114.18

O torcer por um clube não globalizado em um futebol globalizado

Si­lvio Ricardo da Silva 17 de dezembro de 2018

Nessas poucas páginas que me cabem nesta seção do Ludopédio, apresento um pouco da experiência dos torcedores de um clube não globalizado em um futebol globalizado, com intuito de suscitar uma discussão acerca dessa idealização que existe no Brasil em torno do futebol europeu.

Durante o ano de 2015, tive a oportunidade de acompanhar, com interesse acadêmico, um clube e, consequentemente, sua torcida. Tratou-se do Levante Unión Deportiva (Levante U.D), fundado em 1909, na cidade de Valência, capital da Comunidade Valenciana situada à leste e sudeste da Península Ibérica, no litoral do mar Mediterrâneo.

Símbolo do Levante U.D. Foto: Wikipedia.

Após 2007, quando houve a escolha do Brasil, como sede da Copa do Mundo FIFA de 2014, percebi a construção e o crescimento de um discurso de que a partir dessa “nova era” o futebol no Brasil seria como na Europa. Não havia muita clareza sobre o que representava isso, mas eu ouvia ressoar por diferentes atores, desde dirigentes de clubes, mídia, passando por responsáveis pelas reformas dos estádios brasileiros, até pelos servidores mais humildes de um dos estádios fechados naquela época para reforma.

O discurso era multifacetado. Uns davam ênfase ao futuro e iminente comportamento “civilizado” dos nossos torcedores, outros carregavam mais na questão do faturamento que as novas arenas trariam ao futebol brasileiro e havia, também, quem propalasse uma organização impecável do nosso futebol, que passaria a existir ao findar desse processo de reformas e construções, assim como da organização do Mundial FIFA 2014.

Diante dessa tal Europa, que serviria de exemplo para “civilizar e iluminar” o futebol brasileiro, questionei se esse processo de “ser Europa” acontecia em todos estádios europeus e junto aos torcedores de todos os clubes. Com a curiosidade aguçada, procurei um clube que estava naquele momento na primeira divisão de um futebol em evidência mundial, mas que não se configurasse como um dos poucos da elitizada “Liga dos Campeões”. Assim cheguei ao Levante U.D., clube espanhol com uma identidade litorânea. Provindo de Cabañal, bairro de pescadores da cidade de Valência, o Levante tem nos trabalhadores do mar seus primeiros aficionados.

A trajetória esportiva também me chamou atenção. Apesar de ser fundado na primeira década do século XX, o Levante U.D só chega à primeira divisão na temporada 1962-63 e, a partir de então, se mantém de maneira intermitente entre a primeira, a segunda e a terceira divisão. Cabe destacar que, na temporada 2015-2016, na qual tive a oportunidade de acompanhar, o Levante voltou à segunda divisão, fato que não ocorria há seis temporadas. Sagrou-se campeão da segunda divisão na temporada 2016-17 e, no momento da escrita desse texto, está em sexto lugar de La Liga, com uma campanha inédita.

Para conhecer melhor a realidade do Levante U.D., e consequentemente de sua torcida, fui a nove jogos no Ciudad de Valência (seu estádio) e a três jogos quando foi visitante (dois no estádio de Mestalla, do Valência C.F.) e um no Cornellà-El Prat, estádio do Reial Club Deportiu Espanyol de Barcelona. Além disso, tive a oportunidade de acompanhar festas, reuniões e realizar seis entrevistas.

O torcedor granota[1] não se envergonha de sua árdua trajetória no futebol espanhol. O fato de já ter jogado a terceira divisão em campos precários foi percebido como orgulho. Intitulam-se como os “pobres” de Valência e que o grande rival, Valência C.F, é o “rico”. Paco, 71 anos, morador de Cabañal, resume esse sentimento com a seguinte fala: “El Valência fuma puros y el Levante, cajetillas[2].

Sabem que a sua torcida é menor que a do Valência, mas esse fato também não é um problema. Há uma fala inspirada em uma lógica de resistência ao status quo do futebol globalizado. Gabriel, 26 anos, utiliza-se da frase dita por um jornalista valenciano para expresar essa ideia: “Como cuando eres de una secta o de alguna organización ilegalizada que no lo puedes decir en público pero ahí esas sonrisas, esa mirada cómplice”[3].O fato de serem poucos em relação às grandes torcidas espanholas, sobretudo Valência, Real Madrid e Barcelona, é bem aceito.

O que não há conformismo é com a cobertura da mídia em relação aos três clubes. Em âmbito local, onde há preferências pelo Valência e em âmbito nacional em relação aos outros dois. Todos meus entrevistados citaram essa questão.

Partida de La Liga, temporada 2018-2019, Levante UD 2 a 0 CD Leganés, estádio Ciudad de Valencia. Foto: Wikipedia.

Não é comum o torcedor do Levante comprar ingresso na hora do jogo, até porque é significativamente mais barato comprar o abono[4]. Para se ter uma ideia, em 2015 um ingresso comprado na bilheteria para o setor mais barato do estádio custava 20 euros em média. O abono para todo ano, com uma média de 19 jogos no estádio custava nesse mesmo setor 120 euros. Existe um tipo de cambista (acompanhei esse fato em jogos nos estádios do Levante, do Barcelona, do Valência e do Real Madrid, que é o abonado, aquele que comprou o carnê para o ano todo), tentando vender esse ingresso pelo preço um pouco abaixo do preço da bilheteria. Ao conversar com uma dessas pessoas, soube que o clube faz um repasse de 20% do valor do ingresso ao abonado quando ele avisa com antecedência que não irá ao jogo. Assim, procuram obter uma vantagem maior, mas considerada ilegal, vendendo a 50, 60 ou 70% do valor de bilheteria.

O Estádio Ciudad de Valência foi inaugurado em 1969. O estádio tem a capacidade de aproximadamente 25 mil lugares. Cabe destacar que, em nenhum jogo, mesmo aqueles em noites frias, ou com o time vindo de uma série de insucessos e na zona de rebaixamento, presenciei um público menor que 12,5 mil pessoas, ou seja, metade da sua capacidade. Não há luxo no estádio, nem mesmo desconforto. Não há cobertura e há cadeiras em todos os setores. Aliás, faz parte da cultura da torcida fazer uma limpeza da cadeira que se vai sentar. Essa “faxina” acontece por vezes com jornal ou até com um pano. Em dias que houve chuva antes do jogo, os torcedores levam plásticos para sentarem. Não há venda de bebidas alcoólicas, mas boa parte da torcida leva seu próprio lanche em sacolas de plástico.

No primeiro jogo que assisti, do Levante contra o Celta de Vigo, houve uma revista amistosa, onde apenas apertaram minha mochila. Assim aconteceu em todos os jogos. O único jogo que recebi uma revista mais detalhada foi quando fui com a torcida na “marcha granota[5]”. Chamou-me à atenção o fato de que as pessoas comem o tempo todo. Havia no estádio um barulho de semente de girassol[6] sendo aberta, e a consequente sujeira das cascas que ficavam embaixo da cadeira. Além disso, muitos levam bolsa com bocadillos e bebidas. Um vendedor ambulante mais idoso vendia algo similar a pau de canela, mas que depois eu soube e até comprei, que se tratava de uma raiz, com uma textura de chiclete e um gosto que lembra aniz.

Nesse primeiro jogo fazia frio e uma família situada atrás de mim levou um cobertor. Três o utilizavam. O ambiente do estádio era bem simpático, limpo e acolhedor. O tempo todo me recordava de textos escritos pelos colegas Martin Curi e Leda Costa acerca de “caravanas” que faziam pelos estádios de clubes menos aquinhoados do Rio de Janeiro, pois identifiquei um clima de pertença, de proximidade. Comparei também, mas de forma oposta com o Mineirão, onde, logo após sua reinauguração era feito uma revista detalhada e se retirava qualquer alimento (até mesmo uma barrinha de cereal) do torcedor e se alimentava uma ideia de impessoalidade, de distanciamento, de estádio “modelo FIFA”.

A torcida do Levante (acredito que também dos outros clubes espanhóis) se organiza em peñas, que se configuram como uma associação, registrada no clube que reúne um grupamento de pessoas (de amigos, familiares etc.), podendo ter de dezenas a centenas de pessoas, com o fim de torcer pelo clube.  As peñas realizam atividades como viagens, almoços, jantares e ações outras. As peñas não possuem as características das nossas torcidas organizadas, que são formadas na sua maioria por homens jovens. No Levante há uma associação de peñas, onde tive a oportunidade de acompanhar uma assembleia, que tem direito a um voto no conselho do clube. Há uma única peña, com característica das nossas torcidas organizadas, que canta e toca o jogo todo. Ela fica situada no canto superior do estádio. Em poucos momentos do jogo o restante da torcida acompanha suas músicas. De uma maneira geral se assiste ao jogo sentado, só levantando em momentos cruciais da partida. Não era comum o uso de palavrões nem de vaias ao time, mesmo em situações de derrota. O mais acintoso era chamar o árbitro de burro (carregando-se muito no R). Creio, até que o sentido de burro lá é diferente do nosso, mas não consegui perceber. Contudo os dois grandes protestos que vi foram contra o árbitro e contra o time após uma derrota por 4×0 para o Real Sociedad. Os torcedores tiraram seus lenços brancos e balançaram. Um protesto que é oriundo das touradas. Em quase a totalidade dos jogos que assisti, o time do Levante saiu aplaudido pela sua torcida, mesmo nas derrotas.

Em suma, acompanhei uma torcida que é apaixonada por futebol, que vê no seu clube a possibilidade de representação identitária. Não são frios como dizem, nem “calientes” como los hermanos argentinos. São espanhóis, valencianos e agem como se age socialmente. São orgulhosos da história do Levante, sobretudo por ser o clube mais antigo da cidade. São cônscios da dificuldade que o clube tem em se manter. Não vi na torcida do Levante nada que a caracterizasse como a dita “torcida europeia”, deveras propalada aqui no Brasil.

Sugiro que acompanhemos mais esses clubes não globalizados do futebol globalizado para que tenhamos elementos desmistificadores de uma realidade de poucos, que vem se impondo cada vez mais como hegemônica não só no Brasil, mas também em outros países.


[1] Granota, em valenciano, é o mesmo que rã / sapo. Segundo os torcedores, eles foram assim apelidados, pois o Clube jogava na década de 30 em um campo que estava no leito do rio Turia (em frente ao Museu São Pio V, em Valência), em uma zona que havia um grande número de sapos.

[2] “O Valência fuma charutos e o Levante, cigarrilhas”.

[3] Como quando alguém é de uma seita ou uma organização ilegal e não pode dizer em público, mas há os sorrisos e os olhares de cumplicidade”.

[4] O mesmo que o carnê de jogos para todo ano.

[5] Caminhada que a torcida do Levante faz do seu estádio até o estádio do Valência em dias de Dérbi com mando de campo do rival.

[6] Que eles chamam de pipas

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Como citar

SILVA, Si­lvio Ricardo da. O torcer por um clube não globalizado em um futebol globalizado. Ludopédio, São Paulo, v. 114, n. 18, 2018.
Leia também:
  • 169.7

    Estatuto de Defesa do Torcedor e Lei Geral do Esporte: similaridades e distinções no que concerne à atuação perante as torcidas organizadas

    Fábio Henrique França Rezende, Renato Machado Saldanha, Si­lvio Ricardo da Silva
  • 168.20

    Tutela e controle no torcer no Brasil

    Fábio Henrique França Rezende, Renato Machado Saldanha,
  • 166.14

    O papel das torcidas no atual cenário social e político brasileiro

    Danilo da Silva Ramos, Fábio Henrique França Rezende