172.17

O Sol brilhou para elas

Giulia Brito 17 de outubro de 2023

Domingo, 16 horas da tarde. O metrô lotado de torcedores vestindo as cores alvinegras já anunciava o que estaria por vir. Caminhando até o local do jogo esbarrei em muitas famílias que estavam ali pela primeira vez, pessoas apaixonadas com um sorriso no rosto e uma bandeira cobrindo as costas e um ou muitos torcedores apreensivos devido a importância da partida e pelo fato do time do coração estar enfrentando um rival muito competente. A fila para entrar no estádio estava maior do que as que eu costumo enfrentar, mas o clima estava tão agradável, apesar do calor ardente, que o tempo passou voando. Ainda fora da arquibancada, já conseguia ouvir a exaltação e a vibração da torcida.

Quando finalmente tomei meu lugar no setor escolhido para assistir o que viria a ser um espetáculo, não me contive. Poucos minutos depois já enxergava tudo mais embaçado. As lágrimas haviam tomado conta dos meus olhos. 

42.566. Esse foi o número responsável por tamanha emoção. Esse foi o número exato de pessoas que, como eu, estavam ali para reverenciar o futebol de mulheres. Essas pessoas saíram de suas casas naquele domingo de sol com o propósito de assisti-las. Essas pessoas empurraram as jogadoras para uma virada triunfante. Tudo foi muito esplendoroso, dentro e fora das quatro linhas. A torcida e o time pareciam um só.  Já tivemos outros públicos grandes no futebol feminino, mas aquele dia em específico foi muito maior do que tudo que eu já havia presenciado.

Outro fator que elevou o nível daquele domingo de futebol foi a torcida rival, que viajou do interior do estado para fazer sua parte e também deu o seu show. Eu estava no setor ao lado, então pude sentir um pouco da emoção daqueles torcedores. Que, por sua vez, não se intimidaram, ecoaram seu canto e estenderam sua bandeira. O que foi muito necessário para que as jogadoras se sentissem motivadas e não se deixassem levar pelo enorme barulho da torcida da casa. 

0x1 para o time visitante. A torcida aumenta o volume. O barulho, que já era alto, se torna estrondoso. A cada lance perigoso perto da área, mais aplausos e mais gritos. Final dos 90 minutos + acréscimos. A festa era geral. No placar, 2×1 para o time que tinha mais um troféu para colocar na sala dedicada especialmente a elas. As jogadoras se abraçavam, pulavam, ajoelhavam no chão e comemoravam, cada uma à sua maneira. Não sei se ali elas se deram conta do momento histórico que viviam, ou se a ficha caiu algum tempo depois. Deveriam estar muito emocionadas com a conquista e não era pra menos. Algo havia mudado no nosso futebol.

Corinthians
Corinthians vence a final do Campeonato Brasileiro Feminino 2023 contra a Ferroviária na Neo Química Arena. I Foto: Acervo pessoal

Desde que comecei a acompanhar o futebol feminino, primeiro através da seleção e, posteriormente, dos clubes nacionais, sempre sonhei com esse momento. Estar cercada de pessoas prestigiando as jogadoras e a modalidade, em um estádio cheio, pulsando, cantando alto, apoiando sem parar por um segundo, em um horário que, pra mim, é o mais nobre do nosso futebol, sempre me pareceu um sonho muito distante. 

Poucos meses atrás, eu havia escrito um texto e guardado para mim, que tratava deste tema, mas com um tom muito mais triste. Era uma forma de desabafar, pois tinha recebido a notícia de que muitos jogos do principal campeonato de futebol feminino do país não seriam nem ao menos transmitidos. Muitos seriam em locais distantes das torcidas, em estádios com condições muito abaixo do adequado para uma partida de futebol. Por mais que sempre tenhamos tentado remar contra essa maré, sempre esbarramos nos poderosos do futebol, que dizem que não somos a prioridade deles, que não damos retorno financeiro e que não vale a pena o investimento.

É claro que quem vive a modalidade sabe que nada disso é verdade. Sabemos que valemos a pena. Sabemos que temos um produto que pode ser muito maior do que é hoje. Não à toa, outros clubes ao redor do mundo já se deram conta desse fato e têm investido cada vez mais, aplicando dinheiro, colocando suas atletas para jogar nos melhores estádios, tornando o mercado da bola um espaço competitivo, dando vida, de fato, a esse esporte. No dia do jogo em que relatei, uma chave foi virada. Eu ouvi análises sobre o jogo na rádio, algo que quem vive o futebol de mulheres sabe que é um acontecimento raro. O jogo teve uma cobertura grandiosa, o que foi muito diferente do que, infelizmente, passamos a nos acostumar. 

Neste domingo o futebol feminino no Brasil estabeleceu um marco e disse com todas as letras: Somos uma realidade! Não vamos dar mais nenhum passo para trás, não vamos parar e não seremos mais invisíveis. Estamos aqui, existimos, acontecemos e somos gigantes. Somos 42.566 e muito mais.

Por muitos anos nos colocaram à sombra, agora alcançamos o Sol e nunca mais seremos ofuscadas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Giulia Brito

Apaixonada por futebol (principalmente o de mulheres).

Como citar

BRITO, Giulia. O Sol brilhou para elas. Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 17, 2023.
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