Desde que li meu amigo, João Orço, dizendo daquilo que disse Milton Nascimento em “tudo o que você podia ser”, passei a ouvir a canção não mais com os ouvidos, mas com a cabeça pensante.

Quando escrevo sobre o que vejo, pesquisando a formação de futebolistas, coloco Milton Nascimento para acompanhar o pensamento. A música toca em uma repetição que perturba, mas aquilo que diz em cada verso parece me transportar para os campos da Palhoça. Diante dos sonhos, e de tudo o que você podia ser ou nada, que vive em cada par de chuteira dos oito jogadores-cineastas que me acompanham na trajetória da pesquisa.

Tudo o que você queria ser…

Conheci Vinicius Nucci como capitão da equipe sub-21 do Figueirense, mesmo antes de saber que ele era o capitão.

Foi do nada, como parece ser tudo que acontece em um campo de pesquisa.

Os jogadores se amontoavam para pegar o material de treino no container em que trabalha o roupeiro. Eu, debaixo de sol, com a mão protegendo os olhos observava a cena, quando ouvi ele me perguntar timidamente sobre o que fazia ali. Trocamos conversa fiada, falamos de surf, praia, rolês em Florianópolis, até chegarmos ao momento que eu ansiava. Perguntei:

– Bóra fazer um filme?

E foi assim que começamos. Montamos um grupo de Whatsapp para organizarmos nossas atividades, no começo foi truncado. Os outros meninos, tímidos, não respondiam. No contato privado ele me dizia: – Deixa comigo que eu respondo lá e aí os moleques falam. E foi assim que continuamos. Tempo depois o vi vestindo a braçadeira de capitão e entendi tudo. O capitão é capitão, mesmo!

Com 19 anos, Nucci estreou no time profissional do Figueirense. O peso que isso tem na vida de um menino que sonha em ser jogador é coisa que não é possível de alcançar com as palavras. 19 anos, time profissional…

É o sonho saindo do lugar do sonho, depois de tantos anos sonhando.

Mas a vida acontece longe do lugar do sonho e nos lembra disso o tempo todo.

Lesionou.

Tudo o que você podia ser…

O que me faz lembrar da fragilidade do corpo são as lesões de todos os jogadores com quem já conversei. É sempre grave, mesmo quando não é.

No caso de Nucci, foi lesão no ligamento cruzado e menisco. Não é preciso entender de ligamento, de cruzado, de menisco, do que for, uma lesão é sempre determinante, não só do corpo, mas do sonho.

Foram meses longe dos campos, mas a cabeça continuava lá, junto de todos os pensamentos que carregam a angústia de não saber mais. Não saber mais do poder do corpo, da precisão do chute, da certeza do real depois de viver tanto tempo de sonho.

Vinicius Nucci, Figueirense x Aparecidense — Foto: Patrick Floriani/FFC.

O começo do ano é sempre pesado. O branco da virada traz junto a idealização de um recomeço limpo. Para Nucci isso parece ser de um peso ainda maior. Lesionou em janeiro de 2022. Voltou a jogar em janeiro de 2023. Não muito tempo depois, aquilo que chamam de má fase aconteceu. Nucci conta que foi então convidado a descer pra base.

Descer pra base é termo que me fez pensar. Já ouvi tantas vezes e ainda não entendo o peso que tem essa descida. Se a base é espaço de formação, o ato de tornar-se profissional e precisar regressar à base deve doer tanto quanto uma lesão no ligamento cruzado.

O que isso diz? O quanto isso diz?

“Descer pra base…”

O quanto dói? O quanto afeta? A insegurança que vem com não saber mais em qual lugar se está, depois de já ter tido lugar definido. Lugar que por tanto tempo foi sonho. Difícil esse lugar de viver o não-lugar.

Nucci (re)construiu seu lugar. Tornou-se voz ativa no grupo de jogadores que disputavam a Copa SC sub-21. Colocou a faixa de capitão não só no braço, como também no pensamento e no coração, e capitaneou.

Foi assim até o fim de 2023.

Tudo que você consegue ser ou nada…

Janeiro sempre é difícil. Especialmente para Vini.

Visitando seu perfil no Instagram percebi que o título que todo menino que sonha em viver da bola quer tanto ostentar na “bio” não estava mais lá.

Nucci não era mais jogador profissional do Figueirense.

O chamei no Whatsapp naquele mesmo instante. Pedi para que ele retomasse a gravar os vídeos para o filme, mesmo que tivéssemos dado como finalizada a produção do documentário.

Entendi que no futebol nada termina quando acaba, mesmo.

Quando o sonho se torna realidade ele não deixa de existir. Há sempre novos sonhos e desejos sendo produzidos no mundo incerto que é o futebol. Ninguém sonha em jogar na série D, em dividir quarto com mais um atleta, em morar em cidade pequena. Mas os sonhos são reconfiguráveis para quem deseja mais do que tudo em viver o futebol. Se aceita aquilo que nunca fez parte do sonho, para viver um outro sonho, para que então se torne possível viver aquilo como realidade.  

Nucci ainda tem muito a dizer e me ensinar. Tem tanto a falar, daquilo que nós, escritores, torcedores e leitores, nunca compreenderemos sobre a experiência de tornar-se jogador, que entendi também que quem deve dizer é ele, e não mais eu.

Na busca por entender o outro é necessário reconhecer até onde podemos ir. É preciso dar voz, imagem, agência e a possibilidade de pensar e falar por si próprio.  

Para você, Nucci, capitão, o que tenho em mim que quero gritar para dizer é aquilo que Milton Nascimento disse antes:

“Ah! Sol e chuva na sua estrada

Mas não importa não faz mal

Você ainda pensa e é melhor do que nada

Tudo que você consegue ser ou nada”

 

O que se segue são fragmentos de um diário, em formato de vídeo, que o atleta compartilhou comigo.

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Como citar

MORO, Eduarda. O capitão. Ludopédio, São Paulo, v. 175, n. 21, 2024.
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