149.5

O amargo regresso

José Paulo Florenzano 4 de novembro de 2021

No dia 1 de novembro de 1917 veio a lume a Associação Athletica São Geraldo, fundada por um grupo de intelectuais vinculados ao jornal Progresso.[1] Nas páginas do combativo órgão da comunidade afro-paulistana, ela era saudada como aquela que “tem sabido, não só na capital, como em todo Estado, honrar sobremaneira o nome do negro brasileiro”.[2] Desde o princípio a equipe da Barra Funda compreendera “seu papel no mundo esportivo”, destacando-se nas competições de que participava, como, em especial, a do Campeonato Paulista da Divisão Municipal -, cuja conquista, em 1922, a convertia no “Campeão do Centenário” e, por conseguinte, em “uma das agremiações mais respeitadas de São Paulo”.[3]

O redator da matéria atribuía um caráter divino à façanha esportiva, revestindo-a, ademais, de uma significação política: “Deus parece que escolheu a camiseta alvinegra para dar-lhe essa honrosa designação, evidenciando”, sublinhava o autor, “o quanto aos pretos o Brasil deve a sua independência”.[4] Uma prova de valor na arena lúdica traduzida em um ato de afirmação no plano político. A trajetória do São Geraldo passava pela intersecção das duas esferas, entrelaçadas em um estilo de jogo que reunia como propriedades definidoras a identidade negra, a autonomia política e o prazer lúdico.     

Sâo Geraldo
Fonte: Blog História do Futebol

Não admira, portanto, que as suas apresentações atraíssem sempre uma assistência numerosa, dentro da qual, aliás, sobressaía a seção formada pelo público feminino.[5] De fato, em uma festa dançante da referida agremiação, promovida no mês de abril de 1920 em um salão da Rua Florêncio de Abreu, a “senhorita” Marina Nogueira fez um apaixonado discurso  para exaltar o time da Barra Funda “em nome das torcedoras”.[6] Estas, ao que parece, marcavam presença assídua nos estádios, como registrado na partida entre o São Geraldo e o Club Atlético Brasil, válida pelo Campeonato da Divisão Intermediária da Liga Amadora de Futebol (LAF). Conforme a cobertura realizada pelo jornal Progresso, em meio à plateia “numerosa, correta e disciplinada” que afluíra ao clássico da comunidade negra, disputado no campo da Floresta, distinguia-se “um bom número do sexo belo”.[7] 

O ambiente distinto cultivado pelo clube da rua Vitorino Carmilo compunha-se de “senhoras, senhoritas e cavalheiros” que frequentavam com a mesma desenvoltura tanto os salões de festa quanto os campos de futebol. O São Geraldo, podemos dizê-lo a partir da narrativa do jornal Progresso, ocupava para a classe média negra de São Paulo uma posição homóloga à desfrutada pelo Club Athletico Paulistano face às classes mais privilegiadas da cidade.[8] O paralelo se nos afigura tão mais instigante como hipótese de pesquisa se levarmos em consideração que o alvinegro da Barra Funda, na segunda metade da década de vinte, encontrava-se inscrito não na Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA), a entidade que enveredara pelo caminho sem volta da popularização do futebol; mas na LAF, a liga dissidente cuja criação em 1925 havia sido capitaneada pelo alvirrubro do Jardim América com o objetivo elitista de defender a todo custo os valores do amadorismo.[9]

São Geraldo
Fonte: Blog História do Futebol/O Imparcial “Supplemento Sportivo”

A conjunção do São Geraldo e do Paulistano não se constituía, obviamente, na prova da inexistência do racismo no futebol brasileiro. Ela compunha, no fundo, o quadro mais complexo das relações entre negros e brancos no campo esportivo, cuja lógica não se deixava reduzir às categorias binárias comumente utilizadas para decifrá-las. Com efeito, embora cerrando fileiras em torno do amadorismo, as duas equipes se achavam, em contrapartida, devidamente separadas em séries distintas dentro da mesma liga: o Paulistano na primeira divisão, o São Geraldo na primeira divisão, mas da série intermediária. E antes que houvesse a possibilidade de se eliminar a distância sociorracial entre o “Paulistano Branco” e o “Paulistano Negro”, mediante a introdução de um mecanismo de acesso na LAF, a liga foi desfeita em 1929, extinguindo-se com ela as esperanças infundadas de deter o avanço do profissionalismo.[10]

Ora, com a denominada “pacificação” do futebol paulista, os clubes que se encontravam na LAF reuniram-se novamente na APEA, cujos campeonatos encontravam-se, à época, assim divididos por ordem decrescente de importância: Divisão Principal, Primeira Divisão, Segunda Divisão e Divisão Municipal.

A reorganização do futebol ocorrida no final dos anos vinte, porém, não seria benéfica ao São Geraldo. O time que antes de migrar para a LAF encontrava-se na Segunda Divisão da APEA, via-se reclassificado para baixo pelos dirigentes da antiga entidade, reingressando na  Divisão Municipal. A princípio, o jornal Progresso reagia com aparente indiferença, salientando que o alvinegro retornava “sem fazer a mínima questão de lugar ou posição”, salientava a reportagem, filiando-se como “outro conjunto qualquer”.[11] O rebaixamento, no entanto, incomodava e nem sequer o título obtido em 1931 mostrava-se suficiente para eliminar o desconforto com o lugar ocupado pelo clube na hierarquia da APEA. Após concluir a temporada da Divisão Municipal, batendo com “relativa facilidade” os adversários do triangular final completado pelo Vasco da Gama e o Parque da Mooca, o jornal Progresso não se conteve, exprimindo abertamente o inconformismo com o destino imposto ao time da Barra Funda. Segundo entendia o jornal, os dirigentes da “entidade máxima” do futebol paulista “deveriam facilitar a volta” do São Geraldo “ao campeonato secundário da APEA”.[12]

São Geraldo
Fonte: Blog História do Futebol

A reivindicação deixava claro que, aos olhos do jornal Progresso, o São Geraldo não era um “conjunto qualquer”, e, sim, o “Campeão do Centenário” -, conjunto formado por rapazes que, mais uma vez, haviam demonstrado dentro de campo o valor da agremiação, conquistando o título da Divisão Municipal.[13] Alguma coisa deveria ser feita, “facilitando-lhes a volta ao campeonato secundário da nossa entidade máxima”. Nada mais “justo”.[14]

O São Geraldo, no entanto, aguardaria, em vão, pelas medidas exigidas pelo jornal Progresso. Na verdade, o retorno à APEA prenunciava tempos difíceis, marcados pela necessidade de recomeçar a ascensão futebolística quase do zero, isto é, da divisão que reunia os times de várzea da cidade de São Paulo. Um amargo regresso de um clube-símbolo da comunidade negra em uma entidade-chave dirigida pela elite branca da sociedade paulistana.[15]


Notas

[1] Cf. “Esportes”, Progresso, 23 de junho de 1928. Cf. “Campeão do Centenário”, Progresso, 28 de julho de 1929. Sobre a trajetória do clube e a Taça do Centenário, citada mais adiante, ver Domingues, Petrônio. “O ´campeão do Centenário`: raça e nação no futebol paulista”. Revista História, Unisinos, Vol.19, n.3 Setembro/Dezembro, 2015, pp.368-376.

[2] Cf. “De luta em luta, o São Geraldo galgou brilhantemente a vanguarda da divisão intermediária da LAF”, Progresso, 26 de setembro de 1929.

[3] Cf. “Campeão do Centenário”, Progresso, 28 de julho de 1929. De acordo com Petrônio Domingues, op. cit., pág. 371, tratava-se da Copa do Centenário da Independência do Brasil, “nome dado ao campeonato paulista de 1922” da Divisão Municipal organizada pela Associação Paulista de Esportes Atléticos.

[4] Cf. “Campeão do Centenário”, Progresso, 28 de julho de 1929.

[5] O São Geraldo foi fundado por iniciativa de Silvério Pereira Rufino dos Santos, Felisbino Barboza, Horácio da Cunha, Benedito Costa e Benedito Prestes. Cf. “Esportes”, Progresso, 23 de junho de 1928.

[6] Cf. “Festa da A. A. São Geraldo”, A Liberdade, 9 de maio de 1920.

[7] Cf. “S. Geraldo x Brasil”, Auriverde, 29 de abril de 1928. O campo da Floresta localizava-se na Ponte Grande, atual Ponte das Bandeiras, na Marginal Tietê.

[8] Sobre o Paulistano, ver Gambeta, Wilson. “A bola rolou: o Velódromo Paulista e os espetáculos de futebol (1895-1916)”. São Paulo, SESI-SP, 2015.  

[9] A APEA foi criada em 1913 como dissidência da Liga Paulista de Football (1901). Cf. Negreiros, Plínio José Labriola de Campos. “Resistência e rendição: a gênese do Sport Club Corinthians Paulista e o futebol oficial em São Paulo, 1910-1916. Dissertação de Mestrado, História, PUC-SP, 1992. As cisões da APEA e depois da LAF foram lideradas pelo Paulistano, sempre com o propósito de  barrar o avanço da profissionalização do jogo. Cf. Rosenfeld, Anatol. “Negro, macumba e futebol”. São Paulo, Perspectiva e Editora da Universidade de São Paulo, Campinas, Editoria da Universidade Estadual de Campinas, 1993, pág.83.  

[10] Conforme Petrônio Domingues, op. cit., pág. 372, os clubes da divisão principal da LAF não corriam risco de rebaixamento.

[11] Cf. “Ao São Geraldo”, Progresso, 23 de junho de 1931.

[12] Cf. “Ao São Geraldo”, Progresso, 23 de junho de 1931. Cf. Andrews, George Reid. “Negros e brancos em São Paulo (1888-1988)”. Bauru, SP. EDUSC, 1998, p.202. Como observa o historiador estadunidense, o jornal Progresso (1923-1931) participava da chamada imprensa negra, produzida “por e para aquela elite negra”. 

[13] A distinção social do São Geraldo, “possuidor de elementos de escol”, era reconhecida por A Gazeta. Cf. a seção do futebol de várzea do jornal, 16 de fevereiro de 1930.

[14] Cf. “Ao São Geraldo”, Progresso, 23 de junho de 1931.

[15] Cf. A seção do futebol de várzea de A Gazeta, edições de 9, 10 e 16 de fevereiro de 1930. Petrônio Domingues, op. cit., pág. 373, menciona a edição de 13 de maio de 1933 de Evolução: Revista dos Homens Pretos de São Paulo, na qual se faz alusão à presença do São Geraldo na Segunda Divisão da APEA. Mas ainda resta por esclarecer em que condições ocorre a ascensão do clube, bem como a sua desaparição do cenário futebolístico, ocorrida na primeira metade dos anos quarenta.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. O amargo regresso. Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 5, 2021.
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