso uso no final de semana, mantêm boa condição, o que pressupõe medidas de conservação, como irrigação, promovida pelo clube mantenedor. A mesma coisa em relação às instalações. Mesmo com diversos campos, o local possui um conjunto de vestiários e um bar – chamado “Buffet” – , compartilhado entre os diversos campos de jogo. Todos os espaços tinham as cores branca e verde, que identificam o Club Pintita.

“Buffet” do complexo de campos do Club Pintita. Foto: Raphael Rajão.

Mais ao fundo, um campo melhor, mais apartado dos demais se conectava ao ginásio e à sede da agremiação. Ali ocorria outra partida. Ao que parece, uma estratégia do Pintita para desvincular suas áreas sociais dos campos de aluguel e da infraestrutura que dá suporte a esses últimos.

Entrada de área social do Club Pintita. Foto: Raphael Rajão.

A concentração de todos os campos por uma única agremiação é uma diferença perceptível em relação ao caso brasileiro, onde o mais comum é que cada time varzeano tenha apenas um campo vinculado a ele. Em caso de complexos, com várias canchas, a tendência é que cada qual tenha seu vestiário próprio, às vezes, um bar específico, com a identificação das cores próprias da entidade responsável.

Seja no complexo do Club Pintita, seja nos campos em frente, que visitamos rapidamente, observa-se a cobrança de taxa de estacionamento. Essa parece ser destinada ao custeio da locação do lugar, já que era cobrada por pessoa que respondia aos organizadores das partidas, não estando identificada como funcionária do Club Pintita.

Minha visita ocorreu em um domingo. Cheguei ainda de manhã ao complexo, pelo qual ingressei por um portão auxiliar, situado no muro lateral que cerca os campos. Ao perguntarmos alguns jogadores que também seguiam para o lugar, a informação que tivemos é que ali ocorreriam partidas da “Liga Salteña”. Nenhuma referência ao Club Pintita, que nesse caso é meramente o mantenedor do espaço que é alugado pelas ligas que organizam o futebol amador na cidade.

Sem inserção no circuito profissional de futebol, o Pintita subloca os campos de seu complexo. Conforme informantes locais, ali, durante a semana, treina a equipe do “All Boys”, que integra a 1ª B Metropolitana, que equivale à terceira divisão do campeonato argentino. Aos sábados pela manhã, os espaços são tomados pela disputa da liga judiciária, formada por equipes de advogados. Aos sábados à tarde e domingos, acontecem as partidas da Liga conhecida como “do Osvaldo”, aquela que os jogadores que chegavam denominaram “Salteña”.

Algo que se destaca em relação à organização do futebol varzeano no Brasil é a restrição geográfica das ligas. No caso de Buenos Aires, essas se concentram em um mesmo complexo, com calendário extenso, que toma quase todo o ano. A liga “do Osvaldo”, por exemplo, possui várias divisões, com equipes vindas de diversas partes da cidade, que participam do torneio ali por todo um ano. Seu melhor ou pior desempenho permite que ascenda ou desça de divisão a cada ano. O mesmo pode ser visto em outras ligas que se desenvolvem em complexos diferentes daquela mesma região, a exemplo da Liga de Futebol Amador de Flores.

Como são torneios organizados por indivíduos autônomos, essas ligas não pressupõem formalização, inclusive das equipes que não se organizam a partir de clubes. Nessa medida, há uma reconfiguração constante dos participantes, em que pese o engajamento de times que há décadas atuam no local. Sua procedência é diversa, dada a concentração de campos naquela região, eles vêm dos mais diferentes bairros da capital argentina, não se restringindo ao entorno imediato.

As diversas ligas não se articulam, não havendo torneios interligas. Nessa medida, uma equipe vinculada a uma liga, permanece todo o ano jogando no mesmo complexo esportivo. Essa é uma diferença marcante em relação ao futebol varzeano brasileiro, em que os clubes têm mais circulação pela cidade, atuando em diversos campos ao longo do ano.

Os árbitros das partidas não são vinculados às estruturas oficiais, são recrutados entre ex-jogadores e outros frequentadores do lugar. Em nossa visita, dois deles nos serviram de informantes. Marcelo Messina, um ex-jogador profissional, com passagens por equipes da primeira divisão argentina, que atua como técnico em clubes menores ou de países periféricos do futebol sul-americano, apitava partidas como forma de ganhar um dinheiro extra até que voltasse a dirigir times profissionais.

Osvaldo, por sua vez, é funcionário do correio, antigo jogador de equipes que atuavam naquele complexo, bandeirava partidas, também auxiliando na organização das disputas, conforme previsto na tabela do torneio. Apoiava, dessa forma, seu homônimo, que se mantinha próximo aos vestiários, coordenando os jogos e as equipes vinculadas à sua liga.

Osvaldo atua como bandeira em uma das partidas. Foto: Raphael Rajão.

As equipes se revezavam em partidas que aconteciam em três campos do complexo, tudo coordenado e cronometrado por Osvaldo, o responsável pela Liga, que também fazia as vezes de mesário. A exemplo do que se vê no futebol varzeano, ao final da partida se dirigiam para o “buffet”, onde prosseguiam a interação, agora conversando sobre o lances do jogo, enquanto comiam e bebiam. Algumas mulheres e crianças faziam-se presentes, acompanhando os jogos. Frequentadores regulares também pareciam estar ali, acomodando-se nos poucos bancos em torno dos campos ou recostados nos carros estacionados no entorno.

Uma diferença marcante em relação ao futebol varzeano é a ausência de música durante as partidas. Seja pela reprodução mecânica feita a partir dos bares ou dos sons automotivos, seja pela execução de batucadas, a falta de uma trilha musical salta aos ouvidos dos frequentadores acostumados à atmosfera dos jogos amadores no Brasil.

Por fim, há que se dizer sobre a absorvência e a excitação proporcionadas pelas partidas. Na ocasião, acompanhamos jogos de uma fase intermediária das ligas. Sem sinalização, não compreendíamos bem quais partidas correspondiam a cada uma das divisões da Liga “do Osvaldo”. As equipes pareciam ser todas de adultos, ainda que contassem com alguns jovens, bem como alguns veteranos. Categoria que chamaríamos de “amador” em Belo Horizonte, ou “esporte” em São Paulo.

Um dos jogos contava com maior torcida, mais absorvida pelo jogo, algo como pouco mais de uma dezena de pessoas. Na maioria dos casos, esposas, namoradas e crianças conversavam e brincavam distraidamente em torno do campo. Frequentadores mais assíduos circulavam detendo-se, de tempos em tempos, em alguma das partidas, tecendo comentários sobre atletas ou relembrando histórias do passado.

Apesar do pouco interesse da assistência, os atletas pareciam estar fortemente engajados na disputa. Enquanto conversávamos com Osvaldo, o organizador da liga, presenciamos um conflito entre um dos atletas e o árbitro do jogo, algo que esquentou os ânimos e demandou a intervenção da equipe de juízes e do próprio organizador. Depois de alguns minutos de tensão, o clima aos poucos retomou a normalidade, em uma indicação de que tais embates faziam parte do cotidiano do lugar.

Ainda que breve, a oportunidade de conhecer o complexo do Club Pintita foi reveladora das diferentes possibilidades de organização do futebol em contextos autônomos. Fora das instâncias subordinadas ao sistema FIFA, a modalidade insere-se em uma imbricada cultura esportiva popular que ganha formas próprias de acordo com as realidades locais. Em que pese a paixão pelo jogo que une todas essas experiências, é notável perceber as nuances. Na condição de estrangeiro, incursões como essas dizem mais sobre os sentidos da prática para nós, desnaturalizando algumas relações que pressupomos óbvias e que banalizamos em nosso convívio cotidiano com o futebol de várzea.


[1] OSSONA, Jorge Luis. Punteros, malandras e porongas: ocupación de tierras y usos políticos de la pobreza. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2014.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Raphael Rajão

Autor de A bola, as ruas alinhadas e uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). Graduado e mestre em História pela UFMG. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Escola de Ciências Sociais FGV CPDOC. Atualmente pesquisa o futebol de várzea em Belo Horizonte.

Como citar

RIBEIRO, Raphael Rajão. Notas sobre o futebol amador em Buenos Aires. Ludopédio, São Paulo, v. 115, n. 6, 2019.
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