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O clichê dos heróis

Leandro Marçal 7 de março de 2017

Num futebol cada vez menos romântico e mais mercadológico até no ápice da bola – o gol, esse ser para o qual tentam enfiar goela abaixo infinitas regras sobre como se comemora sem ferir os sensíveis patrocinadores da festa –, a irracionalidade com a qual ele ainda nos apaixona mesmo no ceticismo de quem conhece os bastidores da bola continua a me encantar.

Deve ser por essa vocação quase metafísica de nos transformar em crianças diante do Papai Noel que ainda insistimos em criar heróis e vilões nessa novela ludopédica e interminável, onde a carência de ídolos atinge níveis alarmantes a cada novo ano.

Talvez por isso seja tão comum o surgimento de novos heróis tão falsos quanto um bezerro de ouro. Bastam as mesmas e simples expressões rasas e fáceis de digerir e pronto: temos um novo mito, semideus ou coisa que o valha, com montagens estúpidas combinando um rap americano com uns óculos virtuais pousando sobre seus olhos nessa era de curtidas sem fim.

A equipe, numa desgraça de dar dó, sabemos que não vai chegar a lugar algum? Basta apelar ao discurso da raça, time de guerreiros, jogamos com o coração na ponta da chuteira e afins. Um grito a mais para intimidar o adversário, uma resposta atravessada a jornalistas: eis os novos discípulos apedrejando vozes contrárias a quem pensa diferente.

A linha tênue entre o heroísmo e a indiferença ao mundo real é sina no futebol moderno. Foto: obra clássica de Hélio Oiticica, dando origem à cultura marginal no período da ditadura militar
A linha tênue entre o heroísmo e a indiferença ao mundo real é sina no futebol moderno. Na foto, a clássica de Hélio Oiticica, dando origem à cultura marginal no período da ditadura militar.

À diferença dos filmes e histórias em quadrinhos, esses heróis de cera não salvam o mundo, muito menos se importam em trocar as cores de suas capas entre o início e o fim de outra temporada. Mais vale a espetacularização de sua imagem em memes, vídeos curtos ou coisas que impressionem de forma rápida a massa que sustenta as redes sociais.

Dá para curar a insônia ao reparar que, diferentemente de outros ídolos de carne e osso que desafiavam o senso comum da mediocridade, quase não há vozes a desafiar os abusos e absurdos das federações, dos regulamentos esdrúxulos, de um sistema falido – ao contrário dos (des)organizadores, cada vez mais ricos –, ou até mesmo os calendários apertados feito salário de um trabalhador braçal.

Quando muito, nossos heróis se pronunciam se os erros de arbitragem prejudicam seu lado dentro do campo. Mas em time que está ganhando não se mexe, diriam os deuses do futebol.

https://www.youtube.com/watch?v=zkFC0fOrFx8

Faço minhas as palavras do grande José Trajano, em entrevista recente, na qual ele relata seu espanto pela omissão de quase todos os grandes ídolos do esporte sobre o que aflige aquele torcedor comum, aquele mesmo que tanto fez pelo futebol e hoje é quase escorraçado das elitizadas arenas. O país se afundando entre escândalos, miséria e descalabro, não se vê ou ouve uma voz contrária aos clichês de sempre em entrevistas coletivas cada vez mais enfadonhas. O importante é ser pop.

Parece até que os heróis da cancha são tão bobos quanto Clark Kent e seu óculos quadrado. Nada parece ser mais importante que o estilo de se vestir, a marca de roupas, do tênis, do fone de ouvido, tudo pasteurizado como um leite longa vida em uma caixinha tímida na geladeira, tão fria quanto o futebol moderno. Nosso individualismo, déficit de Educação e Cidadania crônicos se refletem também no esporte.

neymar
Neymar frequentemente é considerado herói e individualista. Foto: Pedro Martins/Mowa Press.

Se nas histórias da Marvel ou DC na qual os protagonistas chutassem bolas em direção a caixotes sobre um gramado, surgisse um movimento para mudar o status quo arcaico e casado com o retrocesso, os heróis usariam de todos os superpoderes pela causa, em busca de algo maior e melhor. Na nossa ficção cada vez mais real, não foi bem assim. E seguem uns poucos heróis com superpoderes enquanto outros milhares vão se perder tentando vestir a capa de algum grande clube profissional para salvar a família, sem sucesso.

Deve ser um sinal desses tempos de pós-verdades, busca por salvadores da pátria vestindo novas embalagens para antigos interesses, menosprezando a História ou virando de cabeça para baixo todos os argumentos possíveis. Nada mais espanta.

No futebol atual, todo herói é obra de ficção. Acredite neles se quiser.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. O clichê dos heróis. Ludopédio, São Paulo, v. 93, n. 7, 2017.
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