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O mercado milionário asiático desafia o poder europeu: Saudi Pro League X UEFA

Rodrigo Koch 3 de outubro de 2023

Jornalistas e aficionados se perguntam se o poderio econômico dos árabes, empregado na Saudi Pro League e em outras ligas nacionais do Oriente Médio – com contratações de relevância nesta última janela do mercado internacional do futebol – poderá acabar com o prestígio dos campeonatos europeus, especialmente os torneios continentais dirigidos pela UEFA. Vale destacar que as imposições legais e econômicas não existem para estes novos mercados, ou seja, os clubes de propriedade de príncipes e xeques gastaram em contratações – assim como fizeram propostas milionárias – indeliberadamente sem qualquer veto ou regra, como ocorre por exemplo na Europa com a legislação do fair play financeiro, que não permite que um clube gaste mais do que arrecadou nos anos anteriores. Especialistas do marketing e das transações do meio futebolístico apostam que não. Portanto, segundo a visão destes experts, a Europa continuará sendo o local de maior atenção para o segmento consumidor do futebol. No entanto, vale destacar alguns pontos que envolvem a geopolítica do esporte e, como estas peças vêm se movimentando no tabuleiro na contemporaneidade, pois “este deporte no sólo se juega en los estadios, también se lo hace en el terreno económico, incluso, aquellos países sin tradición futbolística han encontrado una manera para ganar dinero, como es el caso de los países árabes y del sudeste asiático que, en una vuelta de torque, comenzaron a colonizar el fútbol europeo como dueños o accionistas de equipos” (ALVARADO & CASTRO, 2022, p. 110).

El poder económico del fútbol dejó paulatinamente de estar en manos de empresas europeas para ser colonizado por inversores de otros continentes, en paralelo a un poceso donde Europa se especializó en la producción de espetáculos futebolísticos al servicio de una audiência global. (RODRIGUEZ-DIAZ 2021, p.93)

Jawhara Stadium. Fonte: Divulgação
Jawhara Stadium. Fonte: Divulgação

Desde a última década do século XX e após a virada do milênio, a globalização do futebol – Futebolização (KOCH 2020) – tem produzido novos cenários, com crianças e jovens em qualquer parte do planeta aderindo às equipes nas quais jogam seus craques favoritos. Os torcedores dos clubes foram transformados em seguidores de celebridades. Um dos efeitos mais visíveis deste fenômeno é encontrar pelas ruas de grandes e pequenas cidades um verdadeiro desfile de escudos e cores de variados clubes de futebol, normalmente, com destaque para os Europeus, como Real Madrid CF, FC Barcelona, Manchester City FC, Paris Saint-Germain FC, Manchester United FC, Liverpool FC, ou Bayern Munich FC entre outros.

[…] el fútbol es un articulador de identidades locales e internacionales, que gracias a los discursos mediáticos y políticos trascienden las clases, étnicas e incluso religiosas. (ALVARADO & CASTRO, 2022, p. 107)

Mas será que agora, ou num futuro breve, as camisetas de Al Nassr FC, Al-Hilal FC ou Al-Ittihad FC também não começarão a circular pelos variados cantos do planeta? Depois da ida de Cristiano Ronaldo para o futebol árabe no início deste ano, muitas outras estrelas – ainda com certo destaque nas ligas europeias – migraram para a Arábia Saudita ou países adjacentes, juntamente com técnicos de renome e, fortaleceram este novo mercado do futebol. “[…] el fútbol se ha convertido en un espejo de las sociedades, donde se observa diversas pulsiones, la exaltación al nacionalismo más complejo, y la consolidación del capitalismo voraz por parte de las elites económicas, sin embargo, también es, de los pocos espacios de apropiación de las clases populares” (ALVARADO & CASTRO, 2022, p. 111).

O Al-Hilal FC – novo clube de Neymar –, atualmente, está entre as vinte maiores equipes do futebol mundial em termos de investimento, ocupando o 18º lugar num ranking liderado por clubes ingleses e que conta com Paris Saint Germain FC (França) e Real Madrid CF (Espanha) entre os dez primeiros. A Saudi Pro League atingiu o patamar de ser a sexta liga com maior investimento (e talvez em importância), ficando atrás somente dos tradicionais mercados inglês, espanhol, italiano, alemão e francês. Certamente o objetivo dos investimentos árabes é conquistar títulos internacionais continentais e mundiais em breve, algo externado com clareza pelo Al-Ittihad FC, nova casa das estrelas francesas Benzema e Kanté. E o que isto significa para o mercado consumidor do futebol? A Saudi Pro League terá o mesmo sucesso da Premier League, da La Liga ou da Série A italiana? A, agora turbinada, Asia Champions League poderá ser tão atrativa quanto a UEFA Champions League?

El problema de la liga saudí no es la liga en sí, ni el desagradable régimen que la financia. El problema es el fútbol y las estructuras económicas que lo sustentan. (MCDOUGALL 2023)

Segundo Schatz (2023) “[…] há uma crescente diversificação dos negócios associados ao futebol por meio dos dispositivos tecnológicos, de modo que apostas online, plataformas de streaming, redes sociais e canais próprios de mídia dinamizaram as fontes de receitas dos clubes” e, porque não, também de seus proprietários e investidores.

Apresentação da Saudi Pro League
Apresentação da Saudi Pro League. Fonte: Saudi Gazette Report

Geopolítica, Globalização e Futebolização

Para que possamos entender melhor estas novas movimentações no cenário futebolístico mundial vale lembrar que os espaços de lutas de poder se transfiguraram rapidamente nas últimas duas décadas em especial, trazendo novos contornos sociais e estabelecendo novos campos culturais que desenharam circuitos globais de consumo para artefatos intangíveis. Os conteúdos e quem os produz passaram a ter valor igual ou maior aos produtos em si. No caso do futebol, a informação impressa, apresentada em formatos adequados às circunstâncias e conveniências, é combinada com material audiovisual que constitui um reservatório histórico quase infinito – onde são registradas inúmeras façanhas futebolísticas – e permanentemente atualizado com o que acontece no mundo, sem levar em conta as distâncias dos cenários onde acontecem as partidas.

[…] el alto grado de sofisticación tecnocientífica alcanzada en materia de comunicación y transporte, ha favorecido el grado de interacción transnacional necesaria para cristalizar el modelo económico. El resultado es una economía electrónica mundial hipermóvil y descentralizada, condicionante de las dinámicas geopolíticas. […] los medios de comunicación y el mercado se han convertido en los poderes fácticos que dirigen la construcción de los procesos culturales, identitarios y los imaginarios a grandes niveles. De ahí que eventos deportivos masivos como el fútbol hayan pasado de ser un espacio tutorado por los Estados nacionales a convertirse en un lugar predilecto del mercado y los médios […] Tal panorama trae consigo un proceso de resignificación de la relación entre identidades y territorialidades que favorece la conformación de identidades sub, inter y transnacionales. (CARBONELL & DIAZ 2019, pp.25-26)

Portanto, vivemos na contemporaneidade segundo plataformas de comunicação que facilitam – e fazem escolhas por nós – e estão permeando todos os cantos do planeta, nos convertendo em sociedades hedonistas dedicadas ao ócio e ao entretenimento. “El deporte, y en especial el fútbol, ha sido notoriamente beneficiado por la hipermodernidad distinguida por una serie de plataformas informativas que han democratizado el acceso instantáneo de los contenidos” (GÓMEZ 2019, p.39); no entanto, ao mesmo passo que “[…] cuando se inició el pago para ver fútbol se estableció una división entre los seguidores,  entre una minoria de clientes y uma mayoría sin acceso. El fútbol representa fielmente el espiritu de la democracia liberal ligada al capitalismo” (RODRIGUEZ-DIAZ 2021, p.89).

Troféu da AFC Champions League. Fonte: Divulgação AFC
Troféu da AFC Champions League. Fonte: Divulgação AFC

E porque, agora, o mercado asiático resolveu despejar seus petrodólares no futebol de maneira mais agressiva, não só abocanhando eventos, mas também retirando estrelas ainda no auge de suas carreiras dos clubes da Europa? Uma das respostas é que “[…] países árabes, detentores de economias fortes e PIBs altos, buscam no futebol uma plataforma de relações públicas internacionais. Nessa lógica, além da ideia de soft power, o termo sportswashing aparece como referência a utilização do futebol para minimizar problemas internos, sejam políticos, sociais ou econômicos […]” (SCHATZ 2023, p.184). Também cabe lembrar que os grandes torneios internacionais, como as Copas do Mundo ou Mundiais Interclubes chancelados pela FIFA, tornaram-se os novos territórios de lutas de poder, onde os países pequenos ou pobres podem ter sua ‘vingança histórica’, e onde as superpotências militares, tecnológicas e econômicas não reinam, nem impõem suas decisões, assim Estados Unidos, China e Rússia, por exemplo, muitas vezes são espectadores, enquanto que por instantes africanos e latino-americanos são protagonistas. “Los mundiales de fútbol simbólica e históricamente son la revancha de los colonizados sobre los colonizadores, y una forma metafórica de conquistar las tierras europeas”. (ALVARADO & CASTRO, 2022, p. 109)

Na atualidade o movimento árabe pode ser mais intenso, mas não é novo nas últimas décadas. Na China “[…] para alcançar este ambicioso objetivo de transformar a sua indústria desportiva em uma das maiores do mundo, o governo lançou em 2015 o Plano Geral de Reforma para impulsionar o desenvolvimento do futebol no país, preâmbulo do documento principal, que viria a ser publicado em abril de 2016: o Plano de desenvolvimento do futebol a médio e longo prazo (2016-2050) […]” (LEITE JUNIOR & RODRIGUES 2023, p.86), com objetivo de não só tornar a seleção nacional e o mercado chinês um dos principais do mundo, como também de sediar pelo menos uma Copa do Mundo até 2050. Este desejo é mais imediato para a Arábia Saudita e recentemente foi desfrutado pelo Catar, que gradativamente também está avançando no tabuleiro geopolítico da modalidade. Ainda não podemos esquecer a presença americana neste cenário, que mantém suas ações – por enquanto – fisgando renomados craques veteranos que ainda podem gerar receitas. Evidentemente, a ida de Lionel Messi para o Inter Miami CF após conquistar a Copa do Mundo e continuar sendo uma das maiores estrelas do futebol mundial altera um pouco esta lógica até então empregada. “Ainda é difícil medir o impacto de Messi no futebol dos Estados Unidos, mas já é possível medir a história da liga em antes e depois da chegada do craque” (ARANTES 2023). Parece que os americanos – sede da próxima Copa América, do primeiro Mundial Interclubes em novo formato e da Copa do Mundo de 2026 – estão muito mais atentos do que se imagina ao que ocorre na geopolítica do futebol.

Cabe investigar na sequência dos próximos meses e anos se haverá uma migração da geração futebolizada de crianças e jovens dos clubes europeus para os clubes árabes, chineses, catares ou americanos, em virtude das transferências das celebridades da modalidade para estes novos mercados. E também se deve acrescentar a esta agenda de pesquisa aberta, todos os enlaces econômicos e as lutas de poder que envolvem a arena futebolística.

Referências

ALVARADO, Xavier Brito; CASTRO, Santiago Vayas. Geopolítica del fútbol: sobre la globalización del balón. ACADEMO Revista de Investigación en Ciencias Sociales y Humanidades. ISSN 2414-8938. Enero-Junio 2022. Vol. 9 Nro. 1. p. 103-112, Asunción, Paraguay.

ARANTES, Thiago. Gols, dinheiro e sonhos: como Messi está transformando o futebol nos EUA. UOL, São Paulo, em 17/09/2023, disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/futebol-pelo-mundo/2023/09/17/gols-dinheiro-e-sonhos-como-messi-esta-transformando-o-futebol-nos-eua.htm

CARBONELL, Juan Pablo Zebadúa; DIAZ, Sergio Echeverry. Fútbol en el mundo globalizado: de los nacionalismos a los nichos de consumo In: CARBONELL, Juan Pablo Zebadúa; DIAZ, Sergio Echeverry (comp.). Fútbol y globalización: médios, mercados y inclusiones. Universidad Autónoma de Chiapas: México, 2019.

GÓMEZ, Raciel Martínez. La futbolización del mundo: entre la decepción política en el capitalismo hipermoderno. In: CARBONELL, Juan Pablo Zebadúa; DIAZ, Sergio Echeverry (comp.). Fútbol y globalización: médios, mercados y inclusiones. Universidad Autónoma de Chiapas: México, 2019.

KOCH, Rodrigo. Futebolização: identidades torcedoras da juventude pós-moderna. Brasília: Trampolim Editora; Ministério da Cidadania, 2020.

LEITE JUNIOR, Emanuel; RODRIGUES, Carlos. Desafios ao Plano do Futebol Chinês: uma análise sobre as naturalizações de futebolistas. Rotas a Oriente, Revista de estudos sino-portugueses, n.3 (2023) 85-104, Aveiro, Portugal.

MCDOUGALL, Alan. El éxito de la liga saudí nos recuerda que el dinero cuenta más que los derechos humanos en el fútbolLudopédio, São Paulo, v. 171, n. 2, 2023.

RODRÍGUEZ-DIAZ, Álvaro. La globalización del fútbol como expresión del capitalismo: el caso de la Superliga. Sociologia del Deporte. ISSN 2660-8456. Junio 2021. Vol. 2, Nº 1. p.85-94, Sevilla, España.

SALDANHA, Marinho. Destino de astros, Liga Saudita pode ofuscar campeonatos da Europa? UOL, Porto Alegre, em 17/09/2023, disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2023/09/17/destino-de-astros-liga-saudita-pode-ofuscar-campeonatos-da-europa.htm

SCHATZ, Patricia Volk. A Geopolítica através do soft power: investimentos árabes e chineses no futebol mundial do Século XXI. Geosul, Florianópolis, v. 38, n. 86 – Dossiê de Geopolítica, p. 176-198, mai. 2023.

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Como citar

KOCH, Rodrigo. O mercado milionário asiático desafia o poder europeu: Saudi Pro League X UEFA. Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 3, 2023.
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