O pensamento parece chegar junto da música, tenho dado atenção a isso. Preciso despertar um sentido para fazer o pensamento pensar.

Minha missão tem sido a de entender como se pensa o pensamento, como se chega ao estado de pensamento. Como se criam as afecções que tocam a pele e entram pelos poros, invadindo o corpo-organismo com a urgência de acordar o pensamento.

O pensamento é mais sobre o sentido do sentir, não é?! Continuo me perguntando…

Todos os sinônimos que conheço para definir o pensamento tem ligeira relação com algo menos orgânico e afetivo: reflexão, raciocínio, consciência. Meu pensamento caminha na contramão disso, em estado de poesia. O estado bruto do que se denomina pensamento parece me interessar cada vez menos. Aquilo que de tão lógico e descritivo cria uma bruta realidade paralela na qual não é mais possível movimentar o pensamento, só o corpo em seu estado sólido.

É isso que penso quando penso o futebol.

Penso em como criar linhas de fuga. Como fazer o pensamento derreter com o estado sólido em que se põe o corpo.

Mas o campo me lembra o tempo todo que o futebol é feito de um estado bruto de regras e linhas, são quatro no total. Quatro linhas que parecem equivaler a possibilidade de pensamento, considerando a extenuação em que se sujeita um corpo dentro de um clube de formação de jogadores.

***

Aos onze anos, senti falta de vocalizar o pensamento pela primeira vez, quando assistia Lucas Silva e Silva falando com seu gravador, no programa Mundo da Lua, que era transmitido pela TV Cultura. Anos antes havia ganhado o “meu primeiro gravador Gradiente” de presente de natal e me apeguei a ideia de expulsar o pensamento através das palavras e poder repeti-lo após gravá-lo em fita.

Foto: Reprodução.

Quando Lucas Silva e Silva pensava, pensava em voz alta e começava a gravar o pensamento dizendo em repetição: Alô, alô, Planeta Terra chamando! Isso, somada a propaganda da TV Cultura que insistia que o que movia o mundo eram as perguntas e não as respostas, me fizeram querer buscar essa coisa de colocar o pensamento a pensar.

Existe algo do pensamento que está totalmente embricado ao afeto, e se não o for, então não é esse o tipo de pensamento ao qual me refiro ou que me interessa. Deleuze souber dizer melhor com as palavras:

“(…) os conceitos designam tão-somente possibilidades. Falta-lhes uma garra, que seria da necessidade absoluta, isto é, de uma violência original feita ao pensamento, de uma estranheza, de uma inimizade, a única a tirá-lo de seu estupor natural ou de sua eterna possibilidade: tanto quanto só há pensamento involuntário, suscitado, coagido no pensamento, em mais forte razão é absolutamente necessário que ele nasça, por arrombamento, do fortuito no mundo. O que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a violência, é o inimigo, e nada supõe a Filosofia; tudo parte de uma misossofia” (DELEUZE, 2006, p. 202-203).

 

O problema é isso. Tudo parte de uma misossofia. Tem que dispor ao caos, ao avesso. Talvez parta daí minha dificuldade de encontrar maneira de fazer psicologia dentro de um centro formativo. O que se diz da ordem do pensamento nos clubes de futebol está enquadrado dentro das quatro linhas, em dizeres e saberes. Mas em dizeres e saberes que vem da voz de um mestre, jogador… Ah, jogador não pensa, me disseram tantas vezes em clubes passados.

***

Me encontro agora imersa na imagem, junto de meu amigo e editor Adilson Hunof, que é companheiro na missão de contar as histórias dos oito jogadores-cineastas, por meio da imagem.

Nessa de fazer o pensamento pensar, assistíamos a uma das entrevistas em repetição. Era Léo Moura pensando em voz alta, se perguntando sobre a pergunta que lhe fiz:

– O que é o futebol para você?

Acrescentei ainda: Em uma palavra.

Me senti como uma entrevistadora que não se interessa pela pergunta que faz. Em uma palavra? Como alguém diz algo em uma palavra? Mas a intenção era a de forçar. Violentar o pensamento.

***

“A arte toca o mundo, de fato”, disse Daniela da Silva, enquanto se tornava doutora.

Tenho pensado. Sobre a arte, sobre tocar, sobre o mundo.

Minha angústia é justamente a de minha repetição. Esse apego a memória.

O gosto pela repetição é atravessado pela urgência de poder regressar a algo. Uma experiência, um sentimento, um vídeo, uma palavra, uma experiência. A cabeça repete quando tenta entender algo; desgastar o pensamento, esmiuçá-lo, desdobrá-lo e virá-lo de ponta cabeça, até que caia tudo que precisa cair, que vem chegando em formato de ponto de interrogação.

O caos se instaura com Tony Allen, que convida para um retorno ao pensamento. 

Tenho tentado sentir na pele a Caosmose, da que falou Félix Guattari. Existe coisa na vida que demanda troca de verbo, por isso mesmo é cada vez mais difícil desvincular o eu da produção e da escrita na pesquisa científica. De todas as coisas que esse meu eu gostaria de ter dito e que alguém já disse antes, existe uma em específico que transcreve em versos líricos a necessidade de firmar encontros com todos os eus que têm em mim, com os eus dos que encontro no caminho e que caminham junto das minhas palavras:

What a mark wanna do if you, if you go back?

Não sei para onde é possível voltar, mas tenho pensado muito sobre o que compõe e o que povoa esse lugar do pensamento que chamamos de memória. Não menos importante são os sinais que procuro quando escuto uma música nova, e senti que não poderia ser só coincidência que Go Back fizesse parte do álbum Film of life de Tony Allen. Mas foi quando escutei Cosmosis em seu álbum póstumo, chamado There is no End, que entendi que mais do que entender é preciso se conectar com a vida e com as vidas de uma outra forma ao fazer ciência humana, e para que isso se efetive enquanto projeto ético de vida é preciso voltar.

Voltar é uma forma genuína de aprendizado. É preciso aprender da gente, para depois aprender do outro.

Voltar para dentro.

Voltar-se.

***

Me pergunto se Léo Moura continua se perguntando sobre o que é o futebol. Espero que não encontre respostas nas palavras… São as perguntas que movem o mundo!

– Alô, alô, Planeta Terra chamando!


DELEUZE, Gilles. Sobre Nietzsche e a imagem do pensamento. In: A ilha deserta: e outros textos. Organização da edição brasileira: Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Como citar

MORO, Eduarda. O que é o futebol?. Ludopédio, São Paulo, v. 175, n. 28, 2024.
Leia também:
  • 179.5

    A impermanência do ser (jogador de futebol)

    Eduarda Moro
  • 179.4

    Mitos hermanos: Brasil e Uruguai

    Alexandre Fernandez Vaz
  • 179.3

    A relação da atual gestão de Marcelo Teixeira no Santos com a direita conservadora

    Gabriel Henrique dos Santos Ferreira