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O rei cativo

José Paulo Florenzano 6 de julho de 2017

As celebrações do sexto aniversário da Revolução de 64 foram programadas com o propósito deliberado de mobilizar a população a favor do regime civil-militar. No centro das comemorações encontrava-se o selecionado nacional. De fato, no Rio de Janeiro, os festejos tiveram como ponto alto um jogo-treino do time no estádio do Maracanã, realizado com portões abertos ao público e precedido por um show musical com artistas populares. Conforme salientava O Estado de S. Paulo: “O pedido foi feito pelo presidente Garrastazu Médici”.[1] Os pedidos, na verdade, sucediam-se um após o outro, condicionando os preparativos da equipe auriverde aos interesses políticos do terceiro governo do regime autoritário, como nos revela de modo emblemático o amistoso realizado em Manaus. À primeira vista, ele contemplava o duplo objetivo de inaugurar o estádio Vivaldo Lima, alcunhado pelos torcedores de Tartarugão, e o de homenagear o comandante do I Exército, amazonense de nascimento, general Sizeno Sarmento. De fato, no sábado, 4 de abril, o referido militar desembarcara em Manaus acompanhado de uma comitiva seleta, dentro da qual se encontrava Stanley Rous, à época, presidente da FIFA.[2]

Se, do ponto de vista dos preparativos para a Copa do Mundo, o amistoso contra um combinado local pouco acrescentava ao time dirigido por Mário Jorge Lobo Zagalo, em contrapartida, ele atendia aos mais diversos interesses, todos alheios ao futebol, como, por exemplo, o de contribuir para o “imenso esforço de integração da Amazônia”, projeto caro ao regime civil- militar, como frisara o presidente Médici em pronunciamento à nação, proferido por ocasião do sexto aniversário da Revolução.[3] Sendo assim, detenhamo-nos um pouco mais nesse ponto.

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O “rasgo na mata” da rodovia Transamazônica entre Rurópolis e Uruará, Pará. Foto: Keith Irwin (CC BY-SA 4.0).

De acordo com o discurso oficial, a Amazônia se constituía em uma “terra sem homens”, algo como um imenso “vazio demográfico” à espera dos “homens sem terra” oriundos do Nordeste, região castigada pela seca, flagelada pela fome e imersa em graves conflitos agrários, os quais, como se sabe, estiveram na raiz do golpe de Estado. A colonização da Amazônia – acreditava o governo – iria proporcionar a resolução pacífica da tensão instalada no campo, com a vantagem adicional de manter intocada a propriedade latifundiária. Não bastassem tais benefícios, ela podia, ademais, redirecionar parte do fluxo migratório dos nordestinos dentro do país, tradicionalmente voltado para a região Sudeste, a mais desenvolvida em termos industriais, canalizando-o para a região Norte, a mais isolada em termos geográficos. Aliás, o “rasgo na mata” provocado pela construção da rodovia Transamazônica emergia como mais um passo estratégico no imperativo da integração nacional para cuja consecução o “jogo na floresta” trazia uma contribuição inestimável.[4]

O amistoso dos canarinhos, com efeito, inseria-se na moldura do Brasil Grande e conferia ao quadro tropical o brilho necessário para conquistar os corações e mentes dos amazonenses. Esta luta simbólica aflorava por sua vez nos discursos e pronunciamentos oficiais das autoridades, temerosas de que, nas áreas consideradas mais inóspitas e desabitadas do país, se reproduzisse uma nova Sierra Maestra.[5] Urgia, portanto, ocupar os espaços com o deslocamento da população, marcar presença militar com a abertura de estradas, efetivar a conquista simbólica dos rincões mais distantes do território nacional, tarefa para a qual o selecionado brasileiro via-se convocado. A empreitada, contudo, comportava riscos, os espectros rondavam a delegação que desembarcava no aeroporto da Ponta Pelada, em Manaus, protegida por um inédito aparato de segurança formado por soldados armados de metralhadoras e baionetas, exibidas de forma ostensiva para manter afastados os cerca de dez mil torcedores que aguardavam, em vão, a possibilidade de um contato mais próximo com os ídolos. Escoltados por batedores do Exército e carros da Polícia Militar, os jogadores seguiram em ônibus especiais diretamente da pista do aeroporto para o isolamento da concentração, localizada no Retiro da Moramba, onde o dispositivo montado por uma força conjunta do Exército e da Aeronáutica impedia qualquer tipo de aproximação, fosse de jornalistas em busca de notícias, fosse de torcedores atrás de autógrafos.[6] E, no entanto, aqui se nos impõe uma singela pergunta: por que tamanho zelo? A razão para tantos cuidados repousava, segundo os boatos que circulavam pela capital amazonense, no temor de que “Pelé poderia ser sequestrado”.[7]

Se a referida ação constava, ou não, dos planos recônditos de alguma organização guerrilheira, brasileira ou latino-americana, permanece uma questão em aberto para a historiografia e à espera de um trabalho investigativo capaz de elucidá-la. Em compensação, existem poucas dúvidas quanto ao fato de que Pelé foi efetivamente “sequestrado” pelo regime civil-militar, embora esta apropriação tenha contado decerto com a cumplicidade do próprio atleta. As relações perigosas que os enlaçava começaram a ser estabelecidas de longa data, mas adquiriram contornos mais fortes a partir da ascensão de Médici ao poder central.[8] Desde então o general-presidente não medira esforços para atrair Pelé a fim de convertê-lo em aliado fiel. Passo importante nesse sentido foi dado quando o atleta obteve a marca dos mil gols, em novembro de 1969. Sem perda de tempo, as portas do Palácio do Planalto lhe foram abertas por intermédio de uma “audiência especial” concedida pelo presidente da República.[9] A deferência tornava clara a estratégia do regime autoritário de se apropriar do capital simbólico acumulado por Pelé ao longo da carreira para utilizá-lo na construção do consenso passivo (Coutinho,1999).[10]

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Pelé é carregado após marcar seu milésimo gol. Foto: Reprodução.

Todavia, ao contrário da imagem sedimentada ao longo dos anos que o toma como a figura por excelência do jogador alienado, Pelé não iria adotar a postura passiva e submissa que a ditadura desejava lhe impor. De dentro do “cativeiro”, ele negociava questões do interesse da categoria dos atletas profissionais, levando até os altos escalões do poder político as demandas formuladas desde a base no campo esportivo.

Se as solicitações presidenciais eram prontamente atendidas pelos integrantes do selecionado, a despeito do transtorno que costumavam suscitar, em contrapartida, os atletas aproveitavam o canal aberto com a cúpula do poder para retomar e encaminhar antigas reivindicações da categoria, constituindo-se numa espécie de sindicato nacional autoinvestido do direito de representá-la. Assim, por exemplo, no início de março, quando o Brasil se encontrava em Porto Alegre para disputar o amistoso com a Argentina, uma comitiva de atletas liderada por Pelé apresentou ao presidente Médici, no Palácio Piratini, uma série de reivindicações trabalhistas formuladas em nome da categoria profissional.[11] A cena era emblemática do toma lá da cá envolvendo o regime militar e o elenco brasileiro. Enquanto o general-presidente se preparava para comparecer, à noite, ao estádio Beira Rio para encarnar a personagem do torcedor comum de radinho de pilha colado ao ouvido; representantes do elenco de atletas visitavam-no para pleitear direitos que beneficiavam, não apenas a eles próprios, mas a totalidade dos trabalhadores da bola. Conquanto sejam inegáveis os limites do sindicalismo de gabinete, ele, no entanto, permite-nos matizar a imagem do jogador alienado dos Anos de Chumbo, construída por toda uma literatura influente, tanto de caráter acadêmico quanto de cunho jornalístico.

A relação entre o presidente da República e o Rei do Futebol, não resta dúvida, envolvia cumplicidade, implicava colaboração, mas, eis o ponto a ser frisado, comportava um espaço de negociação que a liderança dos atletas buscava de todas as formas ampliar e aprofundar, aproveitando todas as oportunidades que se apresentavam, como, por exemplo, a do almoço oferecido pelos dirigentes da CBD ao comandante do I Exército, na concentração do Retiro dos Padres.[12] No evento em questão “o militar teve de ouvir algumas reivindicações dos convocados”, os quais tiveram no experiente zagueiro Fontana, do Cruzeiro, “uma espécie de representante”.[13] Mais uma vez estamos diante de um caso ilustrativo do tipo de vínculo estabelecido entre o regime militar e o selecionado canarinho. Conforme observação da crônica esportiva, “os jogadores conversaram bastante” com o general Sizeno Sarmento durante o almoço, “pois haviam viajado juntos para Manaus” para a realização do jogo em sua homenagem. Agora o elenco lhe cobrava a fatura, sob a forma de um pedido explícito para que ele “interfira junto ao presidente Médici” em favor da causa defendida pelo grupo.

Ora, coincidência, ou não, dois dias depois do encontro travado no Retiro dos Padres, o ministro do Trabalho, Julio Barata, receberia no Rio de Janeiro um memorial contendo os itens pleiteados pela categoria, entregue, dentre outros, pelo presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de São Paulo, Gilmar dos Santos Neves, goleiro bicampeão mundial em 58 e 62. Além da aposentadoria após dez anos de atividade, justificada em virtude da brevidade da carreira profissional, os líderes sindicais postulavam também o registro dos contratos de trabalho no sindicato, bem como a “participação nos lucros das transmissões dos jogos pela televisão e pelo cinema”.[14] Esta pauta denotava o quão avançado se encontrava o processo de tomada de consciência dos direitos trabalhistas, a clareza a respeito dos interesses comerciais envolvidos no futebol, espetáculo no qual, afinal de contas, atuavam como protagonistas. O governo federal, por sua vez, não se dispunha a atender prontamente as reivindicações dos atletas, ao contrário, a tática consistia em tergiversar ao máximo, estender as negociações em sucessivas e quase sempre infrutíferas reuniões. Por outro lado, a estratégia de luta dos jogadores não se resumia aos gabinetes ministeriais, aos almoços com autoridades militares, ou, ainda, as cerimônias com a presença do presidente da República. Ela invadia e animava o cotidiano dos clubes, semeando o terreno para o advento de um sindicalismo mais autônomo. Mas aqui já adentramos o terreno da rebeldia.

[1] Cf. “Rio vera treino no dia 31”, 26 de fevereiro de 1970, Cf. “Dia da Revolução”, 31 de março de 1970, ambas reportagens publicadas em O Estado de S. Paulo.

[2] Cf. “Delegação leva 45”, O Estado de S. Paulo, 4 de abril de 1970.

[3] Cf. “Governo não teme o terror”, O Estado de S. Paulo, 1 de abril de 1970.

[4] Cf. “Transamazônica, rasgo na mata”, O Estado de S. Paulo, 18 de abril de 1970.

[5] Cf. “Exército fecha cerco ao terror”, O Estado de S. Paulo, 30 de abril de 1970. O receio, a rigor, não se limitava à região da Amazônia: “É nesta área, tida por semelhante à Sierra Maestra, que agia o terror.” A área em questão dizia respeito a Registro, no Vale do Ribeira, no estado de São Paulo.

[6] Cf. “Em Manaus, Seleção faz o seu terceiro teste”, O Estado de S. Paulo, 5 de abril de 1970. Cf. “Jogadores chegam a Manaus protegidos por baionetas”, Jornal do Brasil, 5 de abril de 1970.

[7] Cf. “Concentração é muito policiada”, O Estado de S. Paulo, 5 de abril de 1970. O temor do “sequestro” acompanharia Pelé durante a Copa do Mundo. Cf. “Preocupação é pela segurança”, O Estado de S. Paulo, 5 de maio de 1970.

[8] Em 1967 Pelé participou ao lado de outras personalidades do esporte de um almoço no Itamaraty, no Rio de Janeiro, com o ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto. Considerado “jogador-símbolo do futebol brasileiro”, ele teve “lugar de honra” ao lado do chanceler. Cf. “Hoje o almoço no ministério”, O Estado de S. Paulo, 18 de maio de 1967.

[9] Cf. “O presidente e o ´rei`”, A Gazeta Esportiva, 26 de novembro de 1969.

[10] Coutinho, Carlos Nelson (1999) Gramsci: um estudo sobre o seu pensamento político. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. Ver em especial o capítulo IX: “As categorias de Gramsci e a realidade brasileira”

[11] Cf. “Pelé vai à Médici em nome dos futebolistas”, O Estado de S. Paulo, 5 de abril de 1970.

[12] Retiro dos Padres, localizado na Barra da Tijuca, próximo à praia de São Conrado, constituía-se numa construção de três andares, erguida pela Ordem dos Jesuítas em 1936. O isolamento do local foi o fator preponderante para convertê-lo em concentração. Cf. “No retiro, a paz que a Seleção vai precisar”, O Estado de S. Paulo, 22 de fevereiro de 1970.

[13] Cf. “General ouve reivindicações”, O Estado de S. Paulo, 9 de abril de 1970. José de Anchieta Fontana, então com 29 anos, era tido pelos companheiros como “um líder dentro de campo”. Foi zagueiro do Vasco durante sete anos, transferindo-se para o Cruzeiro em 1969. Cf. “Fontana já esperava, para Zé Carlos foi surpresa”, O Estado de S. Paulo, 19 de fevereiro de 1970.

[14] Cf. “Reivindicações”, O Estado de S. Paulo, 10 de abril de 1970.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. O rei cativo. Ludopédio, São Paulo, v. 97, n. 6, 2017.
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