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“Onde quer que você olhe, eles estão jogando”: a complexa heterogeneidade do aprender futebol

Enrico Spaggiari 12 de novembro de 2018

A formação de jogadores para o futebol masculino brasileiro tem sido, desde o fatídico 7 a 1 de 2014, um dos temas mais debatidos pela mídia esportiva, inclusive gerando séries de reportagens e encontros de especialistas em congressos e seminários, preocupados em estabelecer modelos de formação “modernos” ou enaltecer formas “tradicionais” nostálgicas de um jogar à brasileira, tais especialistas pouco têm colocado em questão o caráter multifacetado do processo de ensino e aprendizagem de futebol em um contexto nacional que já se revela diversificado por razões geográficas, históricas, econômicas e sociais.

É possível observar uma pluralidade de sistemas de ensino de futebol, pautados por preocupações e objetivos dos mais diversos. Conhecimento científico e racionalização dos métodos são temas muito presentes nos discursos dos coordenadores e formuladores de projetos públicos esportivos, para quem as atuais escolinhas de futebol podem ser pensadas, numa retomada histórica, como instituições de ensino substitutas da rua, terrenos baldios e campinhos, que incorporam uma postura pedagógica na sua práxis. O aparecimento dessas, principalmente a partir da década de 1980, trouxe novas formas de se pensar o futebol brasileiro, com a valorização das demandas do universo espetacularizado, alicerçadas na nova ordem de formação de jogadores. Este advento faz parte de um grande do processo de modernização que teria se iniciado na década de 1960, com o surgimento de novos elementos (métodos de treinamento, tecnologias, marketing etc.) e atores sociais (preparadores físicos, fisiologistas, nutricionistas etc.) no quadro organizacional futebolístico. Nesse sentido, a racionalização dos métodos e técnicas de treinamento das escolinhas de futebol, decorrente de um possível cientificismo inspirado no universo esportivo espetacularizado, acabaria por preterir os modelos espontâneos de formação.

Em uma pesquisa de mestrado centrada em uma etnografia sobre os modos de se ensinar e de se aprender em uma escolinha de futebol na Cidade Líder, bairro periférico da zona leste paulistana, um aspecto veio a ganhar destaque ao longo da etnografia e suscitava opiniões destoantes dos diversos atores: a transmissão do saber futebolístico em outros espaços para além da escolinha. Algumas das pessoas envolvidas com o processo de ensino e aprendizagem de futebol defendiam que jogar na rua e nas quadras era essencial para a formação futebolística dos jovens; outros destacavam a importância dos treinos e atividades aplicados na escolinha para contemplar o sistema de formação de jogadores exigido, atualmente, pelo universo espetacularizado. Portanto, embora fossem espaços valorizados, havia uma tentativa dos coordenadores das atividades de assear os resquícios oriundos das práticas externas.

Existia um diálogo tenso entre as práticas mais espontâneas e as práticas institucionais oferecidas nas escolinhas de futebol. O coordenador da escolinha não permitia que as crianças usassem o campo para outros fins que não a prática do futebol ou a realização de exercícios físicos. O treinador da escolinha, igualmente, procurava separar as atividades que ministrava de outras práticas ditas espontâneas, chegando, em certos momentos, a negar outros espaços como locais de aprendizagem.

O futsal disputado na quadra poliesportiva era o espaço que mais disputava a atenção das crianças e jovens com o campo de várzea. O treinador, em diversos momentos, teve que proibir a entrada de garotos no treino por chegaram atrasados após partidas e jogos de futsal na quadra. Porém, trata-se atualmente, talvez, da principal modalidade disputada pelos jovens bairros periféricos de São Paulo, dividindo a preferência dos praticantes com o futebol varzeano.

Optei por não acompanhar a prática desta modalidade na Cidade Líder ao perceber a amplitude e alcance da prática no bairro, impossível de etnografar durante o mestrado. Mas se trata um objeto a ser estudado de forma mais detida em pesquisas futuras sobre a formação de jovens jogadores de futebol.

Mas faço alguns comentários. Observei um exemplo interessante em outro espaço do próprio CDM. Durante as atividades, em uma quarta-feira de manhã, Erick (nascido em 1994) participava do treino com bola no campo do CDM e, ao mesmo tempo, acompanhava o jogo disputado no espaço do bar, disputado naquele momento por quatro garotos. O treinador repreendeu duas vezes o garoto; na segunda vez, excluiu-o das atividades: “Se prefere ficar brincando, vai lá jogar com eles, então. Não vem encher o meu saco aqui. Aqui você não joga mais, não te ensino mais nada”, reclamou o treinador. E foi o que Erick fez: saiu do campo e foi direto ao bar para jogar com os demais garotos. Mas antes, disparou: “Não preciso que me ensinem, meu professor é a bola”.

Rotina de treinamentos. Foto: Enrico Spaggiari.

Esta suposta autonomia, indicada por Erick ao sugerir que não aprendia a jogar na escolinha, levanta algumas questões. O mesmo garoto, quando perguntei, respondeu que aprendera a jogar futebol em casa: “Fico jogando em casa, chutando bola na parede do quintal… faço também alguns truques, dou umas pedaladas… tento treinar essas coisas”. Em seguida, reforçou o argumento com outro exemplo: segundo Erick, quando era mais novo percebeu sozinho a importância de aprender a chutar de bico para o chute sair mais forte, pois não tinha a mesma força no arremate que os garotos mais velhos. “Eu já treinava na escolinha e ninguém me ensinou isso”, completou.

O fundamento do drible é um exemplo interessante para pensar as questões assinaladas por Erick. Não observei qualquer atividade direcionada ao aprendizado do fundamento “drible”. Embora o treino de carregar a bola por 15 metros, cruzando cones pela direita e esquerda alternadamente possa aludir aos fundamentos básicos do drible, o treinador da escolinha frisou que o principal objetivo deste traçado era aperfeiçoar o domínio de bola do jogador. Para ele, o drible e a ginga não são ensinados na escolinha, embora façam parte do conjunto de técnicas a serem incorporadas e instrumentalizadas pelo corpo.

O drible, segundo o treinador, vem “de forma natural” para a criança, “o moleque já nasce com isso”; por natural, ele se referia ao surgimento deste fundamento na rua, nos campinhos e em outros espaços dos mais variados. O drible está presente nos modos de jogar destes garotos, assim como em seus movimentos, enquanto elemento basilar das representações de um “jogar à brasileira” e de um “futebol-arte”, o que contribui significativamente para a definição de um modo de aprendizado da prática futebolística no Brasil. Tal comparação pode ser vista nos extremos habilidade/força, intuitivo/racional, futebol-arte/futebol-força – imprescindíveis para a compreensão dos estilos brasileiro e europeu. São estilos que não se definem por sua unidade opositiva, mas sim pelo fato de apresentarem elementos em comum e sobrepostos.

Portanto, como é possível perceber no caso do drible, a valorização e a negação dos aprendizados nas práticas espontâneas eram frequentemente articuladas ao mesmo tempo. Na escolinha, havia um processo de ensino concebido como uma geração mais velha ensinando gerações mais novas. Porém, a etnografia permitiu perceber que não se tratava de uma simples incorporação de saberes, pois o envolvimento das crianças e jovens é consciente e com um fim. Aquele que ensina e os que aprendem são sujeitos atuantes no ensino-aprendizagem, pois na transmissão destes saberes, a pedagogia envolve a todos e a criança e o jovem são sujeitos ativos no processo.

Sendo partícipes efetivas da produção social, as crianças não devem ser encaradas como receptores passivos dos ensinamentos transmitidos pelos adultos nos processos de socialização. Mesmo o aprendizado mimético não é uma imitação mecânica da experiência adulta, mas sim uma recriação construída de forma dialógica, a partir de suas experiências e de suas relações com o mundo que as rodeiam. Isso leva a uma revisão, aqui esboçada, das abordagens socializadoras unilaterais, que pressupõem apenas as ações dos adultos.

Isso era visível na atuação destes em diferentes locais – como, por exemplo, no domínio da rua –, horas vividas nos espaços públicos e privados decisivas para o desenvolvimento das habilidades. Trata-se de uma característica que permeia o imaginário do futebol brasileiro, por vezes recriminada, visto a reação de muitos brasileiros à declaração do atacante francês Thierry Henry antes do jogo Brasil e França, pelas quartas de final da Copa do Mundo de Futebol Masculino de 2006: “Quando eu era criança, ia à escola das 7 horas da manhã às 5 da tarde e, quando queria jogar bola, minha mãe não deixava. Dizia que estudar era mais importante. No Brasil, as crianças jogam das 8 às 18 horas. Em algum momento a técnica aparece. […] [no Brasil as crianças] nascem com a bola nos pés. Na praia, na rua, na escola. Onde quer que você olhe, eles estão jogando”.

Trata-se, portanto, de um processo de aprendizagem vinculado a uma diversidade de usos do futebol e de experiências no espaço urbano, que dotam estas dimensões de novos significados, e de um modo que o futebol atravessa a vida dos jovens nos mais diversos sentidos: festa, trabalho, consumo, lazer. A internalização deste conhecimento ocorre, portanto, de diferentes formas. Isso é possível devido ao processo de realimentação mútua entre as diferentes práticas e modalidades: futebol espetacularizado, futebol de praia, futebol de rua, pelada, futebol de várzea etc. Os jogos mais espontâneos influenciam e interferem na dinâmica do futebol association, ao mesmo tempo em que o futebol espetacularizado, por seu lado, é a principal inspiração e o esporte mais popular entre os praticantes destas outras modalidades futebolísticas. Entre o futebol association e as demais práticas bricoladas, a maioria das características se repetem, embora apresentem especificidades, autonomia e irredutibilidade, e o que é aprimorado em um, pode ser utilizado em outro.

Destaco aqui, portanto, uma concomitância pedagógica dos diversos espaços de aprendizagem. Não há uma incoerência entre o modo como se aprendeu e o modo como se ensina, visto que se trata de um processo de ensino-aprendizagem marcado por uma complexa heterogeneidade, assinalo a importância de analisar de forma contextual os treinos e métodos de ensino adotados hoje. Penso que o desafio para aqueles que pretendem investigar a construção do saber futebolístico é compreender a relação entre o que é vivenciado no futebol de rua e outros espaços, confrontando com o que é ensinado no espaço das escolinhas. Para isso, são necessários outros trabalhos sobre a convivência pedagógica entre as brincadeiras de rua, aulas de escolinha de futebol, partidas de futsal, atividades nas aulas de Educação Física, games virtuais de futebol etc.

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Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP.Fundador e editor do Ludopédio.

Como citar

SPAGGIARI, Enrico. “Onde quer que você olhe, eles estão jogando”: a complexa heterogeneidade do aprender futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 113, n. 13, 2018.
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