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A presença do aguante nos bondes de pista brasileiros

A fundamentação das brigas em torno do futebol no cenário brasileiro é bem estabelecida por Toledo (1996), Teixeira (2001), Lopes (2013) e Hollanda (2016). Os referidos autores também contextualizam esse processo de mudança na forma com que os confrontos acontecem no Brasil, sendo a década de 1970 e 1980 marcada por brigas limpas, ou seja, sem a utilização de armas brancas e de fogo que induziriam uma espécie de vantagem para um dos lados. Nessa época a imprensa ainda observava as torcidas organizadas como instituições voltadas para as festas na arquibancada, expressando um modo de vida que era baseado no espetáculo e apoio aos seus clubes. Já o final dos anos 1980 e a década de 1990 marcam um processo de criminalização destes grupos torcedores (LOPES, 2013), por uma maior atenção do poder público, da mídia e da sociedade para os confrontos entre torcedores que a partir dos períodos citados anteriormente, culminaram em combates com maiores níveis de letalidade e que, por isto, passaram a contar com a presença de armas de fogo, emboscadas, espancamentos e, consequentemente, com um maior número de mortes. A respeito desse ponto, Murad (2007) relata que os óbitos envolvendo torcedores de futebol cresceu de maneira exponencial nos anos 2000.

A notória perseguição dos meios de comunicação e dos aparatos legislativos às torcidas organizadas provocou duas consequências que mudariam nas duas décadas seguintes a atuação desses grupos no Brasil: a primeira é a formulação de leis específicas, como o Estatuto de Defesa do Torcedor e a Lei Geral do Esporte (SALDANHA & REZENDE, 2023), que criminalizam e colocam à margem esses grupos torcedores. Isso faz com que as reflexões sejam conduzidas para categorias homogêneas e falaciosas que reduzem as mencionadas torcidas para um único prisma, de associações violentas, de desocupados e marginais. A segunda consequência está relacionada com a primeira, pois a partir de uma premissa que o Estado julga e condena os torcedores, especialmente, os que se organizam para torcer em grupo. Nesse sentido, a partir do aumento da letalidade das brigas no futebol brasileiro a imprensa se apropriou de um discurso sensacionalista (LOPES, 2013) ao longo das décadas.

O fato é que as emboscadas e mortes também incomodam inúmeros torcedores, que apesar de encarem a pista como uma necessidade torcedora e se mostrarem a favor desse estilo de vida, entendem que regras de conduta devem existir, em prol de valorizar a vida, prezando por uma ideia de jogo em detrimento do extermínio (COELHO, 2016). É justamente, sob essa premissa que surgem os bondes de pista (REZENDE, 2023). Estes são grupos independentes ao clube, formados por integrantes e ex-integrantes de torcidas organizadas e que têm o intuito de resgatar tradições de brigas limpas, na qual eles consideram que foram perdidas com o decorrer das décadas no futebol brasileiro. Além disso, eles têm regras estipuladas para as contendas, como não agredir torcedores que estão desacordados/caídos; número aproximado de participantes e a utilização apenas dos punhos como forma de ataque e defesa. Portanto, a presente escrita tem como finalidade mostrar e refletir sobre a presença do aguante no contexto dos bondes de pista brasileiros.

No Brasil são cinco os bondes de pista: Sobranada 1902 do Fluminense Football Club, Bate Anda representante do Clube de Regatas do Flamengo, Bonde da Aliança do Ceará Sporting Club e os Ultras do ABC Futebol Clube de Natal. Cabe destacar o Bonde do Braço Fino (BBF) do Santos Futebol Clube, que foi o primeiro grupo nesse formato no cenário brasileiro. Este surgiu em 6 de novembro de 2008, com o lema de ser o bonde mais falado do Brasil, por meio da premissa de trocar soco e sair andando (REZENDE, 2023). Contudo, atualmente, o BBF vem passando por um processo de transformação junto ao Ministério Público de São Paulo e as demais autoridades paulistas, com a finalidade de virar uma torcida organizada do Santos Futebol Clube.

Bonde Do Braço Fino
Fonte: reprodução Facebook Bonde Do Braço Fino

Os bondes de pista possuem características em comum, como: não possuir Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ); encararem as brigas como lazer; têm regras estipuladas; primam por confrontos limpos que são designados pela utilização somente dos punhos; não possuem sede própria e se preparam fisicamente para os confrontos, mantendo uma cultura de treinos de defesa pessoal, com a finalidade de deixar os seus membros em uma forma física que eles consideram como ideal para as contendas.

As torcidas organizadas (TEIXEIRA, 2001), barras sul-americanas (ALABARCES, 2012), ultras (SPAAIJ & VIÑAS, 2005) e hooligans (DUNNING, 1994), historicamente, têm como um dos principais atributos a fidelidade e o pertencimento dos seus membros aos grupos. Diante disso, Zucal (2006, 2010) fundamenta a ideia do tener aguante para justificar os processos de sociabilidade voltados para práticas masculinas nas barras do futebol argentino. Para o referido autor, o ato de colocar o corpo à prova nas situações mais difíceis é a forma com que esses torcedores têm de demonstrar o seu estilo de vida e defender as cores da barra e do clube.

Castro (2013), destaca que o aguante deve ser entendido pelo ponto de vista que o caracteriza em duas grandes facetas: o combate e o carnaval. O primeiro é a lógica que os bondes de pista cunham o seu processo identitário, por meio de um gosto pela preparação e por confrontar os seus rivais, sejam eles outros grupos torcedores e/ou a polícia. O combate é algo buscado pelos torcedores na conjuntura dos bondes de pista, sendo este um atributo de diferenciação em relação a outros adeptos que não têm essa dinâmica presente. Já o carnaval é o ato de apoiar o seu clube em todas as ocasiões, especialmente, nos momentos mais difíceis, nos jogos em que a presença de público é baixa e as dificuldades são elevadas, seja pelo horário ruim, pelo clima que não favorece, pelo elevado valor dos ingressos, pela repressão policial e pelo fato do jogo ser em um território hostil para o grupo e/ou pela longa distância em que a partida acontecerá. 

O que faz com que o combate e o carnaval convergem para a categoria do aguante, é o caráter de sacrifício e de pôr o corpo à prova (ALABARCES, 2012), seja dos golpes discorridos pelos rivais, pelo cansaço ocasionado por longas viagens e/ou pela dificuldade em acompanhar o time do coração. É importante destacar que no cenário brasileiro e nos discursos dos líderes dos bondes de pista (REZENDE, 2023), não se tem a presença da expressão aguante. No entanto, as similaridades à conjuntura dos países da América Latina, especialmente, Argentina e Colômbia, comprovam que o aguante também está presente no Brasil. Isso é reafirmado nas análises das entrevistas que venho realizando durante a minha dissertação acerca dos bondes de pista e em trabalhos de campo efetuados durante os últimos dois anos em que observei que o apoio ao clube, a presença em todos os jogos seja como mandante ou visitante e o fato dos materiais do bonde de pista adentrarem aos estádios é algo tão importante quanto não recuar diante dos seus rivais na pista. Visto que, a ação de se fazer presente, utilizar os trajes do grupo (mesmo que proibidos), realizar caminhadas e caravanas também se mostra como movimentações que protagonizam masculinidade, honra e prestígio. Zucal (2006), afirma que os cânticos e as brigas também servem como forma de demonstrar masculinidade, coragem e honra por meio da pré-disposição de confrontar os grupos rivais (torcedores e policiais), comprovando superioridade e distinção frente a outros adeptos que não possuem esses códigos de conduta. Dentre uma das formas de demonstrar aguante, destaco a pré-disposição para os confrontos e por consequência, o envolvimento nas pistas. Categoria destacada pelos torcedores durante as entrevistas, como os locais em que as brigas ocorrem é comprovado por meio de cicatrizes, tatuagens e histórias que são valorizadas internamente.

Ademais, é importante destacar que existem diferenças em ambos os contextos. Enquanto, no Brasil os bondes de pistas e as torcidas organizadas de pistas, ainda têm os confrontos físicos contra grupos rivais como elementos presentes em suas práticas de sociabilidades. Já as barras argentinas, de acordo com Cabrera; Zucal & Murzi (2020), já não se confrontam com regularidade contra os seus rivais clubísticos, devido à proibição de torcidas visitantes nos jogos do Campeonato Argentino. Agora o interesse é na tomada do poder interno, afinal, o ato de dominar a arquibancada é lucrativo e atrai diferentes interessados. Assim, o aguante no que concerne às brigas está relacionado a combater o inimigo que não mais se encontra do outro lado das arquibancadas, mas sim, ao lado e vestindo as mesmas cores. Outro ponto a ser destacado, é que nas últimas décadas na Argentina pouco se tem a cultura de confrontar fisicamente o seu adversário, as brigas na maioria da ocasião, como destaca Cabrera; Zucal & Murzi (2020) acontecem com a presença de armas de fogo, o que faz com estes sejam mais letais do que no Brasil.

Em suma, a violência protagonizada por batalhas que os membros dos bondes de pista encaram como limpas, expressa a subjetividade desses grupos de torcedores. O aguante é a forma de expressão pura desse estilo de vida que os diferencia de outros torcedores, pois além deles buscarem um êxito nas brigas, eles demonstram a fidelidade por seu clube protagonizando uma presença maciça nos jogos seja como mandante e/ou visitante. Vale dizer, que os bondes de pistas não entendem o vencer a qualquer custo como um desfecho positivo das contendas e nem tão pouco o brigar contra grupos de torcedores que não possuem estas práticas como processos de sociabilidade como algo honroso. Afinal, para os citados grupos torcedores, esta experiência é entendida como um esporte, logo, ambos os lados precisam ter condições equilibradas de atacar e de defender para que a vitória seja algo imprevisível, permitindo com que os códigos de ética e de conduta sejam respeitados e perpetuem, protagonizando uma nova condição torcedora mais justa e leal, no que diz respeito, às pistas (REZENDE, 2023).

Referências

ALABARCES, P. Crónicas del aguante: fútbol, violencia y política. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2012.

CABRERA, N. ZUCAL, G. MURZI, D.J. 2018. ¿El ocaso del aguante? Reinterpretando la violencia en el fútbol argentino. Revista de Ciencias Sociales, Vol 27 Núm. 40. Universidad Arturo Prat., 2018

CASTRO J. El carnaval y el combate hacen el aguante en una barra brava. Revista Colombiana de Sociología, 36:77-92, 2013.

COELHO, G. Deixa os garotos brincar. Rio de Janeiro: Multifoco, 2016.

DUNNING, E. The Social Roots or Football Hooliganism. A reply to the critics of the ‘Leicester School’, in Richard Giulianotti (org.), Football, Violence and Social Identity. Londres: Routledge, 1994, p.144.

HOLLANDA, B. B. B. de. A formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro: uma leitura de sua dinâmica histórica a partir das fontes impressas do Jornal dos Sports (1940-1980). Brasiliana, v.5, p. 367-404, 2016.

LOPES, F. T. P. Dimensões Ideológicas do debate público acerca da violência no futebol brasileiro. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v. 27, p.597-612, out-dez. 2013.

MURAD, M. A violência ao futebol: dos estudos clássicos aos dias de hoje. Rio de Janeiro: FGV, 2007.

REZENDE, F.H.F. Uma nova condição torcedora: um estudo sobre os bondes de pista brasileiros e as brigas como lazer. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 20, 2023.

REZENDE, F.H.F; SALDANHA, R.M & SILVA, S.R. da. Estatuto de Defesa do Torcedor e Lei Geral do Esporte: similaridades e distinções no que concerne à atuação perante as torcidas organizadasLudopédio, São Paulo, v. 169, n. 7, 2023.

SPAAIJ, R.; VINÃS, C. Passion, politics and Violence: A social historic analysis of Spanish Ultras in Soccer and Society, vol. 6, no 1, p. 79-96, 2005.

TEIXEIRA, R. C. da. Torcidas jovens: entre a festa e a briga. Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência Política. nº.10/11: 85-104, 2001.

TOLEDO, LH. Torcidas organizadas de futebol. Campinas: Autores Associados; 1996.

ZUCAL, J.G. El Aguante: prácticas violentas y identidades de género masculino en um grupo de simpatizantes del fútbol argentino. Buenos Aires: Tesis de Licenciatura/Departamento de Ciências Antropológicas (UBA), 2004.

ZUCAL, J.G. Nosotros nos peleamos: violencia e identidad de una hinchada de fútbol. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2010.

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Fábio Henrique França Rezende

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Grupo de Estudos em Sociologia e Pedagogia do Esporte e do Lazer (GESPEL/UFMG). Membro do Grupo de Estudos Sobre Futebol e Torcidas (GEFUT/UFMG).

Como citar

REZENDE, Fábio Henrique França. A presença do aguante nos bondes de pista brasileiros. Ludopédio, São Paulo, v. 178, n. 4, 2024.
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