O jogo tem que continuar… e a luta também!
Quando Gilmar partiu para outros campos, em junho de 2019, não bastasse o fato de nos vermos privados do convívio de um grande amigo e professor, perdemos também a principal referência da geografia dos esportes no país. Um caminho trilhado, praticamente sozinho, desde a década de 1990, em meio ao desconhecimento inicial, misturado com desconfiança e desdém de uma parte significativa do meio acadêmico. Uma tarefa árdua e bem-sucedida.
Gilmar Mascarenhas foi o primeiro geógrafo brasileiro a desenvolver uma obra consistente, relacionando conceitos e temas da ciência geográfica à compreensão do desenvolvimento do esporte enquanto fenômeno de massas, traço cultural marcante das sociedades contemporâneas. Cabe a ele também, o pioneirismo de “escalar”, na mesma equipe os craques Milton Santos e Nilton Santos, ao introduzir uma perspectiva crítica com viés marxista ao estudo da geografia dos esportes. Como resultado, abriu-se um vasto campo de investigações no qual o estádio reflete as mutações do espaço urbano e surge como arena desses conflitos. Na esteira de sua obra, surgiram inúmeros trabalhos, que ultrapassaram os limites da Geografia. Alguns desses autores compõem a equipe multidisciplinar convocada para dar continuidade aos seus ensinamentos.
Passado o choque inicial com sua partida repentina, coube ao nosso editor Sérgio Settani Giglio, a missão de “pegar a bola debaixo do braço” e “chamar a responsabilidade” para que a coluna tivesse continuidade. O grupo atual conta com oito pesquisadores, dos quais, quatro ex-alunos: os geógrafos Leandro Dias de Oliveira, Demian Garcia Castro e Fernando da Costa Ferreira, além de Natália Rodrigues de Melo (doutora em Arquitetura). Em comum, pesquisas centradas em estádios de futebol. Enquanto Leandro escreveu, em conjunto com o próprio Gilmar, um artigo acerca do Estádio da Cidadania (Volta Redonda-RJ), Demian, Fernando e Natália desenvolveram teses voltadas ao estudo do Maracanã, palco da construção de sua cultura torcedora.
Aliada à reconhecida competência enquanto professor e pesquisador, uma característica marcante de Gilmar era a capacidade de arrebanhar amigos e admiradores de diferentes áreas do conhecimento. Prova de seu caráter agregador foi o aceite imediato dos quatro autores, que representam uma pequena parcela da vasta rede de pesquisadores e de afetos construída ao longo de décadas: Felipe Tavares Paes Lopes (Psicologia Social), Priscila Augusta Ferreira Campos (Educação Física), Gustavo Andrada Bandeira (Educação) e Rodrigo Carrapatoso de Lima (História).
Quem conheceu Gilmar sabe o quanto ele gostava de viajar. No mundo pré-pandêmico eram inúmeros os convites para participar de bancas e eventos científicos em diferentes pontos do planeta. Na mala, que parecia sempre pronta para o próximo embarque, não podia faltar uma camisa do Glorioso. No roteiro, visita(s) a estádio(s) de futebol, preferencialmente em dias de jogos para sentir o pulso e a inventividade das arquibancadas e o intenso fluxo de pessoas e mercadorias, sobretudo dos circuitos informais da economia. Se havia uma definição acerca da simbiose existente entre público e estádio que lhe encantava, certamente era a de Eduardo Galeano em sua obra-prima Futebol ao Sol e à Sombra:
“Você já entrou, alguma vez, num estádio vazio? Experimente. Pare no meio do campo, e escute. Não há nada menos vazio que um estádio vazio. Não há nada menos mudo que as arquibancadas sem ninguém” (GALEANO, 2002, p.20).

A coluna Futebol e Cidade, comandada por Gilmar no Ludopédio, entre os anos de 2017 e 2019, procurava, por meio de uma escrita leve e envolvente (sem abandonar o olhar crítico), mostrar ao leitor, com base em sua cultura de estádios e, nas observações empreendidas ao longo das viagens, as relações existentes entre o espaço urbano, seus habitantes, os estádios de futebol e seus frequentadores.
O título que marca a retomada da coluna homenageia um dos livros que compõem sua extensa obra, lembrada pela coluna de nosso companheiro Raphael Rajão Ribeiro, e aponta para a luta pela construção de estádios como espaços democráticos, microrrepresentações dos embates constantes entre forças desiguais no espaço urbano. Ao trazer as ideias de Henri Lefèbvre (2001) para o debate, procurou estabelecer um paralelo entre a luta dos grupos historicamente excluídos pelo direito à cidade e ao estádio.
Em algumas ocasiões, especialmente durante suas aulas na UERJ e em bancas de defesa de trabalhos acadêmicos, Gilmar gostava de dizer, meio de brincadeira, meio a sério, que ele era o maior geógrafo dos esportes do Brasil, pela simples razão de ser o único. Que, quando morresse, a Geografia dos Esportes morreria junto. Cabe à nossa equipe provar que ele estava certo e errado. Certo, pois, da mesma forma que não surgiu outro Garrincha, jamais teremos um outro geógrafo dos esportes com a sua categoria. Errado, pois a sua obra será eterna e, cada autor, que assumirá a coluna a partir de agora, carregará consigo os ensinamentos aprendidos com ele. Sigamos em frente!
Referências
CASTRO, Demian Garcia. “O Maraca é nosso!”: da “monumentalidade das massas” ao “padrão-FIFA”: neoliberalização da cidade, elitização do futebol e lutas sociais em torno do Maracanã. 2016. 259 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
DAMO, Arlei Sander; FERREIRA, Fernando da Costa; COSTA, Leda; RIBEIRO, Raphael Rajão; GIGLIO, Sérgio Settani; MELO, Victor Andrade de. 5 toques para conhecer a obra de Gilmar Mascarenhas. Ludopédio, São Paulo, v. 156, n. 22, 2022.
FERREIRA, Fernando da Costa. O estádio de futebol como arena para a produção de diferentes territorialidades torcedoras: inclusões, exclusões, tensões e contradições presentes no novo Maracanã. 2017. 439 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
GALEANO, Eduardo. Futebol ao Sol e à Sombra. Porto Alegre: L&PM, 2002.
LEFÈBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
MASCARENHAS, Gilmar. O direito ao estádio. Ludopédio, São Paulo, v. 119, n. 12, 2019.
MASCARENHAS, Gilmar; OLIVEIRA, Leandro Dias de. “Adeus ao proletariado?”: A dimensão simbólica do estádio da cidadania (Volta Redonda – RJ / Brasil). Lecturas Educación Física y Deportes, v.101, p.1, 2006.
MELO, N. R. O grande palco futebolístico. Ambiência e memória no estádio do Maracanã pós-reforma para a copa de 2014. Tese (Doutorado em Arquitetura) – PROURB, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.