O goleiro é a antítese.

Joga com a mão, veste-se diferente de todos os demais, está ali para evitar o que faz o jogo ter sentido.

É aquele que silencia o fanático, às vésperas da implosão do grito alucinado.

E único a quem o erro não é passível de perdão.

O goleiro é um autêntico colecionador de ingratidões.

Um mártir.

Que se joga, que se entrega, que usa o próprio corpo como obstáculo ao rival.

É o destemido. O ensandecido. O atrevido.

O solitário, também.

Aquele que grita quando todos emudecem. Que comemora sozinho, na imensidão de sua área, quando poucos lembram sequer de sua existência.

O goleiro é um matemático. Um geômetra.

Que calcula ângulos, raios, parábolas, na velocidade de um instante. Que subverte a óptica, a noção de espaço vazio, a lógica.

Goleiro
Vista de trás do gol do jogo de veteranos na periferia de São Paulo. Foto: Rogério Sousa Silva

O goleiro é um jogador de pôquer.

Um blefador nato.

Que, na pura incapacidade de ocupar toda a linha derradeira, insinua-se, provoca o adversário, escancara um lado de propósito para que o outro tenha a ilusão do desleixo, da desproteção.

É um ilusionista, portanto.

Que oferece esse lado para que, justo lá, a defesa seja possível. E assim evitar mais um gol que se julgava certo.

O goleiro é um estrategista. Enxadrista. Protagonista de um dos mais belos duelos do futebol.

Quando, diante do artilheiro, se agiganta, torna-se maior do que de fato é. E, frente a frente, no limiar de suas possibilidades, define o futuro de toda uma geração.

É mais do que uma questão de gol e defesa.

É a história sendo escrita.

E o goleiro estará lá. Em toda a sua complexidade. Para provar que, afinal, a magia pode estar também no não-gol.


(26 de abril – Dia do Goleiro)

 

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Phelipe Caldas

Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos, mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba, graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela UFPB. É escritor e cronista, com quatro livros já publicados. Integra o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade (LELuS/UFSCar) e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnografias Urbanas (Guetu/UFPB). É membro-fundador da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme).

Como citar

CALDAS, Phelipe. O goleiro. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 54, 2021.
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