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O futebol, as mesas-redondas, o fim de uma era (Florianópolis como situação exemplar)

“Ganhamos um troféu, Miguelito”, disse o técnico Lauro Búrigo (1936-2019), referindo-se a Miguel Livramento, dias após a vitória da seleção catarinense de futebol contra sua congênere do Paraná, há quase trinta anos. Não houve no Figueirense – onde trabalhou cerca de uma dezena de vezes –, um treinador mais carismático do que o autor da pequena provocação, ele que também dirigiu o maior adversário, o Avaí. Foi também um dos representantes mais expressivos de um futebol que já não existe nos grandes clubes, pelo menos não hegemonicamente, que é aquele feito na pura intuição acionada na beirada do campo. Com uma carreira que não deixou de ser exitosa, perdeu muito espaço com a entrada dos times catarinenses no futebol globalizado, no início deste milênio. Basta dizer que desde então, no Alvinegro do Estreito passaram treinadores como Muricy Ramalho, Dorival Júnior, Branco e Jorginho, todos, guardadas as diferenças, em diálogo, ou mesmo conexos, ao momento que o esporte vive, de estrutura científica, jogadores vaidosos em redes sociais e vocabulário rebuscado. Admirado por torcedores mais antigos, saudosos do que já não existe, e pela crônica esportiva dos velhos tempos, Lauro é chamado, aqui e ali, de Bruxo, epíteto que não deixa de ter boas razões para existir.

Miguel (1942-2023) foi um desses cronistas. Torcedor apaixonado do Avaí, daqueles que reclamavam, no calor das derrotas, que determinado árbitro jamais ajudava seu time, ele atuou no rádio, na televisão e nos jornais locais, sempre em tom efusivo e conservador. Exerceu várias funções, inclusive a de narrador, mas foi sobretudo como comentarista que se tornou conhecido. Do microfone das várias rádios em que atuou, pudemos ouvir durante anos um vocabulário hoje pouco empregado, até porque alguns dos significantes aos quais se referia já não estão no futebol: fisicultor para designar preparador físico, meia-cancha ao que chamamos de meio-campo, casamata ao invés de banco de reservas, meia-armador – constantemente reivindicado nos comentários – ao se referir a uma posição em extinção.

Miguel Livramento
Miguel Livramento. Fonte: Redes Sociais/Reprodução

O recente falecimento de Miguel no começo de agosto, aos 81 anos, deixa Roberto Alves como último representante da velha guarda da crônica esportiva local, decano não apenas do jornalismo esportivo, mas da TV em Santa Catarina, da qual foi um dos protagonistas de primeira hora. Como 60 anos de carreira, o comunicador vem se despedindo neste ano, primeiro do jornal e em seguida da TV, ainda permanecendo no rádio nos poucos meses que restam até o final do ano. É pelas ondas eletromagnéticas que se pode ouvir, a cada dia, uma das grandes tradições do futebol brasileiro, a mesa-redonda, sob o comando de Roberto, na CBN. Com pessoas mais jovens que ele – algumas com cerca de um terço de sua idade –, o contraste da abordagem é grande. Os mais jovens tentam mostrar conhecimento tático diferenciado, que eventualmente têm (principalmente Jéssica Cescon e Chico Lins), enquanto o veterano não faz questão de prender-se ao que seria a objetividade dos fatos.

Roberto passou por tudo, ou quase tudo, que alguém pode ter passado tendo trabalhado na rádio e na televisão catarinenses. Narrou competições de remo, um esporte tradicional em uma cidade litorânea como Florianópolis, assim como diferentes modalidades dos Jogos Abertos de Santa Catarina (a tradicionalíssima competição poliesportiva do estado), desfiles de escolas de samba e grandes sociedades (uma particularidade local que já não existe) e até paradas militares de 7 de setembro, durante a ditatura. Como repórter, comentarista ou âncora, viu o Estádio Adolfo Konder morrer, dando lugar ao Shopping Beira-Mar, assim como o da Ressacada nascer e crescer, ambos do Avaí, mas também acontecimentos dramáticos para a cidade, como o acidente com o avião da extinta Transbrasil, em 1980.

O desastre com o Boeing 727 aconteceu em chuvosa noite de sábado, no bairro Ratones, a meio-caminho entre o Centro e Canasvieiras, no Norte da Ilha de Santa Catarina. É para lá que íamos no domingo para comemorar o aniversário de meu irmão, que completara 15 anos três dias antes, em 10 de abril. Lembro-me de meu pai parar o carro para que, ao longe, víssemos a mancha cor de alumínio no meio da mata aberta no morro contra o qual a aeronave se chocara. Não tive consciência do alcance do acontecimento até chegar à escola na segunda-feira e saber que os pais de três colegas haviam falecido no acidente. Apenas na terça eles, com quem jogávamos bola, voltaram, desorientados, ao cotidiano escolar.

Roberto Alves
Roberto Alves. Fonte: reprodução

Entre todas as situações que Roberto Alves viveu, a de uma mesa-redonda, em uma noite de segunda-feira (momento de debater o que acontecera na rodada do final de semana), foi a mais marcante para a cidade[1]. Sílvio Roberto Vieira (1944-2019), então soldado da Polícia Militar de Santa Catarina, invadiu armado o estúdio da TV Cultura de Florianópolis, interrompendo a conversa futebolística. Durante pouco mais de meia hora, ele permaneceu no ar, protestando contra os baixos salários e as péssimas condições de trabalho na PM, com críticas muito pesadas ao então governador do estado, o hoje senador Espiridião Amin[2]. O desespero de não poder sustentar a família e o inconformismo com o tratamento recebido nos quartéis foram expostos em fala articulada e sem meias-palavras, mesmo que, depois se soube, houvesse álcool e medicação psiquiátrica naquele corpo negro. Bobby, como hoje Roberto é carinhosamente chamado pelos colegas mais jovens, segurou a barra até que o comandante de seu batalhão chegou e o prendeu. Os pedidos para que não houvesse mais violência não foram considerados, e o homem foi maltratado, humilhado, torturado e perseguido, não apenas nas horas seguintes, mas ao longo de anos. Sílvio morreu há quatro anos[3].

As mesas-redondas ainda sobrevivem, como a que Roberto comanda, mas a maioria delas perdeu o caráter que tinha. Em algumas, no lugar de senhores e jovens discutindo efusivamente, há gritos e personagens que parecem trazer humor e espírito boleiro, mas que apenas nos constrangem. Outras, principalmente as dos canais a cabo, buscam a assepsia dos termos técnicos e dos espaços clean, e permanecem distantes do torcedor que um dia frequentou as gerais dos estádios.  Entre uma coisa e outra, é o futebol como espetáculo e produto de consumo que dá testemunho de uma sociedade que, com nossos gostos, pensamentos e sensibilidades, vai se transformando – mesmo que isso aconteça, com frequência, em direções que não são as que mais apreciamos. Fica a homenagem aos velhos cronistas do esporte, com suas dificuldades, visões muitas vezes simplistas e pouco densas, mas que podem ser sensíveis. Fica também a amarga lembrança de um esquecido trabalhador que ousou dizer mais do que lhe permitiam, vocalizar o grito de seu desespero, colocar o corpo no combate pelos direitos: o soldado Sílvio Roberto Vieira.

Notas

[1] https://www.nsctotal.com.br/colunistas/roberto-alves/na-mira-de-cinco-revolveres

[2] https://www.facebook.com/ndtvrecordtv/videos/policial-militar-com-cinco-armas-invade-programa-ao-vivo/276804176802488/

[3] https://www.uol.com.br/esporte/reportagens-especiais/soldado-silvio/#page47

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. O futebol, as mesas-redondas, o fim de uma era (Florianópolis como situação exemplar). Ludopédio, São Paulo, v. 171, n. 23, 2023.
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