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A ordem natural das coisas

José Paulo Florenzano 4 de janeiro de 2018

Depois de se distinguir no meio de campo da Portuguesa de Desportos, ao longo de toda uma década, Antenor Lucas, cognominado Brandãozinho, teve de abandonar os gramados em 1957 devido a uma grave contusão no joelho. Em meados dos anos sessenta, A Gazeta Esportiva Ilustrada reavivava a memória dos apreciadores do bom futebol: “Quem não se lembra do simpático e até elegante craque Brandãozinho, que tanto êxito obteve na Portuguesa de Desportos e nas seleções do Brasil?” [1] De fato, bicampeão do Torneio Rio-São Paulo nos anos cinquenta, Brandãozinho esteve presente no Campeonato Pan-Americano de 1952, no Chile, e na Copa do Mundo de 1954, na Suíça.

Seleção no Chile - 01.03.1953
Brandãozinho, em pé, com a seleção brasileira no Chile. Acervo: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Mas após brilhar intensamente dentro das quatro linhas, o nome do admirado volante do rubro-verde havia caído no esquecimento. A reportagem supracitada refazia os passos que o conduziram ao ostracismo. Uma vez encerrada a trajetória de atleta, ele se lançara na carreira de treinador, dirigindo equipes sem expressão no cenário estadual, como a Vila Santista, de Mogi das Cruzes, o Nacional, da Capital e a Ferroviária, de Botucatu. Frustrado e desanimado, Brandãozinho decidiu se retirar em definitivo do futebol, trabalhando como funcionário da secretaria de Segurança Pública. Todavia, incapaz de se manter afastado da atividade que conferia sentido à sua existência, não demorou a retornar ao Canindé a fim de exercer uma nova função, conforme explicava aos repórteres esportivos:

Cuido das turmas infantil, juvenil e aspirante e colaboro no que for preciso com Aimoré Moreira. Estou no meu clube do coração e trabalhando no que mais aprecio: futebol.[2]

A reportagem de A Gazeta Esportiva Ilustrada exibia Brandãozinho no gramado do Canindé, colaborando com o treinador Aimoré Moreira, distribuindo as camisas aos titulares e aos reservas, trocando impressões com o “Estado-Maior”, composto, ainda, pelas figuras do massagista Mário Américo e do preparador físico Wilson Bugarib. A cena exprimia aparentemente a ordem natural das coisas, com os agentes históricos ocupando as posições prescritas pela lógica racial que estruturava as relações sociais na esfera do jogo. Com efeito, nesta moldura, o ex-atleta negro encontrava-se relegado quase sempre à condição de auxiliar técnico ou, ainda, à de responsável pelas categorias de base; ao passo que o ex-atleta branco via-se comumente situado no centro da atividade esportiva, encarnando o papel de diretor-técnico, preparador físico e médico esportivo.

Contemplando o quadro pelo viés da ideologia dominante, isto é, a do mito da democracia racial, torna-se difícil divisar com clareza a linha de demarcação que separava e hierarquizava os referidos atores, bem como apreender a dinâmica social que a consolidava e perpetuava. De fato, longe de exibir uma cena estática, na qual as personagens permaneciam fixas e imóveis e sem margem alguma de ação, o quadro desvelava por vezes um movimento surpreendente, de avanços e recuos, capaz de embaralhar os dados e confundir os olhares mais atentos à lógica da hierarquia racial, como mostrava o vaivém dos treinadores no Canindé na segunda metade dos anos sessenta.

Senão vejamos: alguns meses depois de retornar ao Canindé, Brandãozinho foi surpreendido com a resolução repentina da direção do rubro verde de promovê-lo à função de treinador da equipe principal. Às vésperas da estreia no Torneio Rio-São Paulo, em fevereiro de 1966, ele reconhecia tratar-se de “uma grande oportunidade” e manifestava aos repórteres o desejo de “aproveitá-la”.[3] Infelizmente, porém, logo na primeira partida da competição interestadual sobreveio a derrota para a esquadra de Moça Bonita, 2 a 1 para o Bangu, prenunciando as dificuldades que aguardavam o técnico negro na sequência do certame. De fato, ele não se manteve no cargo, voltando a cuidar das equipes juvenis, sendo substituído por Wilson Francisco Alves em agosto de 1966. O antigo zagueiro do Santos foi contratado como treinador em uma situação de emergência, no segundo semestre de 1966, quando a Portuguesa de Desportos encontrava-se na penúltima colocação do certame estadual. Os diretores trouxeram “um mulato entroncado” que havia realizado no ano anterior um “excelente trabalho” no São Bento de Sorocaba, conduzindo o clube interiorano à série principal do Campeonato Paulista.[4] Corroborando as expectativas, a Lusa chegava ao fim da competição em sexto lugar, posição satisfatória à luz das circunstâncias em que Wilson Francisco Alves havia sido efetivado no cargo. De acordo com A Gazeta Esportiva Ilustrada, ele estava “mostrando” que não era técnico “apenas de clube pequeno”.[5]

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Brandãozinho. Acervo: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Eis a suspeita permanente a rondar a carreira do comandante negro. Os exemplos nesse sentido podem ser multiplicados, mas basta-nos mencionar aqui a trajetória de Agenor Gomes, codinome Manga, antigo goleiro do alvinegro praiano e companheiro de Wilson Francisco Alves na campanha do bicampeonato paulista de 1955-1956.

Manga se lançara no novo ofício no início dos anos sessenta. Em março de 1965 ele trouxe a Portuguesa Santista de volta à Divisão Especial do Campeonato Paulista, derrotando a Ponte Preta, em pleno Moisés Lucarelli, pelo placar de 1 a 0, uma partida inolvidável para as duas coletividades, obviamente por razões inversas. No ano seguinte, Manga viria reeditar a proeza, desta feita com a Ferroviária, de Araraquara, ao derrotar na segunda partida da decisão, disputada no estádio do Pacaembu, o XV de Piracicaba pelo placar de 1 a 0.[6] Não obstante o duplo sucesso experimentado na Portuguesa Santista e na Ferroviária de Araraquara, ao que consta, nenhuma equipe de maior projeção se dispôs a lhe dar uma chance, tampouco os dirigentes do Santos. O comandante negro parecia dotado de uma vocação natural para a direção técnica de equipes interioranas, em especial para a missão redentora de promovê-las de uma série inferior para uma divisão especial. Adelson Narciso, zagueiro central da Portuguesa Santista na campanha épica de 1965, considerava Manga “um cara sensacional para se trabalhar”, que “tinha toda a noção do futebol”. Sendo assim, por que então ele foi incapaz de trabalhar “num time grande”? A resposta, de tão singela, soa desconcertante: “talvez pela humildade”.[7]

Conforme discutido no artigo anterior, o treinador negro se vê invariavelmente rotulado de humilde, ou, de modo inverso, mas simétrico, de autoritário. De um modo ou de outro, ele sempre se mostra aquém ou além do ponto de equilíbrio no exercício do poder. Esta inadequação, contudo, verifica-se quando ele se encontra à frente da equipe profissional do clube grande. No caso das categorias de base, ao contrário, ele parece se movimentar com naturalidade no posto de técnico, desincumbindo-se da nobre função sem excessos ou insuficiências. Para desfazer esta percepção social, amplamente difundida na esfera do futebol, Wilson Francisco Alves precisava não somente obter resultados dentro de campo, exigência universal imposta a todos aqueles que se aventuravam na profissão, mas, simultaneamente, contrariar a ordem sócio-racial do futebol brasileiro que a asserção de A Gazeta Esportiva Ilustrada aludia e evocava, vinculando o técnico negro ao time pequeno, estabelecendo entre eles um elo natural, evidente e insuperável.

Com efeito, na temporada de 1967 a equipe da Portuguesa de Desportos não obteve o desempenho que os dirigentes do clube esperavam e, dessa maneira, em outubro, após mais de um ano no cargo, tempo nada desprezível se levarmos em consideração a rotatividade da profissão, Wilson Francisco Alves acabaria demitido, cedendo o lugar para Brandãozinho.[8] A gangorra instalada no Canindé alçava o antigo volante de volta ao cobiçado cargo do rubro verde e o levava a “bater no peito” e proclamar em alto e bom som: “Sou o técnico”.[9] Atentemos para esta proclamação! Ela soava como a afirmação exasperada de quem se sentia capaz de ocupar o posto, de quem acreditava possuir os atributos para exercer a função, de quem reivindicava o direito de ser reconhecido como treinador de um clube grande.

Mas, infelizmente, a lógica racial que movia a roda viva do futebol encarregar-se-ia de abreviar a segunda tentativa de Brandãozinho de se manter na condição de treinador da equipe principal do Canindé. Pouco meses depois da afirmação enfática do antigo atleta do rubro verde, vemo-lo novamente cuidando dos “meninos” da Portuguesa de Desportos, à frente da equipe infanto-juvenil do clube.[10] As categorias de base se afiguravam como o lugar designado pelo dispositivo racial ao treinador negro, espaço de evidência fora do qual somente os mais bafejados pela fortuna logravam sobreviver e progredir, constituindo-se na exceção que confirmava a regra.

Não devemos nos admirar, portanto, pelo fato de Brandãozinho não ter logrado sucesso no cargo, persuadindo os dirigentes do clube, os torcedores da equipe e os cronistas do esporte, de que ele, afinal de contas, era efetivamente o técnico do time profissional.

[1] Cf. “´Futebol é uma cachaça: não consigo deixá-lo`”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, nº290, 2º quinzena de novembro de 1965.

[2] Cf. “´Futebol é uma cachaça: não consigo deixá-lo`”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, nº290, 2º quinzena de novembro de 1965.

[3] Cf. “Brandãozinho quer estrear com o pé direito”, A Gazeta Esportiva, 11 de fevereiro de 1966.

[4] Cf. “Wilson chegou ao Canindé falando grosso: ´Quem fizer corpo mole irá para o olho da rua`”, A Gazeta Esportiva, 1 de setembro de 1966. A expressão “um mulato entroncado” aparece na matéria “Técnico do São Bento não tem segredos para contar. Wilson sossegado dirige o melhor time do interior”, A Gazeta Esportiva, 21 de novembro de 1964.

[5] Cf. “Wilson mudou muita coisa na Portuguesa”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, nº311, 1º quinzena de outubro de 1966.

[6] Cf. “Seja benvinda Ferroviária”, A Gazeta Esportiva, 22 de dezembro de 1966. A primeira partida terminara empatada. A equipe de Araraquara passara uma temporada na Primeira Divisão.

[7] Cf. Entrevista concedida ao autor pelo ex-atleta da Portuguesa Santista, na cidade de Santos, em 13 de agosto de 2009.

[8] Cf. “Lusa afasta Wilson”, A Gazeta Esportiva, 19 de outubro de 1967.

[9] Cf. “Brandãozinho esperou muito por um lugar ao sol! ´Finalmente, chegou o dia`”, A Gazeta Esportiva, 19 de novembro de 1967.

[10] Cf. “Infanto-juvenil começa. Brandãozinho acredita nos seus ´meninos`”, A Gazeta Esportiva, 6 de abril de 1968.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A ordem natural das coisas. Ludopédio, São Paulo, v. 103, n. 4, 2018.
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