No dia 1 de novembro de 1917 veio a lume a Associação Athletica São Geraldo, fundada por um grupo de intelectuais vinculados ao jornal Progresso.[1] Nas páginas do combativo órgão da comunidade afro-paulistana, ela era saudada como aquela que “tem sabido, não só na capital, como em todo Estado, honrar sobremaneira o nome do negro brasileiro”.[2] Desde o princípio a equipe da Barra Funda compreendera “seu papel no mundo esportivo”, destacando-se nas competições de que participava, como, em especial, a do Campeonato Paulista da Divisão Municipal -, cuja conquista, em 1922, a convertia no “Campeão do Centenário” e, por conseguinte, em “uma das agremiações mais respeitadas de São Paulo”.[3]
O redator da matéria atribuía um caráter divino à façanha esportiva, revestindo-a, ademais, de uma significação política: “Deus parece que escolheu a camiseta alvinegra para dar-lhe essa honrosa designação, evidenciando”, sublinhava o autor, “o quanto aos pretos o Brasil deve a sua independência”.[4] Uma prova de valor na arena lúdica traduzida em um ato de afirmação no plano político. A trajetória do São Geraldo passava pela intersecção das duas esferas, entrelaçadas em um estilo de jogo que reunia como propriedades definidoras a identidade negra, a autonomia política e o prazer lúdico.
Não admira, portanto, que as suas apresentações atraíssem sempre uma assistência numerosa, dentro da qual, aliás, sobressaía a seção formada pelo público feminino.[5] De fato, em uma festa dançante da referida agremiação, promovida no mês de abril de 1920 em um salão da Rua Florêncio de Abreu, a “senhorita” Marina Nogueira fez um apaixonado discurso para exaltar o time da Barra Funda “em nome das torcedoras”.[6] Estas, ao que parece, marcavam presença assídua nos estádios, como registrado na partida entre o São Geraldo e o Club Atlético Brasil, válida pelo Campeonato da Divisão Intermediária da Liga Amadora de Futebol (LAF). Conforme a cobertura realizada pelo jornal Progresso, em meio à plateia “numerosa, correta e disciplinada” que afluíra ao clássico da comunidade negra, disputado no campo da Floresta, distinguia-se “um bom número do sexo belo”.[7]
O ambiente distinto cultivado pelo clube da rua Vitorino Carmilo compunha-se de “senhoras, senhoritas e cavalheiros” que frequentavam com a mesma desenvoltura tanto os salões de festa quanto os campos de futebol. O São Geraldo, podemos dizê-lo a partir da narrativa do jornal Progresso, ocupava para a classe média negra de São Paulo uma posição homóloga à desfrutada pelo Club Athletico Paulistano face às classes mais privilegiadas da cidade.[8] O paralelo se nos afigura tão mais instigante como hipótese de pesquisa se levarmos em consideração que o alvinegro da Barra Funda, na segunda metade da década de vinte, encontrava-se inscrito não na Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA), a entidade que enveredara pelo caminho sem volta da popularização do futebol; mas na LAF, a liga dissidente cuja criação em 1925 havia sido capitaneada pelo alvirrubro do Jardim América com o objetivo elitista de defender a todo custo os valores do amadorismo.[9]
A conjunção do São Geraldo e do Paulistano não se constituía, obviamente, na prova da inexistência do racismo no futebol brasileiro. Ela compunha, no fundo, o quadro mais complexo das relações entre negros e brancos no campo esportivo, cuja lógica não se deixava reduzir às categorias binárias comumente utilizadas para decifrá-las. Com efeito, embora cerrando fileiras em torno do amadorismo, as duas equipes se achavam, em contrapartida, devidamente separadas em séries distintas dentro da mesma liga: o Paulistano na primeira divisão, o São Geraldo na primeira divisão, mas da série intermediária. E antes que houvesse a possibilidade de se eliminar a distância sociorracial entre o “Paulistano Branco” e o “Paulistano Negro”, mediante a introdução de um mecanismo de acesso na LAF, a liga foi desfeita em 1929, extinguindo-se com ela as esperanças infundadas de deter o avanço do profissionalismo.[10]
Ora, com a denominada “pacificação” do futebol paulista, os clubes que se encontravam na LAF reuniram-se novamente na APEA, cujos campeonatos encontravam-se, à época, assim divididos por ordem decrescente de importância: Divisão Principal, Primeira Divisão, Segunda Divisão e Divisão Municipal.
A reorganização do futebol ocorrida no final dos anos vinte, porém, não seria benéfica ao São Geraldo. O time que antes de migrar para a LAF encontrava-se na Segunda Divisão da APEA, via-se reclassificado para baixo pelos dirigentes da antiga entidade, reingressando na Divisão Municipal. A princípio, o jornal Progresso reagia com aparente indiferença, salientando que o alvinegro retornava “sem fazer a mínima questão de lugar ou posição”, salientava a reportagem, filiando-se como “outro conjunto qualquer”.[11] O rebaixamento, no entanto, incomodava e nem sequer o título obtido em 1931 mostrava-se suficiente para eliminar o desconforto com o lugar ocupado pelo clube na hierarquia da APEA. Após concluir a temporada da Divisão Municipal, batendo com “relativa facilidade” os adversários do triangular final completado pelo Vasco da Gama e o Parque da Mooca, o jornal Progresso não se conteve, exprimindo abertamente o inconformismo com o destino imposto ao time da Barra Funda. Segundo entendia o jornal, os dirigentes da “entidade máxima” do futebol paulista “deveriam facilitar a volta” do São Geraldo “ao campeonato secundário da APEA”.[12]
A reivindicação deixava claro que, aos olhos do jornal Progresso, o São Geraldo não era um “conjunto qualquer”, e, sim, o “Campeão do Centenário” -, conjunto formado por rapazes que, mais uma vez, haviam demonstrado dentro de campo o valor da agremiação, conquistando o título da Divisão Municipal.[13] Alguma coisa deveria ser feita, “facilitando-lhes a volta ao campeonato secundário da nossa entidade máxima”. Nada mais “justo”.[14]
O São Geraldo, no entanto, aguardaria, em vão, pelas medidas exigidas pelo jornal Progresso. Na verdade, o retorno à APEA prenunciava tempos difíceis, marcados pela necessidade de recomeçar a ascensão futebolística quase do zero, isto é, da divisão que reunia os times de várzea da cidade de São Paulo. Um amargo regresso de um clube-símbolo da comunidade negra em uma entidade-chave dirigida pela elite branca da sociedade paulistana.[15]
Notas
[1] Cf. “Esportes”, Progresso, 23 de junho de 1928. Cf. “Campeão do Centenário”, Progresso, 28 de julho de 1929. Sobre a trajetória do clube e a Taça do Centenário, citada mais adiante, ver Domingues, Petrônio. “O ´campeão do Centenário`: raça e nação no futebol paulista”. Revista História, Unisinos, Vol.19, n.3 Setembro/Dezembro, 2015, pp.368-376.
[2] Cf. “De luta em luta, o São Geraldo galgou brilhantemente a vanguarda da divisão intermediária da LAF”, Progresso, 26 de setembro de 1929.
[3] Cf. “Campeão do Centenário”, Progresso, 28 de julho de 1929. De acordo com Petrônio Domingues, op. cit., pág. 371, tratava-se da Copa do Centenário da Independência do Brasil, “nome dado ao campeonato paulista de 1922” da Divisão Municipal organizada pela Associação Paulista de Esportes Atléticos.
[4] Cf. “Campeão do Centenário”, Progresso, 28 de julho de 1929.
[5] O São Geraldo foi fundado por iniciativa de Silvério Pereira Rufino dos Santos, Felisbino Barboza, Horácio da Cunha, Benedito Costa e Benedito Prestes. Cf. “Esportes”, Progresso, 23 de junho de 1928.
[6] Cf. “Festa da A. A. São Geraldo”, A Liberdade, 9 de maio de 1920.
[7] Cf. “S. Geraldo x Brasil”, Auriverde, 29 de abril de 1928. O campo da Floresta localizava-se na Ponte Grande, atual Ponte das Bandeiras, na Marginal Tietê.
[8] Sobre o Paulistano, ver Gambeta, Wilson. “A bola rolou: o Velódromo Paulista e os espetáculos de futebol (1895-1916)”. São Paulo, SESI-SP, 2015.
[9] A APEA foi criada em 1913 como dissidência da Liga Paulista de Football (1901). Cf. Negreiros, Plínio José Labriola de Campos. “Resistência e rendição: a gênese do Sport Club Corinthians Paulista e o futebol oficial em São Paulo, 1910-1916. Dissertação de Mestrado, História, PUC-SP, 1992. As cisões da APEA e depois da LAF foram lideradas pelo Paulistano, sempre com o propósito de barrar o avanço da profissionalização do jogo. Cf. Rosenfeld, Anatol. “Negro, macumba e futebol”. São Paulo, Perspectiva e Editora da Universidade de São Paulo, Campinas, Editoria da Universidade Estadual de Campinas, 1993, pág.83.
[10] Conforme Petrônio Domingues, op. cit., pág. 372, os clubes da divisão principal da LAF não corriam risco de rebaixamento.
[11] Cf. “Ao São Geraldo”, Progresso, 23 de junho de 1931.
[12] Cf. “Ao São Geraldo”, Progresso, 23 de junho de 1931. Cf. Andrews, George Reid. “Negros e brancos em São Paulo (1888-1988)”. Bauru, SP. EDUSC, 1998, p.202. Como observa o historiador estadunidense, o jornal Progresso (1923-1931) participava da chamada imprensa negra, produzida “por e para aquela elite negra”.
[13] A distinção social do São Geraldo, “possuidor de elementos de escol”, era reconhecida por A Gazeta. Cf. a seção do futebol de várzea do jornal, 16 de fevereiro de 1930.
[14] Cf. “Ao São Geraldo”, Progresso, 23 de junho de 1931.
[15] Cf. A seção do futebol de várzea de A Gazeta, edições de 9, 10 e 16 de fevereiro de 1930. Petrônio Domingues, op. cit., pág. 373, menciona a edição de 13 de maio de 1933 de Evolução: Revista dos Homens Pretos de São Paulo, na qual se faz alusão à presença do São Geraldo na Segunda Divisão da APEA. Mas ainda resta por esclarecer em que condições ocorre a ascensão do clube, bem como a sua desaparição do cenário futebolístico, ocorrida na primeira metade dos anos quarenta.