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Os Gigantes do “Novo Nordeste” e a Minicopa de 1972

Com o regime militar instaurado por um golpe em 1964, o Brasil passou por importante capítulo de sua História, entrando em um período marcado por intensa repressão.

Nos anos 70, o país viveu o ápice do autoritarismo e da repressão. E foi justamente neste espaço de tempo que um momento de euforia se instalou, haja vista os excelentes índices de crescimento econômico apresentados pela propaganda do governo militar.

O chamado milagre econômico brasileiro, sob a direção do ministro da Fazenda Antônio Delfim Neto, foi “um efêmero e eufórico período de desenvolvimento econômico acelerado”.

“Efêmero porque sua duração foi muito curta em relação a outros períodos de bonança econômica, bastando um choque político internacional para brecar seu avanço, com o súbito aumento dos preços do petróleo bruto, decretado em meados de 1973 pelo cartel petrolífero, a OPEP, Organização dos Países Produtores de Petróleo. […] Eufórico porque enquanto durou, esse momento foi de plena expansão dos investimentos nos mais diversos setores, entre eles, o industrial e o agrícola, o de financiamento, captação da poupança e serviços. Igualmente, o da construção civil, relacionada com obras de infraestrutura, contratadas pelo governo federal, tais como hidrelétricas, usinas, estradas, pontes e estádios de futebol [grifo meu] em várias capitais estaduais”. (GIANNASI, 2011, pp 7-8).

A sensação de grandeza do Brasil no discurso otimista do regime passava pela publicidade das obras faraônicas como a Transamazônica, a Ponte Rio-Niterói e as Usinas Itaipu e de Angra dos Reis. No entanto, para o regime, era preciso também celebrar com o discurso nacionalista as obras urbanas que foram feitas em várias cidades do país: os estádios de futebol.

“No país do futebol, que é ao mesmo tempo esporte, espetáculo e paixão das multidões, a construção de estádios atingiu, em poucos anos, o mais elevado nível técnico. Ter um grande estádio é hoje a aspiração de qualquer cidade brasileira de mais de 500 mil habitantes – desejo que elas vão satisfazendo, uma a uma, graças a essa forma peculiar de entusiasmo que contamina povo e dirigentes”. (Revista Manchete, Edição Especial B, 1969, p.166).

Desta forma, nenhuma cidade grande desejava ficar de fora dessa “coincidência nada casual com o período crítico do regime de exceção no Brasil” (MASCARENHAS, 2014, p.169). Assim, foi durante os seus anos mais truculentos, os chamados “anos de chumbo”, que o governo Médici pretendia dar “cara nova” ao país.

A Integração Nacional do Nordeste

Considerado um barril de pólvora prestes a explodir, devido principalmente as tensões advindas dos seculares problemas ligados à estrutura produtiva latifundiária e monocultora, a região nordestina mereceu atenção especial do Estado ditatorial.

“No Nordeste, a movimentação política associada à situação socioeconômica da região, transforma-se em palco de conflitos já em processo bastante avançado, em que o Estado pós-64 passaria a ter um interesse imediato no controle e na espionagem das forças sociais progressistas que ali se apresentavam, tendo por necessidade uma atuação coordenada pelas forças armadas”.(NASCIMENTO, 2013, p.13)

Por conseguinte, aproveitando-se da euforia desenvolvimentista do “milagre econômico”, procurando aliviar as tensões sociais na região e garantir a “segurança nacional”, o governo ditatorial buscou caucionar a expansão do Nordeste com grandes obras.

A “redenção definitiva” do Nordeste estava em progresso. “Rodovias, represas e fábricas surgem da noite para o dia, como prova insofismável de que a democracia é o caminho certo para o melhor dos futuros.” (Revista Manchete, nº630, 16 mai.1964, p.73).

Durante os 21 anos da Ditadura Militar inaugurou-se em todas as cinco regiões do país “gigantes de concreto”. “Constroem-se estádios em todo o Brasil, em ritmo acelerado. Até 1972 os dezessete maiores deles abrigarão, num só dia, um milhão, seiscentos e noventa mil espectadores” (Revista Manchete, nº 979, 23 jan 1971, p.36).

Diversos destes estádios foram construídos ou ampliados para receber a Taça Independência de 1972, organizada pela Confederação Brasileira de Desportos em conjunto com o governo Médici.

Estádios
Estádios construídos e em construção. Fonte: Diário de Pernambuco, 15 nov 1970 Edição 269 p. 17.

Inserida nas comemorações dos 150 anos da Independência brasileira, a Minicopa foi composta por 20 seleções e teve partidas disputadas nas 5 regiões do Brasil. Isto posto, a imagem do Brasil ia correr o mundo com a realização desta competição. Mas para além de vitrine internacional para o país-sede, este torneio foi também uma oportunidade para as equipes se inserirem em um evento internacional de futebol, dado que na Copa do Mundo a maioria dos participantes eram europeus e da América do Sul.

Assim, ao longo de 28 dias, de junho a julho, foram recebidas seleções de quatro continentes (América, Ásia, África e Europa) em 12 capitais, das quais cinco eram na região nordeste: Salvador, Aracaju, Maceió, Recife e Natal.

Pretendendo sediar a Minicopa, dentro da febre das obras suntuosas, existiu verdadeira competição entre os governantes nordestinos para saber quem faria o maior e melhor estádio da região. Desta maneira, os estádios Fonte Nova (Salvador) e Arruda (Recife) foram ampliados e o Batistão (Aracaju), Rei Pelé (Maceió) e Castelão[1] (Natal) foram inaugurados.

Tendo em vista que muitos deles tinham a capacidade para mais de 50 mil torcedores, estes estádios eram considerados como a representação e a afirmação do desenvolvimento da região, sendo também utilizado para dar alcance e importância ao futebol a nível regional e até mesmo nacional.

“Aracaju é hoje uma cidade moderna, que muda de fisionomia a olhos vistos. Novas avenidas rasgarão a cidade de ponta a ponta. Abaixo, o Estádio Lourival Batista, chamado de Batistão, com capacidade para 50 mil pessoas, que veio dar um grande impulso ao futebol sergipano”. (Revista Manchete, edição especial B, out. 1970, p.136.)

Estádio Batistão
Estádio Batistão. Fonte: Revista Manchete, edição especial B, out. 1970, p.136.

Como se percebe, o tom de esperançoso da narrativa jornalística se coaduna com o discurso oficial do regime[2], ficando patente o enquadramento da construção do estádio Lourival Batista com o desenvolvimento econômico de Aracaju.

A “construção e transformação” do nordeste brasileiro teve na capital alagoana mais um outro exemplo. Assim, “Maceió, famosa pela beleza das praias, hoje tem também aspectos urbanos imponentes, como o seu estádio Pelezão”.

“Um dos segredos do desenvolvimento atual do Nordeste é a melhor distribuição de rendas nos centros urbanos, o que ocorreu sobretudo, para citar as capitais, em Fortaleza e em Salvador. Mas algumas outras, como Maceió, por exemplo, seguiram de perto essas duas. Alagoas vive uma fase de otimismo como jamais conheceu antes e Maceió, particularmente, passa por um processo de desenvolvimento urbano com o qual até há pouco tempo sonhava” (Revista Manchete, edição Especial. Nº 1000, 1971, p.60)

Estádio Rei Pelé
Estádio Rei Pelé. Fonte: Revista Manchete, edição especial, número 1000, 1971, p.60.

Através da chamada Política de Integração Nacional, a capital norte rio-grandense também foi inserida na programação dos jogos da Minicopa, recebendo três jogos no magnífico estádio Marechal Castelo Branco.

Aos moldes do que aconteceu em Maceió, o torcedor natalense teve a “oportunidade de participar da construção do Estádio de Lagoa Nova”. Com o lançamento de quatro planos para a aquisição de cadeiras cativas, buscava-se algum apoio financeiro, mas também gerar pertencimento e apoio simbólico da população[3].

Estádio Castelo Branco
Propaganda de venda de cadeiras do Estádio Castelo Branco (RN). Fonte:  Diário de Natal 23 out 1971 p.07.

Muito comum nas campanhas de construções de estádios, a “venda de cadeiras” buscava também a identificação do torcedor com a obra. A contribuição do torcedor carregava a simbologia de que aqueles empreendimentos pertenciam à uma mesma coletividade, independente de classe social. Por conseguinte, no que tange às múltiplas iniciativas de recolha de fundos, o progresso das obras carregava o simbolismo de ser a prova da capacidade dos dirigentes políticos e dos torcedores.

Não obstante a venda de cadeiras cativas, o Estádio de Lagoa Nova, como também era chamado, teve sua construção paralisada por largo período, por falta de recursos[4]. Então, o governo local, com apoio da Confederação Brasileira de Desporto, foi pedir ajuda financeira em Brasília, reunindo-se com os ministros da Educação e Cultura e do Interior.

“Com Passarinho será tentada uma repetição do que foi realizado em Sergipe, com o estádio Lourival Batista. A denominada parte ociosa do estádio, todas as dependências que se situam abaixo das arquibancadas, seria aproveitada pela construção de salas de aula. No Batistão a participação dos recursos do MEC alcançou NCr$ 2 milhões de cruzeiros. Aqui em Natal, são projetadas as construções de nove salas de aula. Com Costa Cavalcanti, serão solicitados recursos naturais, independentes de nenhum plano especial. São imensas e esperançosas as possibilidades de êxito nos contatos do prefeito natalense com os ministros do governo federal, os quais constarão com o inestimável apoio do dirigente maior da CBD, verdadeiramente atuante nas esferas governamentais”. (Diário de Natal, 23 jan 1970, p. 05).

Nesta “renovação da paisagem urbana”, várias outras cidades nordestinas viram nascer, ou viram crescer, sob a forma de concreto, o programa político de governo: os gigantes do “Brasil Grande”.

Para além do significado esportivo, estas edificações tiveram diversos impactos em seu âmbito social, econômico e, principalmente, político. Fora o seu aspecto urbano imponente, estas “maravilhas do regime” buscavam, além de preservar e reforçar a coesão interna (integração nacional), marcar o início de uma nova etapa para o futebol nordestino estabelecendo prestígio nacional.

Erigidos com participação do poder público (seja federal, estadual ou municipal), estes grandes equipamentos futebolísticos fazem parte de um marco no aprofundamento dos vínculos do regime ditatorial com o futebol.

Em contrapartida, passada a Minicopa, a “eficácia” ditatorial deixou heranças, como no caso do estádio construído em Natal.

“Somente de juros, se não for encontrado outro caminho, como pretende o Prefeito e o governo do Estado, na busca de alternativas para solucionar o problema, a Prefeitura terá de pagar por ano – só de juros, se repita – dois bilhões de cruzeiros, o que em cinco anos chegaria quase ao valor atual da obra do Estádio Marechal Castelo Branco e representaria, por outro lado, as dotações de um ano de sua Secretaria de Viação e Obras. Sem poder nem querer negar a dívida, a Prefeitura terá de encontrar soluções”. (Diário de Natal, 24 jun 1972, p. 05).

Assim sendo, a Ditadura militar brasileira (1964-1985) além de operar com autoritarismo e violência, afrontava à democracia com a malversação dos recursos. Em função de um modelo patrimonialista, o Estado tinha seu caráter público limitado, contribuindo para naturalizar e aprofundar as desigualdades.

 

Notas

[1] O Estádio Marechal Castelo Branco é o atual Machadão (Natal/RN). Não confundir com o Castelão de Fortaleza/CE (Plácido Castelo).

[2] Não podemos esquecer que os veículos de imprensa estavam sob censura. No entanto, é notório que a Revista Manchete se posicionou de maneira favorável a ditadura durante o período. Para saber mais, sugiro o livro da historiadora Greyce Falcão (NASCIMENTO, 2020) constante nas referências bibliográficas.

[3] Diário de Natal, 15 jul 1968, p.04.

[4] Diário de Natal, 23 jan. 1970, p.05.

 

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, A. T. S. DE. O regime militar em festa: a comemoração do Sesquicentenário da Independência brasileira (1972). Rio de Janeiro, RJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009.

BRAGA, M. M. M. Rota Transamazônica: nordestinos e o Plano de Integração Nacional. 1a̲ edição ed. Curitiba: Editora Prismas Ltda, 2015.

BUENO, A. DE C. Futebol e controle social no Rio Grande do Norte (1970-1982). Trabalho de Conclusão de Curso em História, Natal, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2000.

CAVALCANTI, E. V. O medo em cena: a ameaça comunista na ditadura militar (Caruaru, PE – 1960 – 1968). Tese de Doutoramento em História—Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2015.

GIANNASI, C. A. A doutrina de segurança nacional e o “milagre econômico” (1969/1973). Tese de Doutoramento em História—São Paulo (SP): Universidade de São Paulo, 2011.

GUSMÃO, R. C. S. DE. Trabalhadores da construção civil e justiça do trabalho durante a ditadura empresarial-militar em Alagoas. Dissertação de Mestrado em História, Maceió, Universidade Federal de Alagoas, 2019.

MASCARENHAS, G. Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014.

NASCIMENTO, D. F. DO. O Serviço Nacional de Informação (SNI): o Estado de Pernambuco vigiado. Dissertação de Mestrado em História, Recife, PE: Universidade Federal de Pernambuco, 2013.

NASCIMENTO, G. F. Aconteceu, virou Manchete: notícias da ditadura. Porto Alegre: Fi, 2020.

SOUZA, P. E. DA R. O campo e o jogo: uma história do Estádio Castelão (1963-1991). Dissertação de Mestrado em História, Natal, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2012.

Arquivos pesquisados

Hemeroteca Digital Brasileira – Fundação Biblioteca Nacional – http://memoria.bn.br/


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Rodrigo Carrapatoso de Lima

Possui graduação em História (2008), especialização em História do Século XX (2010) e mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2013). Atualmente é doutorando na Universidade de Coimbra (UC) e Técnico em Assuntos Educacionais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Membro da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme) e Pesquisador das temáticas ligadas a ditadura e futebol.

Como citar

LIMA, Rodrigo Carrapatoso de. Os Gigantes do “Novo Nordeste” e a Minicopa de 1972. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 33, 2021.
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