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O Futebol na Literatura Alemã – Parte VI: Autobiografias de dois atletas que vestiram a camisa da Seleção Alemã

Biografia ou autobiografia? Eis a questão!

Em estudo recente sobre memória e futebol no Brasil, nos dedicamos à leitura e análise de biografias e autobiografias de jogadores do futebol brasileiro que vestiram a camisa da Seleção. Em um conjunto de 18 obras estudadas, apenas 03 poderiam ser consideradas autobiografias no sentido estrito da palavra, ou seja, relatos de vida escritos exclusivamente pelos próprios jogadores, e duas delas, designadas de autobiografias seriam, na verdade, resultantes da parceria entre jogadores e jornalistas no processo de escrita (CORNELSEN, 2020, p. 135-136). Sem dúvida, tais obras acabam por gerar discussões de ordem teórica no âmbito dos Estudos Literários. Entretanto, o que nos interessa aqui é salientar que, não obstante essa questão, constata-se que há um número de biografias, pelo menos, duas vezes superior ao número de autobiografias de jogadores de futebol que serviram à Seleção Brasileira.

Todavia, se olharmos para o contexto editorial alemão, um quadro semelhante parece se repetir, uma vez que o número de autobiografias de jogadores de futebol que serviram à Seleção Alemã é bem reduzido. Em uma rápida pesquisa realizada com o auxílio de ferramentas de busca na Internet nos permitiu encontrar apenas quatro títulos: Danke, Fuβball!: Mein Leben (2004; Obrigado, futebol!: Minha vida), de Uwe Seeler, Aus der Tiefe des Raumes – Mein Leben (2004; Da profundeza do espaço – Minha vida), de Günter Netzer, Der Wahnsinn liegt auf der Platz (2010; A loucura jaz na cancha), de Jens Lehmann, e Träumen lohnt sich. Mein etwas anderer Weg zum Fuβballprofi (2021; Vale à pena sonhar. Meu outro caminho para me tornar jogador profissional), de Robin Gosens. É justamente sobre duas dessas quatro obras que desejamos discorrer a seguir. Porém, cabe ainda ressaltar que ambas as obras selecionadas para formarem o corpus de análise possuem semelhanças com autobiografias de jogadores do futebol brasileiro que foram escritas, por assim dizer, a “quatro mãos”: Günter Netzer contou com a colaboração de Helmut Schümann para escrever seu relato de vida, e o mesmo aconteceu com Jens Lehmann e Christof Siemes. Embora não analisada neste breve estudo, o mesmo vale para a obra autobiográfica de Uwe Seeler, que contou com Roman Köster no processo de redação, bem como para o livro de Robin Gosens, em parceria com Mario Krischel. No caso brasileiro, em Pelé, a autobiografia (2006), publicada inicialmente em Inglês sob o título de My Autobiography, o “Rei do Futebol” contou com a colaboração do radialista e escritor britânico Alex Bellos e, respectivamente, do jornalista esportivo brasileiro Orlando Duarte. O mesmo se sucedeu com a obra Histórias da bola: depoimento a Nilson Souza (1997), de Paulo Roberto Falcão, que contou com a colaboração do jornalista Nilson Souza. Aparentemente, parece ser uma prática não tão rara, no âmbito do futebol e do esporte em geral, um atleta recorrer a profissionais da escrita (jornalistas, cronistas, radialistas, historiadores e escritores em geral) para narrar seus relatos de vida.

Mas, afinal, por que tanto barulho? O que isso implica? Para respondermos brevemente a estas questões, devemos nos ater a algumas questões de ordem teórica. No âmbito dos Estudos Literários, considera-se que uma autobiografia é, ao mesmo tempo, um documento sobre uma vida e, portanto, um testemunho de um sujeito sobre si próprio, como também a descrição do próprio ego em determinados aspectos que, normalmente, não vêm à tona. Sem dúvida, uma autobiografia guarda semelhanças com uma biografia no que diz respeito à recepção: no senso comum, o leitor espera que ela seja uma escrita (grafia) exata da vida (bio) de uma personalidade, que narra sobre si própria (auto). Entretanto, como nosso estudo revelou, “não costuma ser um expediente tão raro quando se trata de relatos autobiográficos de esportistas, fato que acaba por abalar os próprios limites conceituais de ‘autobiografia’, em que a coautoria se torna uma prática evidente, ou podendo mesmo ser omitida” (CORNELSEN, 2020, p. 136).

Todavia, o sentido de “(auto)biografia” deve ser tomado como “um construto discursivo, não se tratando, pois, de uma vida como ela é (ou foi), mas sim de um discurso (ilusionista) de uma vida como se ela fosse (ou tivesse sido) assim” (CORNELSEN, 2020, p. 141). Isso teria o potencial de produzir, no ato de leitura, o “efeito do vivido” (DOSSE, 2009, p. 410), como nos lembra o teórico francês François Dosse na obra O desafio biográfico: escrever uma vida. Mas é com Philippe Lejeune e sua obra clássica intitulada O pacto autobiográfico: de Russeau à Internet (2008) que encontraremos subsídios consistentes para se pensar a relação entre memória e história, ficção e história, e também para evidenciar aspectos que dizem respeito ao caráter de construto discursivo de biografias e autobiografias. Inclusive, Lejeune expande as possibilidades de se considerar diversos tipos textuais sob a rubrica de “espaço (auto)biográfico”, no qual se inserem cartas, ensaios, diários, relatos memorialísticos etc.

Günter Netzer, craque alemão dos anos 1970 pouco conhecido no Brasil

Nos anos 1970, ainda não havia transmissão televisiva de campeonatos europeus para o Brasil, o público em geral pouco conhecia jogadores e clubes de várias partes da Europa, incluindo a Alemanha Ocidental. Sem dúvida, a Copa do Mundo era sempre uma ótima oportunidade para o público apreciar o futebol de diversos países do globo. No caso da Alemanha Ocidental, a fase entre os anos de 1966 e 1974 coincide com a ascensão de um dos clubes mais poderosos do futebol mundial: o F.C. Bayern, ou Bayern de Munique, como é conhecido do público brasileiro. E tal ascensão é associada ao craque maior da Seleção nacional e do Bayern, onde jogou de 1964 a 1977: Franz Beckenbauer. Quem acompanhou as Copas de 1966, 1970 e 1974 pôde contemplar seu caminho até à sagração com o título conquistado em casa contra a Seleção Holandesa comandada pelo craque Johan Crujff, em 07 de julho de 1974.

Günter Netzer
Günter Netzer em 1979. Fonte: Wikipédia

Todavia, naquele mesmo período, de 1965 a 1975, outro jogador integrou a Seleção da Alemanha Ocidental, mas pouco ficou conhecido do público brasileiro à época: Günter Netzer, que atuou de 1963 a 1973 pelo Borussia Mönchengladbach, de 1973 a 1976 pelo Real Madrid, e de 1976 a 1977 pelo Grasshopper Club, da Suíça. Na Copa de 1974, disputada na Alemanha Ocidental, vários nomes ganharam projeção além do capitão Beckenbauer: o goleiro Sepp Maier, o zagueiro Hans-Georg Schwarzenbeck, o lateral esquerdo Paul Breitner, o ponta direita Uli Hoeneβ, e o centroavante Gerd Müller, todos jogadores do Bayern, além do lateral direito Berti Vogts e do meia Rainer Bonhof, ambos jogadores do Borussia Mönchengladbach, do meia Wolfgang Overath, que atuava pelo F.C. Köln (Colônia), do meia Bernd Hölzenbein e do atacante Jürgen Grabowski, ambos do Eintracht Frankfurt.

Na Copa de 1974, Netzer era reserva de Bonhof e de Overath, um dos motivos pelos quais fizeram com que ele tivesse pouca visibilidade naquele mundial, e em 1970, pouco antes do início da Copa no México, foi cortado da Seleção devido a uma séria contusão. Desse modo, faz-se necessária uma breve apresentação desse jogador que ficou à sombra de outros craques da época: seu nome completo é Günter Theodor Netzer, um filho de Mönchengladbach, nascido em 14 de setembro de 1944, quando a cidade ainda se chamava München Gladbach. Com a Seleção da Alemanha Ocidental, conquistou dois títulos: a Copa Europa de 1972 e a Copa do Mundo de 1974. Ainda hoje, Netzer é considerado um dos melhores meio campistas na história da Bundesliga, o Campeonato Alemão. Inclusive, no início dos anos 1970, o jogador era uma das principais estrelas não só por seu desempenho técnico envergando a camisa do Borussia Mönchengladbach, mas também por levar uma vida considerada extravagante para a época: seus cabelos longos, mais parecendo um roqueiro ou um hippie rodeado de mulheres atraentes, e sua paixão por carros possantes, além de ter sido proprietário da discoteca “Lover’s Lane” em Gladbach. Em 1972 e 1973, no auge da carreira, foi eleito jogador do ano na Alemanha Ocidental. Além disso, após se afastar dos gramados, Günter Netzer fez carreira como dirigente do Hamburger SV nos anos 1980 e como comentarista esportivo do Canal de TV ARD (Das Erste) a partir dos anos 1990, até 2008. Tem atuado também como empresário nos ramos de publicidade e comunicação. Em 2018, Günter Netzer foi eternizado no “Hall da Fama do Futebol Alemão”, no Museu da Federação Alemã, na cidade de Dortmund.

Ainda sobre a Seleção Alemã, o treinador Helmut Schön preferia escalar como titular Wolfgang Overath na função de armador das jogadas, deixando Günter Netzer no banco de reservas, o que gerou uma concorrência e até mesmo uma rivalidade entre os dois jogadores no início dos anos 1970. O mesmo ocorreu na Copa de 1974, sob a alegação de que Netzer, já atuando pelo Real Madrid, estava fora de forma. Naquele mundial, disputou uma única partida, a da derrota por 1 a 0 para a Seleção da Alemanha Oriental, ao entrar aos 25 minutos do segundo tempo, substituindo Overath no meio campo. Mais tarde, o Gladbacher chegaria a declarar que não se sentia campeão mundial, por ter atuado por apenas 20 minutos naquela Copa.

Em termos de estilo de jogo, Günter Netzer era considerado a personificação do meia armador clássico, com precisão nos lançamentos longos e com grande aproveitamento na cobrança de faltas e em jogadas de escanteio, além de ser considerado um líder em campo. Como poderemos constatar a seguir, esse “rebelde do futebol” narra várias estações de sua vida, desde a dura infância no pós-guerra, em sua cidade natal.

Aus der Tiefe des Raumes: Mein Leben

Antes de entrarmos em detalhes sobre a autobiografia de Günter Netzer, cabe-nos tentar esclarecer seu título: “Aus der Tiefe des Raumes”. Literalmente, significa “Da profundeza do espaço” e, segundo Peter Unfried, redator chefe do jornal taz, a expressão é uma citação de Karl Heinz Bohrer, editor chefe do Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ), que teria sido um dos responsáveis pela criação do “Mito de Wembley”, ao formular a seguinte frase sobre um gol assinalado por Günter Netzer na partida disputada contra a Seleção da Inglaterra, pelas eliminatórias da Copa Europa, em 29 de abril de 1972: “Netzer veio da profundeza do espaço” („Netzer kam aus der Tiefe des Raumes“) (UNFRIED, 2012). Naquela oportunidade, o jogador foi eleito o herói da partida, que terminou com a vitória da Seleção da Alemanha Ocidental pelo placar de 3 a 1, em pleno “templo sagrado” do futebol inglês, onde a Seleção havia sido derrotada na final da Copa de 1966 pelos anfitriões.

Por sua vez, esclarecido o título, é importante também analisar a capa do livro, para podermos refletir sobre questões de ordem teórica, quando o assunto é uma suposta autobiografia, que teria sido escrita por seu autor, o qual teria contado com a colaboração ou mesmo coautoria de um profissional da escrita, algo sempre muito difícil de mensurar quanto a possíveis intervenções no relato autobiográfico. Temos em mente que toda capa de livro é um paratexto que tem o potencial de dialogar com o texto em si. Não é diferente com o livro Aus der Tiefe des Raumes: Mein Leben, conforme podemos observar abaixo:

Günter Netzer
Capa do livro Aus der Tiefe des Raumes: Mein Leben (2004), de Günter Netzer com colaboração de Helmut Schümann. Fonte: divulgação

Inicialmente, a análise da capa nos permite algumas inferências: o maior destaque é de ordem visual, tanto pela imagem do rosto do ex-jogador Günter Netzer, quanto de seu nome em caixa alta e com letras garrafais; já o título, também em caixa alta, possui caracteres reduzidos, bem como o subtítulo, em caixa baixa e cor vermelha, diferindo dos demais elementos textuais em preto; sobreposto à palavra NETZER, figura em caracteres muito pequenos a indicação da coautoria ou colaboração: “mit Helmut Schümann”. Não se pode ter dúvida de que se trata de estratégias de marketing editorial, pois o destaque de capa é todo dado ao jogador, o que reforça a ideia para o leitor de que se trata de uma autobiografia stricto sensu.

Posto isto, analisemos algumas passagens do livro de Günter Netzer. Inicialmente, o ex-jogador narra sobre sua infância, e também como foi seu ingresso na carreira futebolística, na equipe juvenil do 1º. F.C. Mönchengladbach. Diversos aspectos são tratados: a guerra como um tema tabu, o pós-guerra, os pais, os parentes, o período escolar, as primeiras experiências com o futebol e com a paixão de dirigir carros, um novo penteado, a vida em família, o “Milagre Econômico” (Wirtschaftswunder) na década de 1950 e o “Milagre de Berna” (Wunder von Bern), com a conquista do título mundial pela Seleção da Alemanha Ocidental em 1954, quando o país dividido e esfacelado voltava a vencer um torneio esportivo em âmbito mundial.

Vários craques dos anos 1960 e 1970 na Alemanha Ocidental pertenceram à geração que nasceu pouco antes ou durante a Segunda Guerra Mundial. Este é o caso de Günter Netzer, nascido em 14 de setembro de 1944, quando a derrota alemã já se anunciava, e enquanto o morticínio em campos de concentração e extermínio permanecia a todo vapor. O narrador autoral apresenta da seguinte forma seu nascimento:

Na realidade, não começou bem. Quando eu tinha cinco dias de vida – assim me foi relatado mais tarde –, as jovens em pós-parto, internadas no Hospital Nossa Senhora Auxiliadora, precisaram ir para o porão, porque lá do alto as bombas caíam sobre Mönchengladbach. Era 19 de setembro de 1944, e quando as jovens mães, entre elas minha mãe comigo nos braços, retornaram para cima, Mönchengladbach tinha se tornado em grande parte somente uma porção de pedras, entulhos e cinzas. (NETZER, 2004, p. 7)[1]

Günter Netzer nasceu, pois, em uma época muito difícil. Desde pequeno, conheceu a dura realidade de uma vida ao mesmo tempo, precária e de reconstrução, em que o esforço e a capacidade de se impor de cada um eram decisivos, seja no comércio e no trabalho dos pais, seja na escola, ou mesmo no time da rua. Um tempo em que se vivia à sombra de um passado nefasto, sobre o qual pouco se falava, em uma espécie de tabu coletivo. O próprio narrador adulto se indaga por que não lhe restaram lembranças das paisagens de escombros:

Nasci na guerra, mas o que, outrora, minha mãe sentiu quando fugiu para o porão do hospital me levando nos braços, eu não sei. A guerra, lá em casa, nunca foi um grande tema. O nacional-socialismo, igualmente. Apesar – ou, talvez, porque – de um de seus líderes diabólicos, o ministro da propaganda Joseph Goebbels, logo aquele que era um filho da cidade, que nasceu em Rheydt, uma cidadezinha vizinha que mais tarde seria incorporada a Mönchengladbach. Meu pai foi soldado, motorista de caminhão, eu creio, na França, mas mesmo sobre isso só se contava esporadicamente, quando estávamos sentados à mesa e a pequena família jogava carteado. Não era incomum na época silenciar e suprimir da memória o passado de mil anos. Entretanto, por que eu não tenho lembranças das consequências da guerra, mas que eram visíveis em toda parte do país, e que devem ter sido visíveis também para mim? (NETZER, 2004, p. 12)[2]

Embora essa aparente dúvida seja lançada pelo narrador, indícios das consequências da guerra se faziam presentes em detalhes do cotidiano, revelados em vários momentos do relato, por exemplo, que seus pais, nos anos de reconstrução, quando Günter Netzer ainda era um menino, puderam lhe presentear, inicialmente, com uma bola de borracha e, com a situação financeira da família melhorando, posteriormente, com uma bola de capotão, os meninos da rua chamada Gasthausstrasse (literalmente: Rua da Pousada), que jogavam com bolas improvisadas, feitas de restos de tecido, ou mesmo com latas de conserva (NETZER, 2004, p. 7-8). Aliás, este foi o bilhete de ingresso de Netzer no time da rua: o fato de ser dono de uma bola “de verdade” fez com que os garotos, maiores do que ele, permitissem que o futuro meio campista jogasse no gol…

Além disso, o narrador autoral destaca alguns aspectos em sua infância, que serão, mais tarde, importantes para entender a vida adulta, como, por exemplo, sua paixão por carros, ou também seus cabelos longos, que o tornava um “rebelde da bola” (Rebell am Ball) (NETZER, 2004, p. 14). Em certo momento, como uma digressão, o adulto apresenta um breve balanço da vida de garoto que, mais tarde, se tornaria um dos principais jogadores alemães:

Um filho da guerra, mirrado e com cabelo cacheado – na realidade, nem tudo foi projetado dessa forma, para fazer de mim um regente do meio campo, um meia armador com cabelos ao vento e um ponto fraco por carros bonitos e velozes, preferencialmente por Ferraris. Por outro lado, deve-se reconhecer que foram necessidades de luxo, que o pequeno Günter teve em seus anos de menino. (NETZER, 2004, p. 12)[3]

Por fim, também deve ser destacado que o olhar do narrador adulto, em parte, se ajusta e, em parte, se diferencia do olhar do menino e do adolescente que, anos mais tarde, ingressaria na carreira de futebol e escreveria história na Bundesliga e na Seleção da Alemanha Ocidental.

Jens Lehmann, um dos grandes goleiros alemães de todos os tempos

Diferindo de Günter Netzer, por assim dizer, Jens Lehmann não é um “filho da guerra”, pertence a outra geração, à dos “filhos da divisão alemã”, que mais tarde vivenciariam o sopro de otimismo com a Queda do Muro de Berlim em 09 de novembro de 1989 e a Reunificação da Alemanha, celebrada em 03 de outubro de 1990. Seu nome completo é Jens Gerhard Lehmann, o futuro goleiro nasceu em 10 de novembro de 1969 na cidade de Essen, no Estado de Nordrhein-Westfalen (Renânia do Norte-Vestfalia).

Jens Lehmann começou sua carreira profissional justamente naquele ano histórico de 1989, no F.C. Schalke 04, da cidade de Gelsenkirchen, considerado um dos clubes mais populares da Alemanha, quando o Schalke se encontrava na segunda divisão da Bundesliga. Dois anos mais tarde, viria o acesso e os anos de ascensão, até que, em 1997, ano em que o clube ter conquistado a Copa da UEFA, Lehmann trocou o Schalke pelo Milan. Foi uma curta passagem pelo time italiano, que culminou com a ida para o Borussia Dortmund, arquirrival do Schalke. Em memoráveis disputas entre esses dois clubes, o “Caldeirão do Ruhr” (Ruhrpott), até hoje, ferve. Cidades como Gelsenkirchen, Dortmund, Bochum, Duisburg, Essen se localizam no vale do Rio Ruhr, um afluente do Reno. O elevado número de clubes de futebol sempre marcou essa região, conhecida por ter sido, por longo tempo, um centro de produção carbonífera e de indústria do aço, o que justifica a popularidade do futebol entre os operários das fábricas e das minas de carvão.

Lehmann
Lehmann jogando pelo Arsenal em 2007. Fonte: Wikipédia

Retornado à Alemanha, Lehmann jogou de 1997 a 2002 pelo Dortmund, ano em que os auri-negros conquistaram o troféu da Bundesliga. No ano seguinte, o goleiro resolveu atravessar o Canal da Mancha e ir jogar em uma das principais ligas europeias, precisamente no clube londrino F.C. Arsenal, onde alcançou mais uma conquista: a do Campeonato Inglês. Devido às excelentes atuações por três temporadas seguidas, Lehmann se qualificou a assumir a posição de titular da Seleção Alemã, justamente para disputar o Mundial em casa, com forte concorrência com o goleiro Oliver Kahn, do Bayern de Munique.

Mesmo após o Mundial, Lehmann permaneceu como goleiro titular da Seleção Alemã no Campeonato Europeu, disputado em 2008 na Áustria e na Suíça, ano em que se transferiu do Arsenal para o VfB Stuttgart, onde atuou até 2010. No ano seguinte, retornou ao Arsenal, onde encerrou a carreira no final da temporada. Ao todo, foram 13 anos servindo à Seleção, primeiro na Sub-19 e na Sub-21, de 1990 a 1991, na Seleção Olímpica, de 1990 a 1992, e na Seleção principal, de 1998 a 2008. Além disso, Lehmann iniciou a carreira de auxiliar técnico em 2017, pelo Arsenal, e em 2019, pelo F.C. Augsburg, da Baviera. Destaca-se, ainda, o fato de Lehmann ter se formado, em 1998, em Economia pela Universidade de Münster, quando estava em plena atividade. Um quadro, aliás, bem distinto de outros jogadores alemães.

Der Wahnsinn liegt auf dem Platz

Inicialmente, do mesmo modo como procedemos em relação ao livro de Günter Netzer, cabe-nos também descrever e analisar a capa do livro de Jens Lehmann. Mais uma vez, a figura do autobiografado é destacada: o nome do goleiro aparece em letras garrafais na parte superior da capa, e vemos sua imagem em posição de prontidão, com o uniforme, tomando a metade inferior, sobre um gramado que preenche o fundo todo. Em caracteres menores, figura o título da obra: Der Wahnsinn liegt auf dem Platz (A loucura jaz sobre a cancha), e em caracteres menores ainda, entre o sobrenome do goleiro e o título do livro, está o nome do coautor ou colaborador Christof Siemes, com mínimo destaque.

Jens Lehmann
Capa do livro Der Wahnsinn liegt auf dem Platz (2010), de Jens Lehmann com colaboração de com Christof Siemes. Fonte: divulgação

Sem dúvida, tal procedimento na composição da capa demonstra que, em termos de estratégia de marketing editorial, os créditos e os destaques recaem, majoritariamente, sobre o goleiro como personalidade do esporte e como autor principal da autobiografia.

Na obra, predomina um narrador autoral em primeira pessoa, que narra sobre si próprio, traço imanente de toda autobiografia, em que autor, narrador e personagem encerram em si a mesma instância. Aliás, trata-se de um narrador autodiegético, de acordo com as categorias propostas pelo crítico francês Gerárd Genette (1979). Entre outros temas, Jens Lehmann narra sobre o jogo mais importante de sua carreira, e como ele o vivenciou: os principais momentos e a tensão antes e durante a segunda partida da final da UEFA Cup na temporada 1997/1998, disputada pelo Schalke 04 contra a Internazionale de Milão no Estádio Giuseppe Meazza. O narrador autoral narra a cobrança de penalidades máximas como se tivesse preparado para uma aula na escola:

O bilhete. Mesmo antes do jogo eu o li com atenção e tentei guardar alguns dos nomes, juntamente com as informações sobre os batedores. Longa distância, canto esquerdo, algo do gênero. Na verdade, é como aprender vocábulos, de todo modo eu tentei fazer desse jeito. Soa simples: um punhado de nomes, acrescido de alguns conceitos, pronto. Mas é como outrora na escola: As palavras, os significados ocorrem a alguém, quando se está lá na frente diante da lousa? Minha lousa é gigante: 7,32 por 2,44 metros – o gol. E a aula já dura 120 minutos, está terrivelmente quente nesta noite de início de verão, perdi três quilos desde o apito inicial duas horas atrás. Além disso, em minha sala de aula não estão sentados 30, 40 colegas de classe quietos como ratinhos, os quais se alegram por não estar lá na frente, mas, sim, eu. Não, em minha sala de aula se espremem 83.434 pessoas, loucos, torcedores de futebol. Já durante o jogo elas assoviaram tão alto, que eu precisei tapar meus ouvidos em campo. Um barulho desses eu não vivenciei nem antes, nem depois disso. E agora, quando Ivan Zamorano pega a bola, tudo fica ainda pior: 1 x 1 no tempo regular e na prorrogação [no placar agregado], quando o jogador chileno é o primeiro a caminhar para a marca do pênalti… (LEHMANN, 2010, p. 7)[4]

Na passagem citada, nota-se certa sofisticação no modo como a narrativa é construída, integrando informações precisas, como, por exemplo, o público presente no Estádio Giuseppe Meazza, na cidade de Milão, em 21 de maio de 1997, certamente um número não guardado na memória, mas consultado em alguma fonte, e também a lembrança de que o primeiro batedor fora o jogador chileno Ivan Zamorano, que atuou pela Internazionale de 1996 a 2000. Quando um relato autobiográfico se origina não apenas das lembranças e da narrativa do autobiografado, mas também da intervenção de um coautor ou colaborador, em geral, alguém que lida com a escrita, é praticamente impossível dimensionar o grau de tal intervenção. Essa metáfora da aula, por exemplo, foi inspirada por Lehmann ou por Siemes? Difícil de responder. Independente disso, ela se adequa bem, pois aproxima a solidão do aluno diante da lousa, exposto aos colegas de classe, à solidão do goleiro debaixo da trave, exposto a uma multidão tensa na arquibancada, que aguarda um triunfo histórico para a Inter ou para o Schalke.

Além disso, nota-se que, na cena, há uma presentificação do tempo, como se o narrador retornasse àquela noite e a vivenciasse novamente, pelo menos em memória. Todavia, há nessa cena um elemento crucial que evidencia, por assim dizer, uma estratégia empregada pelo narrador para confundir o leitor desatento: o bilhete. Na sequência da cena, o narrador explicita essa estratégia, ao produzir a junção entre duas partidas históricas para Jens Lehmann: aquela partida de 1997, na final da UEFA Cup, e a partida semifinal da Copa do Mundo de 2006, reunindo as seleções da Alemanha e da Argentina, concluída também em disputa de pênaltis:

Um momento, você talvez agora diga, Chile? Mas o jogo com o bilhete foi contra a Argentina! Já sabemos de tudo faz tempo, o conto de fadas de verão, narrado milhares de vezes: Copa do Mundo de 2006, semifinal em Berlim, 1×1 no tempo normal e na prorrogação, gols de Ayala e Klose. E o primeiro batedor de pênaltis dos argentinos se chamava Cruz, Julio Ricardo Cruz! (LEHMANN, 2010, p. 7-8)[5]

Em certa medida, não deixa de ser uma estratégia dialógica monologal, ou seja, o narrador autoral aborda, discursivamente, o leitor, para retrucar que o bilhete que o orientou nas cobranças de pênalti na semifinal da Copa de 2006 tenha sido o único ou o mais importante da carreira. A sequência da narrativa não deixa dúvida quanto a isso:

Sim, isso. Mas há ainda um pedaço de papel em minha vida. E este é para mim ainda mais importante que aquele bilhete do Schlosshotel Grunewald, o qual foi leiloado por um milhão de euros. Aparentemente, tais bilhetes fazem parte de meus sucessos como livros de orações pertencem à igreja. Quem escreveu o exemplar que me auxiliou a vencer o jogo mais importante de minha vida foi Huub Stevens, em 21 de maio de 1997. Em Milão. (LEHMANN, 2010, p. 8)[6]

Um aspecto narrativo chama à atenção na obra: o narrador demonstra ao longo do texto que em suas memórias daquela época permaneceram certas lacunas, e que ele joga com o tempo, ao empregar recursos narrativos de flashbacks e flash forwards. Isso fica evidente em algumas passagens do livro, nas quais o narrador faz uso de digressões no presente do indicativo, como na citação a seguir:

Ou será que foi em Erba, no Lago de Como? Às vezes, também os detalhes dos grandes momentos acabam se perdendo, tão imensa é a concentração no real, o jogo. Lendas giram em torno do que é dito, do que é feito no vestiário antes do jogo ou durante o intervalo. Tenho de admitir: Para mim os minutos no vestiário são um tempo sem memória. […] (LEHMANN, 2010, p. 8)[7]

Trata-se, pois, de uma instância narrativa que se constrói de maneira complexa, e que reconhece as artimanhas do tempo e da memória. Em um jogo de temporalidades, daquele que narra mais de uma década mais tarde e daquele que vivenciara os momentos de glória do Schalke 04 no passado, o narrador reconhece que não é senhor da memória, pois está fadado ao esquecimento:

Eu ainda sei que eu tinha o bilhete de Milão mesmo antes do jogo. Mas ele foi escrito somente no vestiário do Estádio Giuseppe Meazza ou, senão, já no Hotel Castello di Casíglio em Erba? Aqui, a Seleção Alemã já havia residido na Copa de 1990, e isto deveria ser também um bom presságio para nós, para a equipe do Schalke 04. Apenas esse único jogo nos separava ainda do maior sucesso da história do clube – a conquista da Copa da UEFA. […] (LEHMANN, 2010, p. 9)[8]

Após um longo flahsback, a narrativa retorna ao ponto inicial: a cobrança de pênaltis. Mais uma vez, temos uma digressão em que o narrador reflete sobre a condição do goleiro na decisão por pênaltis, e também sobre a pouca experiência que tinha nesse tipo de decisão:

Disputa por pênaltis. Hora do goleiro. Assim se diz. Porque o goleiro, aparentemente, não tem nada a perder. Mas isso é bobagem. A pressão sobre o goleiro é imensa. Toda equipe espera em seu íntimo, que seu arqueiro agarre, pelo menos, uma cobrança. Nesse caso não há nada a perder? Na última decisão por pênaltis da qual participei, meu clube ainda se chamava Schwarz-Weiβ-Essen, isso foi no time B de juniores. Na Copa da Alemanha, eu sempre fui eliminado sem atuação espetacular, e no Campeonato Alemão não há decisão por pênaltis. Portanto, isto aqui foi minha primeira decisão por pênaltis como profissional e como pegador de pênaltis, na final da Copa da UEFA. […] (LEHMANN, 2010, p. 14)[9]

Além disso, nota-se que o narrador destaca certos aspectos que, posteriormente, foram importantes para entender sua carreira, como, por exemplo, o fato de que Lehmann, até aquela final em 1997, era um goleiro desconhecido na Europa, mas que, mais tarde, jogaria tanto pelo Milan na Itália, como pelo Arsenal de Londres.

Em algum momento, se cristaliza do turbilhão de sentimentos em meu íntimo a questão: Okay, o que o jogo significa agora para mim? É minha primeira e grande vitória, e ela gruda na gente. De agora em diante todos os outros sabem: “Ah, esse é um vencedor.” Isso tem muito valor. O que vem então, os títulos com o Dortmund, com o Arsenal, a Copa do Mundo e a Copa Europa – tudo isso tem por base esse momento de outrora em maio. E em um bilhete, do qual não sei mais, onde ele ficou. Mas uma coisa é certa: Ele também teria merecido um lugar no museu. (LEHMANN, 2010, p. 17)[10]

Por fim, deve ser destacado também que a narrativa revela uma forte identificação do narrador autoral com o Schalke 04, mais até do que a identificação com a Seleção Alemã. Além disso, todas essas passagens citadas da obra Der Wahnsinn bleibt auf dem Platz demonstram o grau de sofisticação no modo de lidar com temporalidades diversas, ao mesmo tempo em que traz diversos aspectos do íntimo do goleiro.

Ser ou não ser uma autobiografia – à guisa de conclusão

A definição clássica de autobiografia aponta para uma narrativa em primeira pessoa, em que autor, narrador e personagem são coincidentes (LEJEUNE, 2008, p. 15). Em termos conceituais, se Lejeune, num primeiro momento, define a “autobiografia” como sendo a “narrativa retrospectiva que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (2008, p. 16), em seguida, o teórico postula o chamado “pacto autobiográfico”: a “relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem” (2008, p. 18).

Outro aspecto destacado por Lejeune ao abordar o gênero autobiográfico, mas que diz respeito também à biografia, é o interesse despertado no leitor pelo nome daquele cuja vida está sendo narrada: “O nome, por outro lado, na medida em que figura no título do livro, programa um certo tipo de leitura: ele suscita a curiosidade biográfica e o investimento imaginário na existência de um outro” (LEJEUNE, 2008, p. 220).

Sem dúvida, a autobiografia é um gênero textual que pertence ao discurso memorialístico, em que se associam a literatura, a história e o jornalismo. Não é por acaso, pois, que coautores ou colaboradores de autobiografias – algo que, em termos conceituais, parece um contrassenso em si – sejam “profissionais da escrita” oriundos desses âmbitos.

A leitura e a análise das obras Aus der Tiefe des Raumes, de Günter Netzer com Helmut Schümann, e Der Wahnsinn liegt auf dem Platz, de Jens Lehmann com Cristof Siemes, nos permitiram vislumbrar o quão complexa é a questão da autoria em uma autobiografia. Mesmo que a definição clássica de autobiografia tenha sido ampliada em diversos aspectos, permanece inacessível o grau de intervenção que um coautor ou colaborador pode ter tido no processo de elaboração e redação de determinado relato autobiográfico. Isso não nos impede, todavia, de lançar algumas questões: Foram realizadas entrevistas entre o autobiografado e o coautor ou colaborador? Foram gravados depoimentos do autobiografado? Quem fez o levantamento minucioso da vida do autobiografado? Quem organizou o relato em suas temporalidades? A intervenção foi apenas em nível de revisão textual final, ou esta foi mais profunda? Todas essas questões em relação às autobiografias de Günter Netzer e de Jens Lehmann permanecem em aberto.

Por sua vez, devemos pensar a autobiografia esportiva também em sua especificidade. Como bem aponta Eduardo de Oliveira Bueno Queiroz Fontes em sua Tese de Doutorado intitulada O torcer no futebol: um estudo comparado entre os relatos autobiográficos de Nick Hornby (Arsenal) e Grant Farred (Liverpool), “autobiografias esportivas evidenciam as tensões e relações dos narradores com os motivos distintos da própria escrita” (FONTES, 2020, p. 10). Como pudemos constatar, Netzer e Lehmann, certamente, tiveram motivos e momentos distintos para produzirem seus relatos. O fato de pertencerem a gerações diferentes e de terem atuado como atletas também em períodos distintos nos permitiu algumas inferências quanto à relação com suas carreiras – enquanto já faziam 27 anos do fim da carreira futebolística quando Netzer publicou sua autobiografia, Lehmann ainda estava nos últimos anos de atividade como atleta. Sem dúvida, como Fontes ressalta acertadamente, em autobiografias, “a escrita afetiva é um jeito de se colocar no mundo para narrar algo sobre alguém, alguma situação, algum ambiente, alguma organização, algum organismo. É um convite a viver e nomear o vivido; a sentir e nomear o sentido; a afetar(-se) e nomear o afetado e afetivo.” (FONTES, 2020, p. 10) Seguramente, a afetividade aflora de ambas as autobiografias analisadas, seja na escolha do vocabulário, seja no modo de lidar com temporalidades diversas na organização da narrativa.

Em adição a essa conjectura, há um aspecto apontado por Fontes em relação a autobiografias esportivas, que, se não nos auxilia a responder as questões lançadas anteriormente, pelo menos corrobora nossa opinião em termos de complexidade: “esse tipo de obras, em geral, desperta pouco interesse acadêmico, por, supostamente, serem ‘fúteis’ e, também, por serem comumente escritas com o auxílio da figura do ‘ghostwriter’ ou do redator, explicitamente revelado nos paratextos” (FONTES, 2020, p. 14). Talvez, o termo “redator” seja muito mais apropriado do que o de “coautor” em obras como as atribuídas a Netzer e a Lehmann, lembrando que “tal ocorrência se deve ao fato de que vários atletas que publicam autobiografias não se sentiriam capazes de escrever sua própria história de maneira coerente e coesa” (FONTES, 2020, p. 14-15). Desse modo, Helmut Schümann e, respectivamente, Christof Siemes receberam os devidos créditos nos paratextos, sendo a capa um dos principais, embora com pouquíssimo destaque visual para seus nomes, não são, pois, ghostwriter, e colaboraram com os atletas para trazer à luz seus relatos de vida. Aliás, cabe ressaltar que Netzer tinha experiência de longa data no lidar com a escrita, pois lançou e editou em 1965 o jornal FohlenEcho, do Borussia Mönchengladbach, publicado ainda hoje para associados do clube.

Com relação aos redatores, Helmut Schümann, nascido em Düsseldorf em 1956, é jornalista de profissão, atuou como redator de renomados órgãos de imprensa alemães, entre eles o Süddeutsche Zeitung, a revista Der Spiegel e o Berliner Zeitung, e trabalhou também como repórter do Tagesspiegel em Berlim, onde reside; Christof Siemes, nascido em Mönchengladbach em 1964, é formado em Estudos Germanísticos, Filosofia e História da Arte, e atua desde 1993 como redator e repórter do jornal Die Zeit em Hamburgo, além de ser membro da Academia Alemã de Cultura Futebolística e de ter lançado em 2003 o romance Das Wunder von Bern (2003; O Milagre de Berna), que serviu de base para o filme Das Wunder von Bern (2004), do cineasta Sönke Wortmann. Constata-se, portanto, que ambos têm experiência no âmbito do jornalismo, sendo que Siemes também é versado nos âmbitos da literatura e da cultura. Ambos são, portanto, “profissionais da escrita” e assessoraram Günter Netzer e Jens Lehmann em suas respectivas autobiografias esportivas.

Antes de encerrarmos este artigo, nos demoremos mais um pouco no termo “redator”, empregado por Fontes. De acordo com Nilson Lage, trata-se de um termo do âmbito jornalístico. O teórico apresenta para esse termo duas definições que se complementam: primeiro, “aquele que redige. Legalmente, o jornalista que produz textos informativos, editoriais, crônicas ou comentários” (LAGE, 1998, p. 74); segundo, “função jornalística que compreende a redação de matérias para publicação ou difusão” (LAGE, 2002, p. 60). Revela-se, pois, a atuação de um “profissional da escrita”, como já havíamos salientado anteriormente. Mas diferente do que se entenderia como “coautor”, seja em seu sentido jurídico, seja em termos de direitos autorais. De acordo com o jurista Nichollas Alem, “[n]a coautoria a obra literária, artística ou científica é criada conjuntamente por dois ou mais autores. Os coautores recebem a proteção jurídica tanto por suas contribuições individuais como pelo conjunto da obra” (ALEM, 2016; grifos nossos). Se pensarmos nas autobiografias de Netzer e de Lehmann, nos parece que coautoria não é um termo preciso, sobretudo ao lermos a definição de “colaborador”, igualmente proposta por Nichollas Alem:

o colaborador participa de maneira secundária e acessória na obra, sem contribuir criativamente com seu esforço intelectual. Ele pode atuar, por exemplo, na produção, revisão, na fiscalização e até na atualização da criação. Apesar de poder ser decisivo no resultado final, sua participação não costuma ter natureza autoral. Assim, o colaborador não tem os mesmos direitos que um coautor. (ALEM, 2016; grifos nossos)

Eis, aí, uma das chaves para as questões lançadas neste artigo: a noção de criação, reservada ao autor individual ou a autores em coautoria, e a noção da colaboração para a criação, tornando, assim, a relação entre autor e colaborador assimétrica, inclusive em termos jurídicos. Se isto não dirime as dúvidas levantadas ao longo do texto, pelo menos, nos permite entender que a leitura e a análise de Aus der Tiefe des Raumes e, respectivamente, Der Wahnsinn liegt auf dem Platz tornaram evidente a legitimidade de se empregar o termo autobiografia para classificá-las segundo o gênero literário, assegurando a criação aos autobiografados Günter Netzer e Jens Lehmann, e o estatuto de colaboradores aos redatores Helmut Schümann e Christof Siemes. Guardadas as devidas proporções, encontramos discussões semelhantes em torno do estatuto de autoria em relatos de testemunho, outro gênero pertencente ao “espaço biográfico”, principalmente em relação à teoria do testimonio latino-americano (CORNELSEN, 2012), mas estas demandariam outras reflexões.

Notas

[1] Todas as traduções são de nossa autoria. No original:

Eigentlich fing es nicht gut an. Als ich fünf Tage alt war – so wurde sp6ater erzählt –, mussten die Wöcherinnen des Maria-Hilf-Krankenhauses in den Keller, weil oben über Mönchengladbach die Bomben fielen. Es war der 19. September 1944, und als die jungen Mütter, darunter meine Mutter mit mi rim Arm, wieder hochkamen, war Mönchengladbach zu groβen Teilen nur noch ein Haufen Steine, Schutt und Asche.

[2] No original:

Ich wurde im Krieg geboren, aber was meine Mutter damals empfand, als sie mit mir im Arm in den Keller des Krankenhauses floh, weiβ ich nicht. Der Krieg war bei uns daheim nie ein groβes Thema. Der Nationalsozialismus ebenfalls nicht. Obwohl – oder vielleicht auch weil – einer seiner teuflischen Führer, der Propagandaminister Joseph Goebbels, ausgerechnet ein Sohn der Stadt war, geboren in dem später eingemeindeten Nachbarstädtchen Rheydt. Mein Vater war Soldat gewesen, Lastwagenfahrer, ich glaube, in Frankreich, aber auch darüber wurde nur spärlich erzählt, wenn wir abends zu Tisch saβen und die kleine Familie Karten spielte. Das allein war ja nicht ungewöhnlich in der Zeit, dass die gerade vergangenen tausend Jahre verschwiegen und verdrängt wurden. Aber warum bloβ habe ich keine Erinnerungen an die Kriegsfolgen, die doch sichtbar waren überall im Land und auch mir sichtbar gewesen sein müssen?

[3] No original:

Ein Kriegskind, schmächtig und mit lockigem Haar – eigentlich war alles zusammengenommen nicht so angelegt, dass aus mir mal ein Regisseur des Mittelfeldes wurde, ein Spielmacher mit wehendem Haar und einem Faible für schöne, schnelle Autos, vorzugsweise für Ferraris. Andererseits – man muss wohl sagen, dass es ziemliche Luxusnöte waren, die der kleine Günter in jungen Jahren hatte.

[4] No original:

Der Zettel. Schon vor dem Spiel habe ich ihn mir genau angeschaut und versucht, mir ein paar der Namen zu merken, zusammen mit den Informationen über den Schützen. Langer Anlauf, linke Ecke, so was. Eigentlich ist es wie Vokabeln lernen, jedenfalls habe ich versucht, es so zu machen. Klingt einfach: eine Handvoll Namen, ein paar Begriffe dazu, fertig. Aber es ist wie früher in der Schule: Fallen einem die Wörter, die Bedeutungen auch ein, wenn man alleine vorne an der Tafel steht? Meine Tafel ist riesig, 7,32 mal 2,44 Meter – das Tor. Und die Schulstunde dautert bereits 120 Minuten, es ist drückend heiβ an diesem Frühsommerabend, drei Kilo Gewicht habe ich seit dem Anpfiff vor gut zwei Stunden verloren. Auβerdem sitzen in meinem Klassenraum nicht mucksmäuschenstill 30, 40 Mitschüler, die froh sind, dass sie nicht dran sind, sondern ich vorne stehe. Nein, in meinem Klassenraum drängen sich 83.434 Menschen, Verrückte, Fuβballfans. Schon während des Spiels haben sie so laut gepfiffen, dass ich mir auf dem Platz die Ohren zuhalten musste. So einen Lärm habe ich weder davor noch danach je erlebt. Und jetzt, als Ivan Zamorano den Ball nimmt, wird alles noch schlimmer: 1:1 steht es nach regulärer Spielzeit und Verlängerung, als der chilenische Nationalspieler als Erster zum Elfmeterpunkt…

[5] No original:

Moment, mal, werden Sie jetzt vielleicht sagen, Chile? Aber das Spiel mit dem Zettel war doch gegen Argentinien! Wissen wir doch längst alles, das Sommermärchen, tausendmal erzählt: Weltmeisterschaft 2006, Viertelfinale in Berlin, 1:1 nach Verlängerung, Tore von Ayala und Klose. Und der erste Elfmeterschütze der Argentinier hieβ doch Cruz, Julio Ricardo Cruz!

[6] No original:

Ja, schon. Aber es gibt da noch ein Stück Papier in meinem Leben. Und das ist für mich noch wichtiger als jener Zettel aus dem Schlosshotel Grunewald, der nach der WM für eine Million Euro versteigert wurde. Offenbar gehören solche Zettel zu meinen Erfolgen wie Gebetsbücher in die Kirche. Das Exemplar, das mir half, das wichtigste Spiel meines Lebens zu gewinnen, hat Huub Stevens geschrieben, am 21. Mai 1997. In Mailand.

[7] No original:

Oder war es doch in Erba, am Comer See? Mitunter gehen auch die Details der ganz groβen Momente verloren, so gewaltig ist die Konzentration auf das Eigentliche, das Spiel. Legenden ranken sich um das, was vor einem Spiel oder während der Halbzeitpause in der Kabine gesagt, getan wird. Ich muss gestehen: Für mich sind die Minuten in der Kabine eine erinnerungslose Zeit. […]

[8] No original:

Ich weiβ noch, dass ich den Mailänder Zettel schon vor dem Spiel hatte. Aber wurde er erst in der Kabine des Giuseppe-Meazza-Stadions geschrieben oder nicht doch schon im Hotel Castello di Casíglio in Erba? Hier hatte bereits die deutsche Nationalmannschaft bei der WM 1990 gewohnt, und das sollte auch ein gutes Omen für uns sein, für die Mannschaft von Schalke 04. Nur dieses eine Spiel trennte uns noch vom gröβten Erfolg der Vereinsgeschichte – dem Gewinn des UEFA-Pokals. […]

[9] No original:

Elfmeterschieβen. Torwarstunde. Sagt man so. Weil der Torwart angeblich nichts zu verlieren hat. Aber das ist Quatsch. Der Druck auf den Torwart ist immens. Jede Mannschaft erwartet insgeheim, dass der eigene Keeper mindestens einen hält. Bei meinem letzten Elfmeterschieβen hieβ mein Verein noch Schwarz-Weiβ Essen, das war in der B Jugend. Im DFB-Pokal war ich immer unspetakulär ausgeschieden, und in der Bundesliga gibt es kein Elfmeterschieβen. Also war das hier meine Profi-Premiere als Elfmetertöter, im Finale des UEFA-Pokals. […]

[10] No original:

Irgendwann kristallisiert sich aus dem Tohuwabohu der Gefühle in meinem Inneren eine Frage heraus: Okay, was bedeutet das Spiel jetzt für mich? Es ist mein erster ganz groβer Sieg und der bleibt an einem haften. Von jetzt an wissen alle anderen: „Oh, das ist ein Gewinner.“ Das ist viel wert. Was nun kommt, die Titel mit Dortmund, mit Arsenal, die WM und die EM – das alles gründet auf diesem Moment einst im Mai. Und auf einem Zettel, von dem ich nicht mal mehr weiβ, wo er geblieben ist. Aber eins ist gewiss: Auch er hätte einen Platz im Museum verdient.

Referências Bibliográficas

ALEM, Nichollas. Qual a diferença entre ser coautor e colaborador de uma obra? Instituto Idea. 07 nov. 2016. Disponível em: http://institutodea.com/artigo/qual-diferenca-entre-ser-coautor-e-colaborador-de-uma-obra/#:~:text=Na%20coautoria%20a%20obra%20liter%C3%A1ria,(salvo%20conven%C3%A7%C3%A3o%20ao%20contr%C3%A1rio). Acesso em: 22 dez. 2022.

CORNELSEN, Memória e futebol no Brasil: escritas da vida de jogadores brasileiros. História: Questões & Debates. Curitiba, v. 68, n. 2, p. 133-159, jul./dez. 2020. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/historia/article/view/72559. Acesso em: 15 dez. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. O ‘Testimonio’ na América Latina. In: SARMENTO-PANTOJA, Augusto et al. (orgs.). Memória e Resistência: percursos, histórias e identidades. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2012. p. 90-102.

DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza, São Paulo: Edusp, 2009.

FONTES, Eduardo de Oliveira Bueno Queiroz. O torcer no futebol: um estudo comparado entre os relatos autobiográficos de Nick Hornby (Arsenal) e Grant Farred (Liverpool). Tese de Doutorado. Belo Horizonte: EEFFTO/UFMG, 2020.

GENETTE, Gérard. O discurso da narrativa. trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Ed. Arcádia, 1979.

GOSENS, Robin; KRISCHEL, Mario. Träumen lohnt sich. Mein etwa anderer Weg zum Fuβballprofi. München: Edel Books, 2021.

LAGE, Nilson. Estrutura da notícia. São Paulo: Ática, 2002. [Princípios; 37]

LAGE, Nilson. Linguagem jornalística. 6ª. ed., São Paulo: Ática, 1998. [Princípios; 29]

LEHMANN, Jens. Der Wahnsinn liegt auf dem Platz. com a colaboração de Christof Siemes, Köln: Kiepenheuer & Witsch, 2010.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

NETZER, Günter. Aus der Tiefe des Raumes: Mein Leben. com a colaboração de Helmut Schümann, Hamburg: Rowohlt, 2004.

SEELER, Uwe; KÖSTER, Roman. Danke, Fuβball!: Mein Leben. Hamburg: Rowohlt, 2004.

UNFRIED, Peter. Kam Netzer aus der Tiefe des Raumes? taz. 20 abr. 2012. Disponível em: https://taz.de/Der-Mythos-von-Wembley/!5095764/. Acesso em: 18 dez. 2022.

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Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

CORNELSEN, Elcio Loureiro. O Futebol na Literatura Alemã – Parte VI: Autobiografias de dois atletas que vestiram a camisa da Seleção Alemã. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 26, 2022.
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