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Os direitos de transmissões de futebol e acessibilidade em tempos de streaming

Julia Menossi 24 de outubro de 2023

Introdução

Foi o historiador medievalista Hilário Franco Junior em sua obra A dança dos Deuses quem definiu “o futebol como fenômeno cultural total”.  Neste livro, o autor buscou não o escrever enquanto torcedor e amante do esporte, mas sim, como historiador conciso de sua tarefa enquanto pesquisador de uma ciência humana. Além de traçar paralelos sobre práticas antigas que se assemelham ao futebol moderno e bretão, Hilário manteve a criticidade no que concerne ao contexto em que o futebol inglês foi se desenvolvendo, na segunda metade do século XIX, em que definiu “A mentalidade liberal e a mercantil transformou o futebol em negócio mundial” (2007, p. 116). Baseado nesta premissa, atualmente, com um desenvolvimento desenfreado das práticas mercantilistas, onde os ideais do mercado se sobrepõem aos da vida, falar sobre futebol sem falar de lucro, dinheiro e capitalismo, é improvável.

A partir do momento em que se faz uma leitura sobre a sociedade em que vivemos, todos os setores que estruturam ela econômica, política e culturalmente falando, refletem na desigualdade social que precisa existir enquanto o capitalismo for o modelo dominante mundial vigente. E é no âmbito cultural que o futebol entra, sendo o principal elemento de cultura de massa, ainda mais se tratando do Brasil. Sendo assim, é importante frisar sobre o principal mecanismo de controle de cultura de massa na sociedade contemporânea, a mídia. Ela tem como principal papel desempenhar uma grande influência no meio social, onde sua estrutura complexa tem como objetivo produzir espetáculos. Nesse sentido, ao compreender o futebol como o maior fenômeno de cultura de massa e a mídia como ferramenta indispensável no controle da cultura de uma sociedade, a exploração desse fenômeno seria evidente.

De início com os rádios, depois com a televisão, e atualmente por meio de celulares, tablets e computadores via internet com o surgimento dos streamings. A mídia se incorporou profundamente neste “negócio mundial” que é o futebol através das transmissões dos jogos. Com isso, as principais plataformas midiáticas, passaram a “moldar” o futebol ajustando os formatos das partidas de acordo com seus interesses, onde o pagamento pelo uso da plataforma em que está sendo transmitida a partida é imprescindível. Segundo Prochnik (2010, p. 6), a transmissão dos jogos, por si só não é o suficiente para popularizar um esporte. Essa popularização só ocorre quando houver um interesse prévio do público, ou seja, um esporte que depende unicamente do seu público para se manter dominante no que se refere aos demais, não deveria tê-lo como prioridade? Como ficam os torcedores nesse jogo midiático de interesse privado? Como o esporte mais popular do Brasil lida com a acessibilidade de seus torcedores? Como isso começou e onde vai parar?

Streaming
Fonte: Imagem de Freepik

A televisão brasileira e o monopólio da Rede Globo nas transmissões de futebol

Na história do Brasil, de acordo com o pesquisador Mateus Teófilo Neto (2017) a televisão tem seu marco inicial em 1950 com o pioneirismo da TV Tupi sob comando de Assis Chateaubriand. Os televisores por muito tempo foram considerados artigos de pessoas privilegiadas financeiramente, custando próximo aos preços de automóveis naquele contexto. A partir da década de setenta, com a chegada da TV em cores, poucas pessoas gozadas de privilégios puderam ver a Seleção Brasileira de futebol ser campeã do mundo com a avançada tecnologia, que não parou por aí. Na década de 1980, com o surgimento de novas emissoras, o controle remoto surge para facilitar a vida dos consumidores desse aparelho, e dez anos depois, nos anos 1990, duas novidades marcam outro salto tecnológico: a TV de plasma e de LCD além da chegada da TV por assinatura, que permitiu uma variedade de canais aos que tivessem condições financeiras de pagar pelo serviço.

Com o passar do tempo a televisão foi tomando espaço nos lares das famílias brasileiras, bem como, se tornando fundamental para a consolidação do esporte, principalmente do futebol, sob a ótica de um público que conseguia ver seu time do coração na sua própria casa. Em 1992, aconteciam os Jogos Olímpicos de Barcelona, o primeiro evento internacional com cobertura e transmissão televisiva. Já nos anos 2000, com preços mais acessíveis, a televisão pôde ser encontrada em 97% dos lares do Brasil (IBGE, 2015). Com essa potencialização no consumo e no acesso, a televisão se tornou fundamental dentro da sociedade capitalista brasileira, no âmbito político, econômico e social. Veículo disseminador de ideias e formador de opiniões, um dos principais fomentadores da publicidade e difusor de tendências e entretenimento, viu no esporte e no futebol uma grande oportunidade de expandir seu controle sobre a sociedade.

Desde o seu surgimento, a Rede Globo de Televisão esteve envolvida em acontecimentos políticos do país. Com sua criação alinhada a Ditadura Militar, a nova proposta econômica da política do contexto, interferiu diretamente no desenvolvimento das comunicações televisivas. Em 1970, a Rede Globo adquiriu os direitos de transmissão da Copa do Mundo, e ao alcançar altos índices de audiência, o grupo televisivo ao longo da década de 1970 foi dando cada vez mais espaço ao esporte em sua programação. É somente a partir da década de 1980, no contexto da potencialização das políticas neoliberais no mundo, que o futebol é visto como grande negócio para a televisão brasileira.

A Rede Globo sempre buscou ter sob seus domínios a exclusividade das transmissões dos principais campeonatos do Brasil e da Copa do Mundo. Segundo Bruno Maia, especialista em marketing esportivo, presidente da Feel The Match[1] “no Brasil, por circunstâncias econômicas e políticas, a Globo sempre teve uma primazia muito grande na Tv aberta”. Logicamente, existe um entendimento mutuo que a capacidade técnica da emissora e suas afiliadas de transmitir com qualidade os jogos realizados no país inteiro é um ponto positivo, mas o que há por trás dessa primazia fere a tudo isso.

A força econômica da Rede Globo, deu a si própria a sensação de monopólio, o que levou a uma concentração de transmissões, se envolvendo nos calendários e nos horários dos jogos. Em 2015 foi revelada uma relação criminosa entre a direção de esportes da Globo e a CBF (Confederação Brasileira de Futebol), com Ricardo Teixeira, dirigente esportivo que permaneceu como presidente da maior entidade de futebol do Brasil de 1989 a 2012. Sem transparências e com denúncias feitas, foi descoberto o que o ficou conhecido como “Fifagate”. Isso nada mais foi que uma operação feita pelo FBI (unidade de polícia do Departamento de Justiça dos Estados Unidos), que resultou na prisão de sete dirigentes de futebol na Suíça, indiciamento de 34 réus entre empresas e pessoas. Com a investigação, alguns dirigentes relataram que a Rede Globo estava pagando valores milionários em propina para manter com exclusividade as transmissões de jogos. Em nota, a Globo desconheceu os pagamentos apontando “não tolerar nem pagar propina”.

De fato, é preciso entender que há muito dinheiro envolvido no que concerne às transmissões televisivas de futebol. Antigamente, o artigo 42-A da Lei Pelé de 1998, afirmava que a transmissão pertencia aos dois clubes, onde o acordo entre ambos delimitava a empresa responsável pelos direitos. Só que havia um porém, os clubes menores facilitavam a tramitação para entrar em acordo com a Rede Globo, e times grandes como Flamengo, Corinthians e demais só cabia a negociação, visto que a emissora já havia negociado com o clube menor.

 Com grande desagrado da maioria dos clubes grandes do Brasil, a Lei do Mandante 14.205/21, sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, contrariou os interesses da Globo, onde basta ter acordo com o time detentor do mando de campo, para transmitir as partidas de futebol.

O fim do predomínio absoluto de uma única emissora sob a transmissão de jogos pode ser visto por muitos como algo positivo, e realmente é, afinal, monopólio nunca é uma situação ideal. Uma única emissora ter os domínios sob o rumo do futebol brasileiro não deve ser visto legalmente. Para os clubes, isso também é benéfico, podem melhorar a gestão financeira ao receber de mais de uma empresa pela transmissão de seus jogos. Cada vez menos o futebol é transmitido na TV aberta, e cada vez mais é preciso pagar para ver os jogos, dentro da sua própria casa. O que agora é considerado tendência, onde estádios de futebol se transformam em estúdios, a nova predominância sob os direitos de transmissão de futebol é da internet, com as plataformas de streamings assumindo grande protagonismo.

O que é streaming e como surgiu?

Paralelo ao desenvolvimento da televisão, nos Estados Unidos da América durante a década de 1960, uma outra tecnologia florescia, a internet. Todavia, sua popularização e consumação, aconteceu apenas nos finais dos anos oitenta para início dos anos noventa. Somente na virada para os anos 2000, a internet pôde ser vista no cotidiano das pessoas, bem como a cobiça por conexões mais rápidas. Aos poucos, a convergência entre televisão, internet e dispositivos móveis, foram dando margem para a inserção dos streamings neste meio midiático. De acordo com Fabiana Lima (LIMA, 2023):

“Streaming é a transmissão de dados de áudio e vídeo em tempo real de um servidor para um aparelho como smart Tv, smartphone, tablet, computador ou notebook. Você pode assistir ou ouvir o conteúdo a qualquer momento e em qualquer lugar desde que tenha acesso a internet e obtenha a assinatura da plataforma”.

Num primeiro momento, as emissoras de televisão (principalmente a Rede Globo) foram se adaptando e acompanhando a internet, criando sites e ferramentas para visualização de lances e notícias das partidas pela internet. O que tomadas devidas proporções, o conteúdo gerado pelas emissoras no ciberespaço foi se tornando fundamental para seu marketing, e logo foi se divulgando intensivamente seus aplicativos que proporcionam a experiência de acompanhar seu time do coração em qualquer lugar do mundo, bastando ter um dispositivo móvel, internet e o aplicativo pago.

O que de certa forma pode parecer prático e acessível para os consumidores do esporte, no qual você consegue assistir as partidas de futebol onde e quando quiser, é restrito a pagantes da assinatura de determinada plataforma através de dados móveis e internet, que também são pagos.

 

Streaming
Na imagem, uma captura de tela da propaganda do WatchESPN, aplicativo de streaming da ESPN.

O site e aplicativo da ESPN foi divulgado em um comercial que dizia “assista à ESPN em qualquer hora e qualquer lugar”. Aparentemente esse slogan que delimita tempo e espaço é a chave mestra do marketing das plataformas de streaming.

 É importante ressaltar que alguns clubes de futebol já fizeram o uso da internet como mecanismo de transmissão de suas partidas antes da chegada dos streamings neste negócio. O caso mais conhecido foi o Atletiba, clássico entre os clubes Athletico Paranaense e Coritiba em 2017. Os dois maiores times do Paraná, por razões político-burocráticas com a Rede Globo transmitiram de forma gratuita a partida válida pelo campeonato paranaense, via internet na plataforma Youtube e nos perfis oficiais do clube no Facebook.

Atletiba
Transmissão do Atletiba em 2017 via Youtube.

Este caso ficou conhecido como um símbolo a luz da atualidade mediática, por ter sido inétido, por representar uma discordância dos clubes em relação a primazia da Rede Globo sob os direitos de transmissão. Um fenômeno que causou um certo empoderamento dos clubes frente as emissoras de televisão.

É fato que esse é o ponto mais positivo do impacto do streaming nas transmissões de futebol. Mas o que não se pode deixar de lado, é o entendimento de que isso abriu um leque de plataformas digitais de áudio e vídeo buscando obter os direitos de transmissão das partidas. Hoje, basicamente cada campeonato, torneio, copa e afins é transmitido por um serviço streaming diferente.

Fica cada vez mais evidente a elitização do futebol através do acesso. A transferência das transmissões da Tv aberta para os streamings pagos está gradativamente excluindo inúmeros torcedores por não conseguirem ter recursos que auxiliam no acesso as plataformas. O esporte que é considerado o mais popular do mundo justamente pelos seus seguidores, sem eles, o que tem de popular?

Como lida o torcedor de futebol com essas mudanças tecnológicas?

Torcedores de todas as idades e regiões do Brasil tem enfrentado dificuldades no acesso para acompanhar seu time do coração devido a multiplicação de canais e streamings de transmissão. Além da Globo, atualmente 9 plataformas digitais transmitem as partidas de futebol: Premiere, Conmebol Tv, TNT Sports, Fox Sports, HBO Max, Star +, DAZN, Amazon Prime e Paramount. Em um fórum de discussão do site Meu Timão, o torcedor Carlos Eduardo em fevereiro de 2022, reclamou: “É uma palhaçada, um absurdo. Para quem quer ver todos os jogos do seu time do coração, agora temos que pagar, Tv a cabo + Premiere + Streaming. Isso em num país em que mais da metade da população vive em situação caótica de insegurança alimentar, é vergonhoso, é uma esculhambação.”

Esse desabafo do torcedor é um entre tantos outros que através das redes sociais e sites lamentam a atual situação do acesso as partidas de futebol. Isso sem levar em consideração um recorte de faixa etária, onde pessoas mais velhas que não sabem lidar com a tecnologia têm travado uma grande luta para acompanhar os jogos do seu time. Torcedor do São Paulo FC Álvaro Pereira, comerciante aposentado, em uma entrevista cedida à BBC News Brasil (2022), lamentou a sensação de isolamento “além da família e das amizades que diminuíram muito, futebol é o que me sobrou”, perante a dificuldade de acesso a essas plataformas de streaming, o futebol pode não estar mais sobrando.

Em todas as possibilidades de recorte, haverá uma dificuldade, e a principal delas é a financeira. Qual a lógica senão financeira do surgimento de tantos e tantos streaming querendo assumir o protagonismo nos direitos de transmissão dos jogos de futebol? E para os clubes de futebol que lucram muito mais com essa disputa de diretos entre emissoras e plataformas digitais? Para acompanhar um único time você precisa ter assinatura de no mínimo quatro streamings, afinal Brasileirão, Copa do Brasil, Estadual e Continental são transmitidos em plataformas diferentes e a tendência aparentemente é aumentar. Ao se ver sem saída na busca por alternativas de ver seu time, muitos recorrem a pirataria, que é um problema sério para o mercado e vem tomando mais e mais espaço nesse meio, já que para o telespectador o aumento do custo para acompanhar futebol já é realidade.

Conclusão

O futebol brasileiro passou por inúmeras mudanças em sua história. Aquele futebol instituído por Charles Miller (1894) a princípio era um esporte de lazer restrito a elite branca. Ao alcançar sua democratização, com a inclusão do negro e das massas populares além de sua profissionalização através de muita luta e resistência, tornou-se o maior e mais importante esporte do país. Contudo, esse futebol parece estar voltando a ser uma prática de lazer voltada a minoria privilegiada financeiramente. A única conclusão possível é a de que há um regresso. A inacessibilidade do futebol para as camadas populares, está cada vez mais evidenciando um esporte não democrático, marcado pela desigualdade e elitização.

Qualquer cidadão consciente da realidade em que está inserido reconhece a desigualdade social existente no Brasil. No ranking mundial, o país se encontra em 8º lugar como mais desigual do mundo. Além dos altos valores nos ingressos em estádios brasileiros, que vem se tornando privilégio para poucos, agora também limitam o acesso dentro da sua própria casa. No ritmo que está encaminhando, a fragmentação do mercado sob os direitos de transmissão de futebol tende a ficar cada vez mais pesada financeiramente para o torcedor. Para muitos, esse esporte é a razão da vida, é o que o faz sentir vivo mesmo diante das mazelas do mundo. É elemento fundamental para a sociedade brasileira, que está se tornando cada vez mais elitizado. “O país do futebol” jamais deveria obstaculizar o acesso da população a esse esporte.

Notas

[1] A Feel The Match é uma empresa de mídia/estúdio esportivo, faz parte de uma nova geração de empresas focadas na produção de conteúdo para web 3 e streaming. Desenvolvemos propriedades intelectuais ligadas a esporte e entretenimento, um mercado em forte crescimento no Brasil.

Referências

JÚNIOR, Hilário Franco. A Dança dos deuses: Futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

PROCHNIK, Luisa. O futebol na telinha: a relação entre o esporte mais popular do Brasil e a mídia. IN: Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste. Vitória, 2010. Anais. INTERCOM, 2010. Disponível em http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2010/resumos/R19-1397-1.pdf. Acesso em; 15. jul. 2023.

CARRANÇA, Thais. Como o futebol por streaming virou obstáculo para idosos: “não sei como ver”. BBC News Brasil, São Paulo, 12 jul. 2022. Disponível em < Como futebol por streaming virou obstáculo para idosos: ‘Não sei como ver’ – BBC News Brasil>. Acesso em 20 jul. 2023.

CARVALHO, Renan Augusto. O futebol na sociedade capitalista contemporânea. Araraquara: UNESP, 2021.

NETO, Mateus Teófilo Tourinho. A internet é a bola da vez: o uso do streaming de vídeo na transmissão e no acesso as partidas do futebol brasileiro. Brasília, 2017.

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Como citar

MENOSSI, Julia. Os direitos de transmissões de futebol e acessibilidade em tempos de streaming. Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 24, 2023.
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