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Nova Caledônia: futebol e racismo também chegam à mais distante colônia francesa

Copa Além da Copa 14 de janeiro de 2021
Mapa histórico da Nova Caledónia. Imagem: Wikipédia

Pouco a pouco, a Nova Caledônia conquista um pequeno espaço no futebol internacional. Nas Eliminatórias para as Copas do Mundo de 2010 e 2014, foi a segunda colocada da Oceania. As categorias de base registram participações em torneios organizados pela FIFA, mesmo sem resultados expressivos.

Arquipélago no Pacífico a 1200 km da Austrália, a Nova Caledônia ainda pertence à França. Recentemente, alguns referendos sobre a independência foram realizados, mas as votações favoreceram a continuidade francesa.

Como tanto acontece com todas as colônias e ex-colônias francesas, a Nova Caledônia é terra de um povo apaixonado por futebol e que fomenta a metrópole. Mesmo tão distante de Paris, já revelou atletas que chegaram a defender a camisa dos Les Bleus em Copas do Mundo.

Esse texto é um complemento ao podcast Copa Além da Copa de janeiro que tem como tema a relação da França com suas colônias e o esporte. Para ouvi-lo, basta clicar aqui.

Colonização tardia

A Nova Caledônia foi assim batizada por James Cook, explorador britânico que viu no arquipélago semelhanças com a Escócia (Caledônia é como é chamada a porção norte da Bretanha). Só mais tarde, sob comando de Napoleão III, a França tomou posse da região.

Com a descoberta do níquel em 1864, a França passou a enviar habitantes da metrópole para o trabalho de mineração no arquipélago. Excluídos da atividade, os nativos produziram violentas revoltas. A violência francesa e doenças como a catapora e a varíola fizeram com que a população nativa já estivesse reduzida a menos da metade de seus números originais no início do século XX.

Foi só em 1953 que a cidadania francesa foi garantida a todos os habitantes da Nova Caledônia, independente da etnia. Ainda assim, as revoltas locais continuaram.

Uma população dividida sobre a independência

Os Kanak, principal povo nativo da Nova Caledônia, sempre foram ferrenhos apoiadores da independência. Na segunda metade do século XX, houve vários conflitos armados, com os mais graves acontecendo em 1987 e resultando em mortes dos dois lados.

É chamado de “o despertar Kanak” o crescimento do nacionalismo nativo na Nova Caledônia. Uma das principais causas apontadas para essa situação, além das péssimas condições de trabalho e da exclusão por anos dos direitos civis básicos, é justamente o fato de que alguns filhos de famílias nativas mais proeminentes passaram a ir estudar na França continental e, com acesso a uma maior educação sobre questões relacionadas ao colonialismo, voltaram radicalizados com suas opiniões pró-independência.

Em 1998, foram assinados os Acordos de Matignon, que tinham como principal ideia a transferência cada vez maior da autonomia do poder sobre a Nova Caledônia do presidente da França para um parlamento local. Após 20 anos, ou seja, em 2018, seria realizado um primeiro referendo sobre a possibilidade da independência definitiva do arquipélago.

Mesmo esses acordos não foram capazes de agradar aos Kanak, que viram nas condições necessárias para poder votar no plebiscito uma exclusão ao seu povo. Os números iniciais para a votação de 2018 apontavam 160 mil eleitores habilitados, mas os nativos diziam que cerca de 22 mil pessoas que deveriam ter o direito ao voto foram excluídas.

Esses 22 mil nativos excluídos da votação poderiam ter feito a diferença: O “não” à independência venceu em 2018 com 78 mil votos (56,67%), enquanto o “sim” ficou com 60 mil (43,33%). De acordo com os Acordos de Matignon, porém, estavam previstos ainda outros dois referendos em quatro anos.

O referendo de 2020 teve o mesmo resultado, porém com a independência tendo uma melhor votação, de 46%. O terceiro e último referendo é aguardado para 2022.

Bandeira independentista não oficial da Nova Caledónia. Imagem: Wikipédia

O futebol neocaledônio

Como em tantas outras antigas colônias francesas, o futebol tem uma forte ligação com a identidade nacional da Nova Caledônia. Até hoje, o único esporte do território que conta com uma federação independente da França (e, portanto, com uma seleção também independente) é o futebol.

Apesar de fundada em 1928, a federação de futebol só se tornou oficialmente membro da FIFA em 2004, o que então a habilitou a disputar as Eliminatórias para a Copa do Mundo. Antes disso, a seleção da Nova Caledônia só podia disputar amistosos e torneios locais, de forma não oficial.

Com seus jogadores apelidados de “os cagus”, em referência à ave nacional da Nova Caledônia, a seleção já tem até um rival local: o Taiti, também território ultramarino francês. A rivalidade entre as duas equipes é vista como o clássico dos “primos franceses do Pacífico”. Aliás, a seleção do Taiti, embora carregue esse nome, representa não apenas a ilha, mas toda a Polinésia Francesa. 

E, embora o futebol da Nova Caledônia esteja se desenvolvendo aos poucos, ele ainda está atrás do taitiano. As duas seleções se enfrentaram na final da Copa das Nações da Oceania em 2012 e o Taiti ficou com a taça, o que lhe deu direito de participar da Copa das Confederações no Brasil, em 2013. A campanha da vice-campeã, porém, foi de dar orgulho, tirando inclusive os favoritos da Nova Zelândia na semifinal. Por isso, os neocaledônios acreditam que um título continental está cada dia mais próximo.

Um compatriota campeão mundial

Nenhum caso simboliza melhor a relação da França com a Nova Caledônia no futebol do que o de Christian Karembeu, kanak nascido em Lifou, território neocaledônio, e campeão mundial com a seleção francesa em 1998. 

Isso porque o bisavô de Christian, Willy, chegou a ser exibido como um canibal exótico numa feira colonial em Paris, na década de 30. É com esse olhar eurocêntrico que os franceses enxergavam suas colônias.

60 anos mais tarde, Christian Karembeu, destaque no futebol neocaledônio, foi chamado para um teste no Nantes, um dos grandes do futebol francês, deixando para trás o Pacífico. Em 1992, o bisneto do “canibal exótico” foi convocado para representar a França no futebol de seleções pela primeira vez. 

Isso não significa, porém, que o racismo tenha desaparecido da sociedade francesa. Na década de 90, à medida em que mais e mais filhos de imigrantes das antigas colônias iam sendo convocados para a seleção francesa, um debate sobre o que é ser “francês de verdade” se instalava no país. O político de extrema-direita Jean-Marie Le Pen dizia que a seleção era “escura demais” para representar a França.

Karembeu e outros alvos de Le Pen davam a resposta na execução do hino nacional, recusando-se a cantar A Marselhesa, hino que consideram excessivamente violento e ligado ao passado colonial francês.

E não foi a única vez em que o volante neocaledônio se posicionou politicamente em defesa da sua terra de origem: em 1995, ele foi uma das vozes mais ativas contra o então presidente da França, Jacques Chirac, que ordenou uma série de testes nucleares no Pacífico, nos territórios ultramarinos. As explosões causaram poluição e expuseram a população local à radioatividade em níveis alarmantes.

Foto: Wikipédia

Sucesso após entrada na FIFA

Karembeu se profissionalizou como jogador de futebol muito antes da independência futebolística da Nova Caledônia, mas as gerações mais novas deram mais sorte. Com o reconhecimento da FIFA, aumentou o investimento no futebol do arquipélago e resultados começaram a aparecer.

O ápice dessa revolução se deu na Liga dos Campeões da Oceania de 2019, quando duas equipes da Nova Caledônia decidiram o título: o Magenta e o Hienghène Sport. O torneio é tradicionalmente dominado por equipes da Nova Zelândia, que naquela ocasião ficaram nas semifinais. 

O Hienghène Sport venceu o troféu e se tornou a primeira equipe neocaledônia a disputar um torneio oficial da FIFA: o Mundial de Clubes, que acabaria sendo conquistado pelo Liverpool.

Aliás, vale ressaltar que os clubes da Nova Caledônia têm um status especial de dupla afiliação, fazendo parte também da federação francesa. Isso permite que eles disputem as rodadas preliminares da Copa da França, assim como fazem clubes de diversos outros territórios franceses espalhados pelo globo.


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Copa Além da Copa

Perfil oficial do Podcast Copa Além da Copa. A história, a geopolítica, a cultura e a arte que envolvem o mundo dos esportes.

Como citar

COPA, Copa Além da. Nova Caledônia: futebol e racismo também chegam à mais distante colônia francesa. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 20, 2021.
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