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O futebol brasileiro: Instituição zero de Simoni Guedes

Leda Costa 24 de setembro de 2023

Livros também têm história. Eles podem ser concebidos em momentos variados, desde uma conversa informal, noites mal dormidas ou logo após o despertar de um sonho. Ideias surgem em qualquer momento nas nossas cabeças, mas convertê-las em conteúdo para uma publicação requer um processo de elaboração e amadurecimento que pode levar muito tempo. Isso sem mencionar o fato de que, às vezes, nossos planos têm suas rotas recalculadas tomando rumos imprevistos. 

A história da publicação de O futebol brasileiro: Instituição Zero em formato de livro tem um importante momento: uma mensagem no WhatsApp recebida em junho de 2021 e que dizia “depois, queria falar contigo sobre uma ideia”, o que imediatamente respondi com um “TMJ” porque a mensagem vinha de Enrico Spaggiari, um querido colega corinthiano e um dos fundadores do site Ludopédio que passou a ter uma editora. 

A ideia sobre a qual Enrico queria conversar era a respeito da possibilidade de publicação da uma das produções referenciais à formação do campo acadêmico das pesquisas sobre esporte no Brasil: O futebol brasileiro: Instituição zero, título da dissertação defendida, no Museu Nacional, em 1977, por Simoni Lahud Guedes. A autora, quatro anos depois, publicou parte dos resultados dessa tese, que sob formato de artigo, compôs o livro Universo do futebolorganizado por Roberto DaMatta que, na época, já era um renomado antropólogo. Trata-se de uma obra, de fato, muito relevante para que o futebol com o tempo passasse a ser compreendido como importante manifestação cultural e, portanto, objeto de estudo rico em significados sobre a própria sociedade brasileira. 

Mas voltemos à dissertação de Simoni Guedes, um trabalho que se tornou referencial mesmo ficando mais de quarenta anos circulando somente a partir de fotocópias tiradas por quem visitava a biblioteca do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Certamente que essa obra ganha vulto, também, devido a todo trabalho de pesquisa desenvolvido por Simoni no decorrer de sua exitosa carreira acadêmica. Nessa trajetória, o corpo – e suas técnicas – foi temática constante sendo a base das pesquisas desenvolvidas por Simoni Guedes sobre os trabalhadores urbanos e sobre o futebol no Brasil, em especial, a construção da figura do jogador de futebol pensado a partir da concepção de talento e sob uma perspectiva que levava em conta sua trajetória social.

Na produção de Simoni Guedes sobre o futebol, sempre esteve presente os pressupostos teóricos básicos de sua dissertação, sobretudo, a concepção do futebol como uma “instituição zero”, o que é explicado do seguinte modo no livro O Brasil no campo de futebol publicado em 1988:

[…] como “instituição zero” (Guedes, 1977), área em si, técnica e tática, pretensamente neutra, portanto, não comportando significados necessariamente vinculados a seu poder significante, o futebol no caso brasileiro, tem sido antes um veículo que comporta as mais diferentes significações e fornece provas às mais diversas argumentações (p. 23)

Devido à importância adquirida pelo futebol no país, Simoni o considerava equivalente a uma instituição por intermédio da qual a sociedade brasileira se expressa, principalmente, em momentos como as Copas do Mundo. Esse evento recebe atenção detida na dissertação da autora que se debruçou sobre as coberturas das Copas de 1950, 1966 e 1970. O material da imprensa serviu de fonte empírica para a análise de algumas interpretações feitas sobre o Brasil por intermédio do futebol. Em Instituição zero há o desenho dos caminhos temáticos fundamentais aos estudos sobre o futebol que foram retomados e atualizados por diferentes pesquisadores e pesquisadoras. 

Com o incêndio do Museu Nacional, em 2018, um precioso acervo foi perdido como coleções de paleontologia, coleções de obras de arte, fósseis etc. Estima-se que grande parte dos 20 milhões de itens que o Museu abrigava foi arrasada pelo incêndio.  O fogo também destruiu a biblioteca do Museu e valiosas obras escritas, entre as quais a dissertação de Simoni Guedes. Havia se perdido, portanto, um dos únicos locais onde era possível acessarmos O futebol brasileiro: Instituição zero trabalho defendido naquela mesma instituição que estava prestes a completar 200 anos de vida. 

Em 2019, em um almoço na sua casa, Simoni me mostrou seu exemplar da dissertação. Suas páginas estavam cheias de anotações feitas pela autora a partir de trocas de ideias com Delma Pessanha, amiga pessoal e interlocutora intelectual de Simoni, e que também a auxiliava no planejamento de uma futura publicação da dissertação. Porém, essa tarefa precisou ser adiada. Naquele mesmo ano, Simoni Guedes faleceu. Quando recebi a mensagem de Enrico pelo Whatsapp a lembrança daquele almoço me veio à cabeça, bateu saudade da mestra flamenguista. Daí entrei em contato com a pessoa para quem Simoni dedicou sua dissertação: a filha, Mylene Guedes.

Mylene teve papel fundamental no processo de publicação de Instituição zero. Foi incrível seu cuidado e zelo com a revisão da digitação do texto original (não havia arquivo digital da dissertação!), com a revisão do texto antes e após a diagramação do livro, com a escolha das fotos que acompanham a obra. Mylene também foi mediadora imprescindível entre os editores e alguns autores convidados. 

Além da dissertação, o livro é composto por prefácios e posfácios que visavam oferecer uma perspectiva mais ampla tanto do texto de Simoni Guedes quanto de sua trajetória profissional como professora e pesquisadora atuante em temáticas que iam além do futebol. Nesse sentido, cabe destacar o texto da professora Delma Pessanha, que nos chama a atenção sobre as pesquisas de Simoni referentes à temática dos trabalhadores urbanos. Do mesmo modo vale ressaltar o prefácio da professora Ana Paula Mendes de Miranda e do Professor Roberto Kant de Lima, que mostram a atuação de Simoni no processo de construção e desenvolvimento do INCT-InEAC – Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos, da Universidade Federal Fluminense.

O futebol brasileiro: instituição zero
Capa do livro “O Futebol Brasileiro: Instituição Zero”, distribuído pelo Ludopédio. Foto: divulgação – Ludopédio

Ter participado do projeto de edição e publicação do livro O futebol brasileiro: instituição zero foi uma tarefa cercada de ansiedade, medo, mas sobretudo, uma baita alegria de trabalhar com o pessoal da editora Ludopédio, que conheceram Simoni Guedes e tinha plena noção da responsabilidade de levar a público, pela primeira vez,  a obra de uma antropóloga cuja produção é inspiração e referência para atuais e futuras pesquisas. O livro está disponível para compra no site do Ludopédio.

 

Em junho deste ano, chegou mais um zap de Enrico, desta vez comunicando que o livro havia sido encaminhado para impressão na gráfica. Daí começamos a planejar possíveis datas de lançamento, priorizando o mês de agosto, quando aconteceria o Seminário da RAM (Reunião de Antropologia do Mercosul) na Universidade Federal Fluminense, que foi uma extensão de sua casa durante anos. 

Era dia 03 de agosto, dia em que Simoni Guedes veio ao mundo. Após a apresentação dos trabalhos na RAM seguimos para um bar. Era dia de jogo do Flamengo, uma das suas paixões. Enquanto no telão a partida rolava, celebrávamos o lançamento de O futebol brasileiro: instituição zero, dissertação cuja apresentação termina assim: “como é o primeiro trabalho que posso dedicar a alguém, desejo dedicá-lo a minha filha, Mylene, esperando que ela algum dia a leia e possa compreender-me através dele.”

Sim, Simoni Guedes, Mylene leu e o publicou em um gesto de retribuição da dádiva da vida e do conhecimento.

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

 
 
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leda Maria Costa

Professora visitante da Faculdade de Comunicação Social (UERJ) - Pesquisadora do LEME - Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte -

Como citar

COSTA, Leda. O futebol brasileiro: Instituição zero de Simoni Guedes. Ludopédio, São Paulo, v. 171, n. 24, 2023.
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